Não há necessidade de gastar tinta para escrever acerca dos efeitos deletérios causados pela pandemia à sociedade global; não há de se estender no que diz respeito à crise empresarial. Triste momento histórico. Mas há possibilidade de alinhar alguns pontos e refletir sobre os desdobramentos que o surto trará para a economia do Brasil, especialmente. Pedidos de recuperação judicial serão inevitáveis, sem desconsiderar cenário mais sombrio, que é justamente a possibilidade de abertura judicial de falência das micro, pequenas e médias pessoas jurídicas. Não há como desconhecer o fato de que serão necessários muitos meses (quiçá anos) para que a economia mundial se restabeleça, ligando os elos quebrados da corrente, em decorrência dos fatos atuais.
É certo que algumas atividades econômicas se estão retraindo (dentre outros, bares, restaurantes, lojas, shopping centers etc., interromperam atendimento ao público, temporariamente), outras suspenderam a produção, com férias coletivas aos trabalhadores. Por fim, o fechamento temporário de fábricas se pode tornar realidade[1], significando o não investimento de recursos financeiros no país, que já vinham com dificuldades. Por fim, o próximo passo será a dispensa de colaboradores, considerando, em última análise a drástica redução de produção e consumo de bens e serviços, impondo às corporações que atuem conforme nova realidade mundial, enxugando a estrutura, por exemplo[2]. Afinal, o sinal de alerta foi ligado no mundo e a economia globalizada sente imensos e deletérios reflexos[3].
Em decorrência da crise e de todas as suas consequências na econômica, no mercado em geral, parece certo que muitas entidades sofrerão com a falta de insumos, ausência de liquidez, pouco dinheiro em caixa, gerando incapacidade de honrar compromissos livremente assumidos, paralisando sua produção. Isso pode significar colapso, insolvência, retirada do mercado.
Dependendo da profundidade da crise na qual se vê mergulhada a entidade, é possível se valer de um dos institutos previstos na Lei 11.101/05, para tentativa de soerguimento[4], oxigenação e eventual retorno ao mercado competitivo. Mas, o cenário não é dos melhores, porquanto a grande maioria das pessoas jurídicas que se vale do instituto da recuperação judicial não consegue voltar a atuar regularmente[5]. Muitas vão à falência, o que, invariavelmente, significa o fim da atividade econômica[6]. Portanto, em tese, há possiblidade de a entidade em crise se valer dos mecanismos jurídico-econômicos previstos na lei, mas poucas de fato conseguem iniciar e terminar o processo com resultado satisfatório, ou seja, honrar as dívidas e dar continuidade à atividade.
fato é que, salvo engano, a Lei 11.101/05, no tocante à reestruturação empresarial, ainda não disse a que veio. Dito de outro modo, considerando as estatísticas, o instituto da recuperação judicial, por variados fatores, não vem auxiliando na tentativa de soerguimento de entidades em crise, tanto é que vários de seus dispositivos estão em vias de significativa alteração levando em conta a necessidade de atualização legal e obsolescência de dispositivos.
Aqui não há lugar para discorrer a respeito dos porquês do insucesso, por assim dizer, da lei, mas é de se ressaltar que entidades sem as mínimas condições requerem a recuperação judicial e no meio do caminho percebem que o procedimento foi equívoco, porquanto a insolvência se fazia presente. A não observância rigorosa dos requisitos previsto no art. 51 da lei é, talvez, um dos grandes motivos que levam ao engano de recuperações judiciais, gerando insegurança jurídica e desestabilização processual e acúmulo de passivo.
Demais, e tal aspecto é de ser aqui relevado, em consequência do que foi escrito, cabe ao hermeneuta observar o real desempenho que a lei faz perante a sociedade como um todo (e no tocante às pessoas jurídicas em especial, considerando o texto de 2005). Escreve Jeremy Waldron:
Um projeto de lei não se torna lei simplesmente sendo decretado, ocupando o seu lugar em Halsburry ou no livro de estatutos. Torna-se lei apenas quando começa a desempenhar um papel na vida da comunidade, e não podemos dizer qual papel será – e, portanto, não podemos dizer ‘qual lei’ foi criada -, até quando ela comece a ser administrada e interpretada pelos tribunais. Considerado um pedado de papel com o selo de aprovação do parlamento, um estatuto não é direito, mas apenas uma possível ‘fonte de direito’[7]
O escopo da lei genérica positiva (lei prescritiva, no dizer de Herbert Hart) tem como escopo a pacificação social. Ensina Emilio Betti que a lei busca a convivência social, que não se pode dizer alcançado com a simples emanação, mas apenas com a aplicação dessa norma na vida de relação[8]. No caso específico do texto de 2005, o próprio legislador fez constar que a lei deveria se sintonizar com seu tempo, guardando inexorável consonância com a realidade social e econômica da época em que é elaborada, prevendo estímulos a comportamentos desejáveis no futuro[9]. Não se percebe isso, salvo melhor juízo.
Ainda não sabe a profundidade dos desdobramentos da crise mundial ora vivenciada, mas, em termos de Brasil, a Lei 11.101/05, até o momento, não foi útil à tentativa de soerguimento de entidades mergulhas em crise, conforme números apresentados. Novos mecanismos recuperatórios hão de ser implementados a fim de evitar a abertura judicial de falências, sem descuidar do auxilio governamental para socorrer setores da atividade econômica.
Notas
[1] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,para-ajustar-producao-gm-vai-paralisar-as-5-fabricas-da-marca-no-pais,70003238315 acesso: 19/03/2020.
[2] Linhas de crédito no Banco do Brasil, BNDES e na Caixa Econômica Federal, com carência razoável para início do pagamento; suspensão dos contratos de trabalho; postergação do pagamento de tributos federais.; suspensão de pagamento de empréstimos junto ao BNDES (e operações indiretas, via agentes financeiros); oferta de linha de crédito para micro e médias pessoas jurídicas (para pagamento de contas), a baixo custo; socorro aos trabalhadores informais. A propósito, Medida Provisória n. 927 (questões trabalhistas).
[3] Evidentemente, aqui não se está a discorrer - não é este o escopo do texto - a respeito da população mundial, que infelizmente vive momentos tristes, lamentáveis e dolorosos.
[4] Em fevereiro/2020 os pedidos de recuperações judiciais aumentaram 11% com relação ao mesmo mês de 2019. https://www.serasaexperian.com.br/sala-de-imprensa/recuperacoes-judiciais-aumentam-11-em-fevereiro-revela-serasa-experian. Acesso: 19/03/2020.
[5] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/10/quase-metade-das-grandes-e-medias-empresas-nao-sobrevivem-a-recuperacao-judicial.shtml. Acesso: 19/03/2020.
https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2019/09/15/em-sp-quase-60-das-empresas-em-recuperacao-judicial-viram-zumbis.htm. Acesso: 19/03/2020. Observe-se o que consta da matéria: De acordo com a pesquisa, que avaliou 906 processos, apenas 18,2% das companhias têm tido sucesso na recuperação judicial e 24,8% vão à falência por não cumprir o plano. As demais ficam num limbo e protelam cada vez mais a saída do processo, diz o professor da PUC-SP, Marcelo Barbosa Sacramone, juiz da 2.ª Vara de Falências e Recuperação Judicial de São Paulo.
[6] A insolvência, tida como fato econômico patológico, nas palavras de Alfredo Rocco que se traduz em pressuposto do estado falimentar. In - REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 1º Volume. 17ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1998, p. 64.
[7] A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 11-12. Grifos no original.
[8] Interpretação da lei e dos atos jurídicos: teoria geral e dogmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 232. John Austin esclarece que a existência da lei é uma coisa; seu mérito ou demérito é outra. A lei, que realmente existe, é uma lei, apesar de acontecer de não se gostar dela. The province of jurisprudence determined. New York: Prometheus Books, 2000, p. 157.
[9] Parecer n. 534, de 2004, da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado da República, e relativo ao PLC n. 71/2003, e devidamente publicado no Diário do Senado Federal de 10/06/2004, pp. 17.856 a 17.941.