A lei no código sacerdotal
Ao contrário de outras coleções, esse compêndio de leis não se encontra num só lugar, mas espalhado em várias fontes. Exemplo: Lv 1-7, sacrifício; Lv 11-13, pureza e impureza; Nm 29, 29, festas.
É característica sua colocar a lei dentro de um contexto histórico, isto é, relacionando a origem da instituição com algum acontecimento nem sempre histórico no seu sentido genuíno.
Foi assim com a proibição de sangue depois do dilúvio (Gn 9, 1-7), a lei da circuncisão que se segue à aliança feita com Abraão (Gn 17, 9-14), o ritual da Páscoa por ocasião da saída do Egito (Ex 12), a lei do sacerdócio no Sinai (Ex 28, 1; 29, 37), a lei dos levitas na partida do Sinai (Nm 3-4; 8, 5-28) e outras leis referentes aos sacerdotes e levitas depois da rebelião de Coré (Nm 16).
Há outras leis rituais e cultuais que não possuem um contexto particular nos acontecimentos e são atribuídas a Moisés. Com certeza, impossível fazer um julgamento geral sobre a antiguidade delas, cuja origem deve ser estabelecida individualmente para cada caso.
Muito provável que esse código seja, em muitos casos, uma lei sacerdotal, pois algumas leis rituais e cultuais tinham em vista ninguém mais a não ser os sacerdotes.
Os termos israelitas para a lei, no sentido original, referem-se a leis definidas de forma e conteúdo distintas.
Tôrah é o vocábulo mais comum para designar a lei no judaísmo. A sua etimologia diz que ele deriva de yarah, jogar ou deitar sortes. Assim, o seu sentido original é o do oráculo divino, revelado pela sorte. Daí ele passa a significar uma resposta divina, de modo geral. Como as respostas divinas eram comunicadas pelos sacerdotes, ele chega a exprimir a instrução sacerdotal referente a preceitos cultuais e morais. É assim mencionada em Is 8, 20; Jr 2, 8; 18, 18; Am 2,4. A palavra enfatiza a lei como revelação de Yahweh, transmitida pelos sacerdotes.
’Edôt, testemunhos. Expressão técnica usada para os termos da aliança de Yahweh com Israel, e que designa ou as promessas de Yahweh ou as obrigações que ele impõe a Israel. Por isso, o rei usava uma fórmula escrita do ’edôt na sua coroação (2Rs 11, 12). A dição ressalta a vontade revelada de Yahweh nas leis e também a concepção de lei como obrigação da aliança.
Mishpat, juízo, indica uma decisão judicial. Palavra aplicada às leis civis e criminais (Ex 21, 1). Precedente judicial como fonte da lei, pode ser identificado com a formulação casuística de lei. Diversamente de tôrah,’edôt e dabar, exprime a origem humana da lei.
Hôd, estatuto, literalmente, algo que ficou gravado. A sua fonte parece ser mais a autoridade pública do que um precedente judicial ou um costume.
Dabar, palavra, quer dizer um pronunciamento divino e é usado para leis tão solenes como o decálogo (Ex 20, 1; 24, 3, "palavras e juízos"). Dá especial destaque à lei como sendo a vontade revelada de Yahweh e pode, mais provavelmente, ser identificada com a formulação apodítica da lei.
Miçwah, mandamento, traduz a ordem emitida pela autoridade, tanto divina quanto humana, e é um termo geral que se aplica a outras ordens e não apenas à lei no sentido estrito.
Na época antiga não havia ordenação propriamente dita. Era a própria função que fazia o sacerdote entrar no domínio do sagrado, iniciando o seu sacerdócio, oferecendo sacrifícios no altar, o que é a sua função essencial (Lv 1 5+), com a participação de toda a comunidade e prestando obediência ao seu código de leis.
A lei no judaísmo
A formulação da lei israelita é encontrada nas leis civis e criminais do código da aliança. O mesmo existe no código deuteronômico, com certas variantes. Em vez da oração condicional, emprega-se ou o particípio ou a oração relativa.
Exemplo da primeira está em Ex 21, 15: "Quem ferir seu pai ou sua mãe será morto." A segunda é ilustrada por Lv 20, 10: "O homem que cometer adultério com a mulher do seu próximo deverá morrer, tanto ele como a sua cúmplice."
Na maioria dos outros códigos, aparece um simples imperativo ou proibição na segunda pessoa do singular e no imperfeito. Essa formulação não encontra paralelo em outras coleções do antigo Oriente Médio. É empregado nas leis morais, rituais e cultuais, e não em leis civis e criminais. Isso é uma criação da crença religiosa israelita. Essas leis exprimem a vontade revelada de Yahweh e os termos da aliança.
O rei israelita era um juiz, e não um legislador. A fonte da lei consuetudinária era o próprio costume; muitas leis existiam simplesmente porque constituíam a maneira como as coisas sempre tinham sido feitas. O juiz decidia com base no costume conhecido e aceito. Geralmente, a fonte da lei israelita era a tradição determinada pelo juiz: o rei, o ancião e o sacerdote.
As coleções israelitas são todas atribuídas à revelação que Yahweh fez a Moisés. A obrigação do cumprimento de sua lei decorria da aliança, de que a vida sob a submissão à lei constituía o dever que as promessas da aliança de Yahweh lhes impuseram.
Em Israel não existia distinção entre a lei secular e a lei religiosa. Toda a lei é encarada como um dever religioso e impõe uma obrigação sagrada. Yahweh é quem recompensa e castiga sua observância ou a sua violação.
A concepção da lei como a vontade revelada de Deus não encontra semelhança em outras coleções do antigo Oriente Médio. Tanto Hamurabi como Lipit-Ishtar recebem dos deuses a autoridade necessária para promulgar leis e a sabedoria requerida para formulá-las; mas as leis são resultantes de sua própria obra, de sua obra pessoal.
Depois do exílio, a lei deixou de ser a regra que regia uma sociedade política independente; o judaísmo preservou-a, no entanto, fazendo dela um guia para a vida. O termo Torá (Tôrah) é usado para descrever toda a lei, uso que aparece também em textos pré-exílicos (Jr 8, 8; 9, 12; Os 4, 6; 5) e chega a exprimir o Pentateuco (2Mc 15, 9; Eclo 1, prólogo 1. 8. 24).
Os escribas pós-exílicos identificam a lei com a sabedoria (Eclo 24; 39, 1-11) e nela encontram todo o conhecimento, humano e divino. A alegria dos judeus diante da lei reflete-se na Torá e nos salmos 19 e 119.
Os rabinos incluíam a Torá entre os seres que existiam antes da criação. Por isso, a observância da lei era perfeição. Surgiu no judaísmo uma escola de fé que interpretava as obrigações da lei no sentido mais rigoroso.
Para proteger o cumprimento da lei, seus adeptos "construíram um muro" em torno da lei; o muro consistia em pareceres ou normas legais que ampliavam as obrigações da lei muito além do sentido das palavras e, assim, tornavam-na mais difícil de ser violada.
Essa, a "lei oral", à qual se atribuía o segundo lugar em autoridade somente em relação à própria Torá, e cuja origem, mediante uma construção artificial, remontava ao próprio Moisés. Ela estava preparada para incluir 613 "mandamentos" diferentes.
A lei no Novo Testamento
No século II a.C., Ptolomeu II Filadelfo (238-246 a.C.) desejava ter, na grande biblioteca que fundara em Alexandria, uma versão do hebraico para o grego dos livros sagrados dos judeus. A seu pedido, 72 homens, seis de cada uma das 12 tribos, foram enviados a Jerusalém para fazer a tradução (LXX), que foi realizada para a grande comunidade judaica daquela cidade.
A partir dessa época, foi introduzido o termo grego nomos (lei), para trasladar tôrah, significando a lei como tal, o pentateuco, o Antigo Testamento completo, o decálogo ou uma lei particular do pentateuco.
Jesus observou a lei e nunca aceitou a acusação de que a houvesse violado; quando era incriminado disso, insistia que se tratava da lei oral, tradição humana (Mt 15, 3-6; Mc 7, 8s.13; Cl 2, 8), e não da torá, em que se baseava a censura (Mt 15; Mc 7).
A atitude de Jesus em face da lei deve ser descrita como negativa. Os publicanos e os pecadores precedem os escribas e fariseus no reino dos céus (Mt 21, 28-32), e os pecadores arrependidos são melhores do que os justos que não têm arrependimento (escribas e fariseus, Lc 15, 1-10).
As bem-aventuranças (Mt 5, 3-10) não contêm nenhum elogio à observância da lei. O reconhecimento por parte do Pai celeste depende da confissão de Jesus (Mt 10, 32s; Lc 12, 8s). Assim, Jesus declara-se o senhor do sábado (Mt 12, 8; Mc 2, 28; Lc 6,5). O publicano arrependido é perdoado, ao passo que o fariseu justo não o é (Lc 18, 9-14). Aqueles que obedecem a todas as ordens do seu senhor são servos inúteis que não fazem mais do que o seu dever (Lc 17, 7-10). Os escribas e fariseus apropriaram-se da chave do reino dos céus, de modo que nem eles entram nem permitem que outros entrem (Mt 23, 13: Lc 11, 52).
A lei em relação às palavras de Jesus assemelha-se a um remendo de pano novo colocado numa roupa velha, ou ao vinho novo guardado em odres velhos (Mt 9, 16-17; Mc 2, 21-22) Lc 5, 36-37). Jesus, como filho do reino, está livre das obrigações impostas pela lei (Mt 17, 24-27). Ele não hesita em repetir e confirmar a lei (Mt 5, 21-48), e o tratamento que lhe dá aqui não tem nada da maneira rabínica; sua antítese é: "Dizia-se" e "Eu digo".
Por outro lado, a atitude de Jesus não é a de uma rejeição puramente negativa. Sua missão não consiste em anular a lei, mas em levá-la ao seu cumprimento pleno, e entra-se no reino dos céus mediante a observância da lei (Mt 5, 17-20). Quando lhe perguntaram como se alcança a vida eterna, sua resposta foi: "observa os mandamentos" (Mt 19, 16-19; Mc 10, 17-19; Lc 18, 18-20). Ele reduz toda a lei ao mandamento do amor a Deus e ao próximo (Mt 22, 34-40; Mc 12, 28-34; Lc 10, 25-28). A justiça de seus discípulos deve superar a dos escribas e fariseus (Mt 5, 20). Os escribas e fariseus capricham nas minúcias da observância e omitem a virtude essencial; eles deveriam praticar as primeiras sem desprezar a segunda (Mt 23, 23s).
Essa dupla atitude deve ser relacionada com a concepção mais larga da missão de Jesus. Ele rejeita a lei como um meio suficiente de chegar-se à justiça; além da lei, a pessoa deve aceitar Jesus como alguém cujas palavras não são apenas iguais à lei, mas como alguém que vem como um novo Moisés para revelar o Pai.
A lei em si é um meio insuficiente para se atingir a Deus; ela precisa ser cumprida plenamente, alcançar sua plenitude nele, Jesus. A lei é fundamentalmente aquilo que Jesus insiste que ela é: a vontade revelada de Deus. Os que aceitam essa revelação não podem fazer dela um pretexto ou uma desculpa para rejeitar a plenitude da revelação de Deus para a qual a lei se orienta.
A lei nos escritos paulinos
A atitude de Paulo diante da lei é universalmente atingida pelo problema da lei aplicada ou não aos gentios convertidos ao cristianismo.
A primeira reação da comunidade cristã em face da aceitação dos gentios foi a de que esses deveriam primeiro tornar-se judeus para depois se fazerem cristãos; é lógico que os judeus os julgavam, colocando-se na situação de uma comunidade judaica.
A Igreja primitiva, porém, rejeitou essa exigência; no Concílio de Jerusalém aceitou a declaração de Pedro, de que tanto os gentios quanto os judeus se salvavam pela graça de Jesus Cristo (At 15, 11), e a afirmação de Paulo, de que o homem se torna justo não pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo (Gl 2, 16).
O problema especulativo do sentido e do valor da lei não ficou resolvido tão facilmente quanto o problema prático de sua observância. Porque a lei é para Paulo a vontade revelada de Deus e, por isso, seria impossível rejeitá-la.
Para ele era evidente que a vida e a santidade vêm por meio de Jesus Cristo e não mediante a lei (Gl 2, 21). Se o batismo é uma morte para a vida que se vivia antes, a pessoa batizada é libertada do jugo da lei (Rm 7, 1-6). Jesus Cristo realizou o que seria impossível a lei fazer: libertar do pecado, que também é uma "lei" (Rm 8, 1-3).
Paulo recorre à história de Israel para mostrar que a lei não constituía uma barreira efetiva ao pecado (Rm 2, 17-24); na verdade, a lei não é melhor do que a "lei" que os gentios trazem em seus corações e que os faz praticar as obras da lei mesmo sem conhecê-la (Rm 2, 14-16).
O Espírito vem pela fé e não pela lei (Gl 3, 2). A lei "provoca a ira" no sentido de que revela o pecado, manifesta o que há de pecado no homem e a importância deste para superar o pecado (Rm 4, 15; 5, 20; 7, 9; 2Cor 3, 6; Gl 3, 19). Porque a lei como reveladora do pecado é um instrumento de condenação, e não de salvação.
O evento cristão equivale, pois, a uma nova criação (Gl 6, 15); os cristãos morreram para a lei (Rm 7, 4) com Cristo (Gl 2, 19), e, como Cristo é o novo Adão (Rm 5,15-19), a velha criação foi superada, tornou-se ultrapassada (Rm 10, 4).
A lei, pela revelação que faz do pecado, trouxe uma condenação; ninguém está sujeito a ela (Gl 3, 13). Portanto, o destino da lei não era o de salvar o homem, mas de conduzi-lo a Jesus, o salvador; a lei era o pedagogo que levava as crianças à escola. Quando a criança atinge a maioridade, o trabalho do pedagogo termina. Aqui, a concepção que Paulo tem da lei atinge uma síntese.
Paulo repete a palavra em que Jesus reduzia toda a lei ao mandamento do amor (Gl 5, 14). Da mesma forma, como um rabino experimentado, ele cita oportunamente a lei para ilustrar algum ponto, seguindo a maneira usada nas discussões rabínicas (1Cor 9, 8; 14, 21-34).
A lei é freqüentemente mencionada em Hb, mas a ênfase recai sobre a lei natural e cultual, que explica a dignidade e a função do sacerdócio. O sacerdócio de Jesus é apresentado e explanado como um sacerdócio de Israel. Também aqui é aplicado o princípio da insuficiência da lei (Hb 7, 11.18s; 10, 1).