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A lei na filosofia, na teologia e no direito

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17/03/2006 às 00:00
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A lei em Tiago e em João

            A antítese bem conhecida de Tiago não é um contraste entre a fé e a lei, mas entre a fé e as obras (Tg 2, 14-26).

            A sua epístola é dirigida às "doze tribos da Diáspora" (Tg 1, 1), que são os cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano. O corpo da carta confirma que esses destinatários sejam convertidos do judaísmo.

            Ele as inspira na literatura sapiencial, para dela extrair lições de moral prática. Mas depende profundamente dos ensinamentos do evangelho, e seu escrito não é puramente judaico.

            Na epístola encontram-se o pensamento e as expressões prediletas de Jesus. Tiago é um sábio judeu-cristão que repensa as máximas da sabedoria judaica em função do cumprimento que elas encontraram na boca do Mestre.

            Seu primeiro assunto exalta os pobres e adverte severamente os ricos (Tg 1, 9-11; 1, 27-2, 9; 4, 13 – 5, 6): esta atenção para com os humildes, os favorecidos de Deus, prende-se à antiga tradição bíblica e de modo todo especial às bem-aventuranças do Evangelho (Mt 5, 3+).

            O segundo tema insiste na execução das boas obras e acautela contra a fé estéril (Tg 1, 22-27; 2,14-26).

            Para Tiago, o Evangelho é uma nova lei, uma lei perfeita de liberdade (Tg 1, 25). Seria falsa uma concepção da liberdade cristã que admitisse não haver obrigações impostas pela lei aos cristãos; deve-se obedecer a toda a lei (Tg 2, 8-11; 4, 11s). Tiago evidentemente não quer dizer com isto a Torá inteira; segundo Jesus e Paulo, a "lei régia" está reduzida ao único preceito do amor (Tg 2, 8), e para os cristãos ela inclui todas as obras da lei que o amor requer.

            O evangelho de João distingue-se dos outros evangelhos por numerosos traços: milagres que eles ignoram, como o milagre da água transformada em vinho em Caná (Jo 2, 1-12) ou a ressurreição de Lázaro (Jo 11, 1-44), longos discursos, como o que vem depois da multiplicação dos pães (Jo 6, 26-58), cristologia muito mais evoluída, que insiste particularmente sobre a divindade de Cristo (Jo 1, 1; 20, 29).

            Importa a João mostrar o sentido de uma história, que é tanto divina quanto humana, história e também teologia, que se desenvolve no tempo, porém mergulha na eternidade.

            Ele quer contar fielmente e propor à fé dos homens o acontecimento espiritual que se realizou no mundo pela vinda de Jesus Cristo: a encarnação do Verbo para a salvação dos homens.

            Os milagres contados são "sinais" que revelam a glória de Cristo e simbolizam os dons que ele traz ao mundo (purificação nova, pão vivo, luz e vida).

            João relata duas discussões sobre o sábado, mas a questão da lei não é importante para ele; as divergências dão oportunidade às discussões que as seguem (Jo 5, 16ss; 9, 14). Para João, a lei é a revelação (Jo 1, 17). Ela é uma revelação que fala de Jesus e de seu testemunho (Jo 1, 45; 5, 39s). Jesus recorre à lei como um argumento em favor dele próprio (Jo 8, 17; 10, 34; 15, 25). Diante da breve alusão em 1, 17, vê-se claramente que João concebe Jesus como a nova lei que vem superar a antiga; e, para expressar isso, ele escolhe o termo legal hebraico que designa a mais solene promulgação da vontade revelada de Deus, a "palavra".


A lei no nosso direito

            Ela é a fonte principal do nosso ordenamento jurídico.

            Regra escrita, geral, abstrata, impessoal, que tem por conteúdo um direito objetivo, no seu sentido material.

            Dependendo de sua destinação, é chamada de lei constitucional, administrativa, civil, penal, processual, tributária, comercial, eleitoral, previdenciária, trabalhista etc.

            Como regra jurídica, é todo o ato normativo imposto coativamente pelo Estado aos particulares, regulando as relações entre ambos e dos particulares entre si.

            Tem generalidade, por dirigir-se a todos os cidadãos, indistintamente; imperatividade, ao impor um dever, uma conduta; autorização, ao determinar que o lesado pela violação exija o cumprimento ou a reparação pelo mal causado; permanência, pois deve perdurar até ser revogada por outra lei; emanação de autoridade competente, ao seguir as competências legislativas previstas constitucionalmente (CF, arts. 22-24).

            Não há qualquer hierarquia entre leis federais, estaduais, distritais e municipais. Cada ente federativo deve legislar sobre os assuntos que estejam incluídos entre suas atribuições constitucionais. Essa, a razão de não haver a possibilidade jurídica de normas contraditórias.

            É inconstitucional a publicada por um ente da Federação, fora de suas atribuições, não podendo prevalecer sobre qualquer outra.

            Se a União legislar sobre assunto de interesse local, estará invadindo a competência específica dos municípios (CF, art. 30, I), não podendo prevalecer sobre a norma municipal. Somente em se tratando de competência concorrente é que existe prevalência da União para a edição de normas gerais, em razão de expressa disposição constitucional (CF, art. 24, §1º).

            Igualmente, a legislação estadual não poderá contrariar a federal já promulgada. Inexistindo legislação federal, os estados poderão exercer a competência legislativa plena. Mas a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspenderá a eficácia de lei estadual no que lhe for contrário (CF, art. 24, §§ 2º a 4º).

            Por serem imperativas, proíbem determinadas condutas de forma absoluta, não podendo ser derrogadas pela vontade dos interessados. Não podem ser alterados, por exemplo, os impedimentos matrimoniais (CC, art. 1.521) nem dispensado um dos cônjuges dos deveres que a lei impõe a ambos (CC, art. 1.566).

            Se, no entanto, forem dispositivas, as partes poderão estipular, antes de celebrado o casamento, quanto aos bens, o que lhes aprouver (CC, art. 1.539).

            Serão perfeitas, quando impuserem a nulidade do ato como punição ao infrator. É assim nulo o negócio jurídico praticado por absolutamente incapaz (CC, art. 166, I).


O nosso bicameralismo

            A corrupção tem sido um dos temas de maior evidência na imprensa brasileira, nos últimos meses. É difícil pensar hoje nos nossos parlamentares sem que nos venha à mente a imagem do mensalão e dos crimes de colarinho-branco (white-collar crime).

            Apesar de tudo isso, não podemos esquecer que a organização institucional continua firme e sólida, pois os poderes da União são independentes e harmônicos (CF, art. 2º).

            Na Inglaterra existe o bicameralismo aristocrático, em que a Câmara Alta, dos lordes (The House of Lords), é integrada pelos nobres, e a Câmara Baixa, dos comuns (The House of Commons), é composta pelos mandatários do povo.

            É da tradição constitucional brasileira a organização do poder legislativo em dois ramos, sistema denominado bicameralismo, que vem desde o Império, sendo o Senado Federal o local representativo dos estados federados ao lado da Câmara dos Deputados, que representa o povo (CF, art. 44).

            As limitações contidas nas Constituições de 1934 e 1967, que tenderam para o unicameralismo, sistema segundo o qual o poder legislativo é exercido por uma única câmara, foram uma exceção política.

            A própria arquitetura de Brasília traz à memória a adoção desse sistema bicameral. O prédio do Congresso Nacional é formado por duas cúpulas distintas, uma voltada para baixo, local de reflexão da autonomia política dos estados-membros da Federação, na qual se reúnem os senadores, e a outra voltada para cima, aberta aos clamores populares, onde se reúnem os deputados federais.

            Na época do Império, apesar do caráter unitário do estado brasileiro, já era usado o bicameralismo. O poder legislativo era formado por duas casas legislativas: o Senado, integrado por membros vitalícios escolhidos pelo imperador dentro de lista tríplice formada em cada província, e a Câmara, composta por representantes eleitos.

            Nas demais esferas do poder, estaduais e municipais, no Brasil, é adotado o unicameralismo, com a existência de uma única casa legislativa. Nos estados, o poder legislativo é exercido pela Assembléia Legislativa (CF, art. 27); no Distrito Federal, pela Câmara Legislativa (CF, art. 32); e nos municípios, pela Câmara Municipal (CF, art. 29).

            Essa, a dogmática constitucional, desde a promulgação da constituição americana. No moderno sistema de partidos, não cabe mais falar em câmaras representativas dos estados, que é uma obsolescência.

            O objetivo principal dos fundadores dos Estados Unidos da América era construir uma república que promovesse a estabilidade e protegesse os direitos de propriedade privada contra as tendências niveladoras das maiorias. Por esse motivo, adotaram controles, criaram o colégio eleitoral para escolha do presidente, elaboraram um poderoso judiciário e confiaram a seleção de senadores aos legislativos dos vários estados. Com a eleição de Thomas Jefferson (1743-1826) para a presidência, esse acontecimento é, muitas vezes, chamado de revolução jeffersoniana. Nos Estados Unidos da América, essa câmara representativa dos estados resultou de um compromisso histórico, o que não existiu no Brasil.

            No sistema brasileiro não há predominância substancial de uma câmara sobre a outra. No entanto, a Câmara dos Deputados goza de certa primazia relativamente à iniciativa legislativa, pois é perante ela que é promovida a iniciativa do processo de elaboração das leis pelo presidente da República, pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Superior Tribunal de Justiça e pelos cidadãos (CF, arts. 61, § 2º, e 64).


A Câmara dos Deputados

            É, sem dúvida, o ramo mais popular do Poder Legislativo, pois compõe-se de representantes do povo, eleitos em cada estado e no Distrito Federal pelo sistema proporcional (CF, art. 45) ao número de votos obtido nas eleições.

            A sua quantidade é fixada por lei complementar (LC 78/93) proporcionalmente à população, respeitando-se os números mínimo e máximo de representantes para cada unidade da Federação.

            O seu número máximo é 513. Mas o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no ano anterior às eleições, deve fornecer a atualização estatístico-demográfica das unidades da Federação, para que o Tribunal Superior Eleitoral possa fixar o número de cargos postos em disputa.

            Os limites mínimo (oito) e máximo (setenta) têm gerado sérias, graves e injustas disparidades na representação dos estados mais populosos. Estados com uma população bem menor acabam com representação superior aos mais populosos. Dessa forma, o voto oriundo de um estado onde é assegurada a representação mínima possui valor bem superior ao do eleitor de estados mais desenvolvidos, que têm limite máximo de representação fixada pela Constituição.

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            Nos Estados Unidos da América não existem esses limites mínimo e máximo de representação da vontade popular no órgão legislativo.

            Parece-me que a atual representação brasileira na Câmara dos Deputados fere o princípio do voto igual para todos os cidadãos (CF, art. 14), que é a aplicação particular do princípio democrático da igualdade em direitos de todos perante a lei.

            Um estado com 400 mil habitantes terá oito representantes, enquanto um de 30 milhões terá apenas 70. Isso significa um deputado para cada 50 mil habitantes (1:50.000) para o primeiro e um para 428.571 habitantes (1:428.571) para o segundo.

            Isso não é proporção, em qualquer linguagem aritmética ou algébrica, mas uma total desproporção,

            Miguel Reale (Parlamentarismo brasileiro, 1962, p. 31) diz que

            "[...] tal fato constitui verdadeiro atentado ao princípio da representação proporcional. A Câmara dos Deputados deve ser o espelho fiel das forças demográficas de um povo; nada justifica que, a pretexto de existirem grandes e pequenos estados, os grandes sejam tolhidos e sacrificados em direitos fundamentais de representação."

            Citando Sampaio Doria, Miguel Reale, na obra referida, diz que esse autor já profligava a desproporcionalidade no regime da Constituição de 1946, porque "a representação é do povo, sem distinção de estado"; a "lei não distingue o nascimento, ou o simples domicílio, para reconhecer, no direito de uns, mais valor que no direito de outros".


O Senado Federal

            S.P.Q.R. eram as iniciais da frase latina Senatus Populusque Romanus, cuja tradução em português é o senado e o povo romano. Era o lema dos estandartes das legiões romanas e o nome oficial da república romana. Figurava nas insígnias de guerra, nos edifícios públicos e nos ofícios.

            Diz a lenda que Rômulo, fundador da cidade de Roma, que fora amamentado por uma loba, é quem fundara o senado, o que havia feito com um grupo de 100 patrícios.

            O senado romano (Senatus) foi a mais remota assembléia política da Roma antiga, com origem nos Conselhos dos Anciãos da antiguidade oriental (4000 a.C.). Era a assembléia dos patrícios que constituía o Conselho Supremo de governo na antiga Roma. Um conselho assessor integrado por anciãos, donde vem o seu nome (senex, senectus, que quer dizer ancião, velhice, cabelos brancos).

            Durante a monarquia ou realeza, o senado ou conselho dos anciãos era o conselho dos reis, a quem estava subordinado. Sua competência era consultiva relativamente ao rei e confirmatória referentemente aos comícios, para cuja validade deveria obter o patrum auctoritas.

            Na fase republicana (de 510 a 27 a.C.), o senado tornou-se a mais alta autoridade do estado. Vitalícios, os senadores (senatores ou patres) fiscalizavam os cônsules, controlavam a justiça, as finanças públicas, as questões religiosas e dirigiam a política externa. Era o verdadeiro centro do povo, pois os magistrados tinham interesse em consultá-lo, antes de tomar deliberações mais importantes.

            Em 18 a.C., Augusto reduziu o número dos senadores a 600. Durante o principado, o senado manteve-se aparentemente em posição de destaque. Na realidade, porém, sua atividade era inspirada e orientada pelo príncipe (princeps), que detinha os poderes fundamentais da república, como a política externa.

            Essa, a origem histórica do nosso Senado.

            O dogma federalista brasileiro exigiu a necessidade do Senado como Câmara que representa os estados federados. Assim é que a Constituição de 1988 declara que o Senado Federal se compõe de representantes dos estados e do Distrito Federal, elegendo, cada um, três senadores (com dois suplentes cada), pelo princípio majoritário, para um mandato de oito anos, renovando-se a representação de quatro em quatro anos, alternadamente, por um e dois terços (art. 46).

            Quando postos dois cargos em disputa, os eleitores votam em dois candidatos para o Senado, sendo eleitos os dois que obtiverem o maior número de votos. Em razão de sua finalidade constitucional, todos os estados membros da Federação possuem igual número de representantes. Com 26 estados membros e um Distrito Federal, o Brasil tem 81 senadores.

            Não faz sentido o argumento da representação dos estados pelo Senado fundado na idéia, implantada inicialmente nos Estados Unidos da América, de que se formara de delegados próprios de cada estado, pelos quais participavam das decisões federais.

            Há muito não existe isso nos Estados Unidos e jamais existiu no Brasil, porque os senadores são eleitos diretamente pelo povo, tal como os deputados, por via de partidos políticos.

            A representação é partidária. Os senadores integram a representação dos partidos tanto quanto os deputados. Não raro se dá o caso de senadores de um estado, eleitos pelo povo, serem de partidos adversários do governador e defenderem, no Senado, programas diversos deste.

            Como conciliar tais situações com a tese da representação do estado?

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Sobre o autor
Máriton Silva Lima

Advogado militante no Rio de Janeiro, constitucionalista, filósofo, professor de Português e de Latim. Cursou, de janeiro a maio de 2014, Constitutional Law na plataforma de ensino Coursera, ministrado por Akhil Reed Amar, possuidor do título magno de Sterling Professor of Law and Political Science na Universidade de Yale.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Máriton Silva. A lei na filosofia, na teologia e no direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 989, 17 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8107. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

Texto baseado em série originalmente publicada no "Jornal da Cidade", de Caxias (MA), entre 15/05/2005 e 20/11/2005.

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