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A lei na filosofia, na teologia e no direito

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17/03/2006 às 00:00
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A lei no código sacerdotal

            Ao contrário de outras coleções, esse compêndio de leis não se encontra num só lugar, mas espalhado em várias fontes. Exemplo: Lv 1-7, sacrifício; Lv 11-13, pureza e impureza; Nm 29, 29, festas.

            É característica sua colocar a lei dentro de um contexto histórico, isto é, relacionando a origem da instituição com algum acontecimento nem sempre histórico no seu sentido genuíno.

            Foi assim com a proibição de sangue depois do dilúvio (Gn 9, 1-7), a lei da circuncisão que se segue à aliança feita com Abraão (Gn 17, 9-14), o ritual da Páscoa por ocasião da saída do Egito (Ex 12), a lei do sacerdócio no Sinai (Ex 28, 1; 29, 37), a lei dos levitas na partida do Sinai (Nm 3-4; 8, 5-28) e outras leis referentes aos sacerdotes e levitas depois da rebelião de Coré (Nm 16).

            Há outras leis rituais e cultuais que não possuem um contexto particular nos acontecimentos e são atribuídas a Moisés. Com certeza, impossível fazer um julgamento geral sobre a antiguidade delas, cuja origem deve ser estabelecida individualmente para cada caso.

            Muito provável que esse código seja, em muitos casos, uma lei sacerdotal, pois algumas leis rituais e cultuais tinham em vista ninguém mais a não ser os sacerdotes.

            Os termos israelitas para a lei, no sentido original, referem-se a leis definidas de forma e conteúdo distintas.

            Tôrah é o vocábulo mais comum para designar a lei no judaísmo. A sua etimologia diz que ele deriva de yarah, jogar ou deitar sortes. Assim, o seu sentido original é o do oráculo divino, revelado pela sorte. Daí ele passa a significar uma resposta divina, de modo geral. Como as respostas divinas eram comunicadas pelos sacerdotes, ele chega a exprimir a instrução sacerdotal referente a preceitos cultuais e morais. É assim mencionada em Is 8, 20; Jr 2, 8; 18, 18; Am 2,4. A palavra enfatiza a lei como revelação de Yahweh, transmitida pelos sacerdotes.

            ’Edôt, testemunhos. Expressão técnica usada para os termos da aliança de Yahweh com Israel, e que designa ou as promessas de Yahweh ou as obrigações que ele impõe a Israel. Por isso, o rei usava uma fórmula escrita do ’edôt na sua coroação (2Rs 11, 12). A dição ressalta a vontade revelada de Yahweh nas leis e também a concepção de lei como obrigação da aliança.

            Mishpat, juízo, indica uma decisão judicial. Palavra aplicada às leis civis e criminais (Ex 21, 1). Precedente judicial como fonte da lei, pode ser identificado com a formulação casuística de lei. Diversamente de tôrah,’edôt e dabar, exprime a origem humana da lei.

            Hôd, estatuto, literalmente, algo que ficou gravado. A sua fonte parece ser mais a autoridade pública do que um precedente judicial ou um costume.

            Dabar, palavra, quer dizer um pronunciamento divino e é usado para leis tão solenes como o decálogo (Ex 20, 1; 24, 3, "palavras e juízos"). Dá especial destaque à lei como sendo a vontade revelada de Yahweh e pode, mais provavelmente, ser identificada com a formulação apodítica da lei.

            Miçwah, mandamento, traduz a ordem emitida pela autoridade, tanto divina quanto humana, e é um termo geral que se aplica a outras ordens e não apenas à lei no sentido estrito.

            Na época antiga não havia ordenação propriamente dita. Era a própria função que fazia o sacerdote entrar no domínio do sagrado, iniciando o seu sacerdócio, oferecendo sacrifícios no altar, o que é a sua função essencial (Lv 1 5+), com a participação de toda a comunidade e prestando obediência ao seu código de leis.


A lei no judaísmo

            A formulação da lei israelita é encontrada nas leis civis e criminais do código da aliança. O mesmo existe no código deuteronômico, com certas variantes. Em vez da oração condicional, emprega-se ou o particípio ou a oração relativa.

            Exemplo da primeira está em Ex 21, 15: "Quem ferir seu pai ou sua mãe será morto." A segunda é ilustrada por Lv 20, 10: "O homem que cometer adultério com a mulher do seu próximo deverá morrer, tanto ele como a sua cúmplice."

            Na maioria dos outros códigos, aparece um simples imperativo ou proibição na segunda pessoa do singular e no imperfeito. Essa formulação não encontra paralelo em outras coleções do antigo Oriente Médio. É empregado nas leis morais, rituais e cultuais, e não em leis civis e criminais. Isso é uma criação da crença religiosa israelita. Essas leis exprimem a vontade revelada de Yahweh e os termos da aliança.

            O rei israelita era um juiz, e não um legislador. A fonte da lei consuetudinária era o próprio costume; muitas leis existiam simplesmente porque constituíam a maneira como as coisas sempre tinham sido feitas. O juiz decidia com base no costume conhecido e aceito. Geralmente, a fonte da lei israelita era a tradição determinada pelo juiz: o rei, o ancião e o sacerdote.

            As coleções israelitas são todas atribuídas à revelação que Yahweh fez a Moisés. A obrigação do cumprimento de sua lei decorria da aliança, de que a vida sob a submissão à lei constituía o dever que as promessas da aliança de Yahweh lhes impuseram.

            Em Israel não existia distinção entre a lei secular e a lei religiosa. Toda a lei é encarada como um dever religioso e impõe uma obrigação sagrada. Yahweh é quem recompensa e castiga sua observância ou a sua violação.

            A concepção da lei como a vontade revelada de Deus não encontra semelhança em outras coleções do antigo Oriente Médio. Tanto Hamurabi como Lipit-Ishtar recebem dos deuses a autoridade necessária para promulgar leis e a sabedoria requerida para formulá-las; mas as leis são resultantes de sua própria obra, de sua obra pessoal.

            Depois do exílio, a lei deixou de ser a regra que regia uma sociedade política independente; o judaísmo preservou-a, no entanto, fazendo dela um guia para a vida. O termo Torá (Tôrah) é usado para descrever toda a lei, uso que aparece também em textos pré-exílicos (Jr 8, 8; 9, 12; Os 4, 6; 5) e chega a exprimir o Pentateuco (2Mc 15, 9; Eclo 1, prólogo 1. 8. 24).

            Os escribas pós-exílicos identificam a lei com a sabedoria (Eclo 24; 39, 1-11) e nela encontram todo o conhecimento, humano e divino. A alegria dos judeus diante da lei reflete-se na Torá e nos salmos 19 e 119.

            Os rabinos incluíam a Torá entre os seres que existiam antes da criação. Por isso, a observância da lei era perfeição. Surgiu no judaísmo uma escola de fé que interpretava as obrigações da lei no sentido mais rigoroso.

            Para proteger o cumprimento da lei, seus adeptos "construíram um muro" em torno da lei; o muro consistia em pareceres ou normas legais que ampliavam as obrigações da lei muito além do sentido das palavras e, assim, tornavam-na mais difícil de ser violada.

            Essa, a "lei oral", à qual se atribuía o segundo lugar em autoridade somente em relação à própria Torá, e cuja origem, mediante uma construção artificial, remontava ao próprio Moisés. Ela estava preparada para incluir 613 "mandamentos" diferentes.


A lei no Novo Testamento

            No século II a.C., Ptolomeu II Filadelfo (238-246 a.C.) desejava ter, na grande biblioteca que fundara em Alexandria, uma versão do hebraico para o grego dos livros sagrados dos judeus. A seu pedido, 72 homens, seis de cada uma das 12 tribos, foram enviados a Jerusalém para fazer a tradução (LXX), que foi realizada para a grande comunidade judaica daquela cidade.

            A partir dessa época, foi introduzido o termo grego nomos (lei), para trasladar tôrah, significando a lei como tal, o pentateuco, o Antigo Testamento completo, o decálogo ou uma lei particular do pentateuco.

            Jesus observou a lei e nunca aceitou a acusação de que a houvesse violado; quando era incriminado disso, insistia que se tratava da lei oral, tradição humana (Mt 15, 3-6; Mc 7, 8s.13; Cl 2, 8), e não da torá, em que se baseava a censura (Mt 15; Mc 7).

            A atitude de Jesus em face da lei deve ser descrita como negativa. Os publicanos e os pecadores precedem os escribas e fariseus no reino dos céus (Mt 21, 28-32), e os pecadores arrependidos são melhores do que os justos que não têm arrependimento (escribas e fariseus, Lc 15, 1-10).

            As bem-aventuranças (Mt 5, 3-10) não contêm nenhum elogio à observância da lei. O reconhecimento por parte do Pai celeste depende da confissão de Jesus (Mt 10, 32s; Lc 12, 8s). Assim, Jesus declara-se o senhor do sábado (Mt 12, 8; Mc 2, 28; Lc 6,5). O publicano arrependido é perdoado, ao passo que o fariseu justo não o é (Lc 18, 9-14). Aqueles que obedecem a todas as ordens do seu senhor são servos inúteis que não fazem mais do que o seu dever (Lc 17, 7-10). Os escribas e fariseus apropriaram-se da chave do reino dos céus, de modo que nem eles entram nem permitem que outros entrem (Mt 23, 13: Lc 11, 52).

            A lei em relação às palavras de Jesus assemelha-se a um remendo de pano novo colocado numa roupa velha, ou ao vinho novo guardado em odres velhos (Mt 9, 16-17; Mc 2, 21-22) Lc 5, 36-37). Jesus, como filho do reino, está livre das obrigações impostas pela lei (Mt 17, 24-27). Ele não hesita em repetir e confirmar a lei (Mt 5, 21-48), e o tratamento que lhe dá aqui não tem nada da maneira rabínica; sua antítese é: "Dizia-se" e "Eu digo".

            Por outro lado, a atitude de Jesus não é a de uma rejeição puramente negativa. Sua missão não consiste em anular a lei, mas em levá-la ao seu cumprimento pleno, e entra-se no reino dos céus mediante a observância da lei (Mt 5, 17-20). Quando lhe perguntaram como se alcança a vida eterna, sua resposta foi: "observa os mandamentos" (Mt 19, 16-19; Mc 10, 17-19; Lc 18, 18-20). Ele reduz toda a lei ao mandamento do amor a Deus e ao próximo (Mt 22, 34-40; Mc 12, 28-34; Lc 10, 25-28). A justiça de seus discípulos deve superar a dos escribas e fariseus (Mt 5, 20). Os escribas e fariseus capricham nas minúcias da observância e omitem a virtude essencial; eles deveriam praticar as primeiras sem desprezar a segunda (Mt 23, 23s).

            Essa dupla atitude deve ser relacionada com a concepção mais larga da missão de Jesus. Ele rejeita a lei como um meio suficiente de chegar-se à justiça; além da lei, a pessoa deve aceitar Jesus como alguém cujas palavras não são apenas iguais à lei, mas como alguém que vem como um novo Moisés para revelar o Pai.

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            A lei em si é um meio insuficiente para se atingir a Deus; ela precisa ser cumprida plenamente, alcançar sua plenitude nele, Jesus. A lei é fundamentalmente aquilo que Jesus insiste que ela é: a vontade revelada de Deus. Os que aceitam essa revelação não podem fazer dela um pretexto ou uma desculpa para rejeitar a plenitude da revelação de Deus para a qual a lei se orienta.


A lei nos escritos paulinos

            A atitude de Paulo diante da lei é universalmente atingida pelo problema da lei aplicada ou não aos gentios convertidos ao cristianismo.

            A primeira reação da comunidade cristã em face da aceitação dos gentios foi a de que esses deveriam primeiro tornar-se judeus para depois se fazerem cristãos; é lógico que os judeus os julgavam, colocando-se na situação de uma comunidade judaica.

            A Igreja primitiva, porém, rejeitou essa exigência; no Concílio de Jerusalém aceitou a declaração de Pedro, de que tanto os gentios quanto os judeus se salvavam pela graça de Jesus Cristo (At 15, 11), e a afirmação de Paulo, de que o homem se torna justo não pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo (Gl 2, 16).

            O problema especulativo do sentido e do valor da lei não ficou resolvido tão facilmente quanto o problema prático de sua observância. Porque a lei é para Paulo a vontade revelada de Deus e, por isso, seria impossível rejeitá-la.

            Para ele era evidente que a vida e a santidade vêm por meio de Jesus Cristo e não mediante a lei (Gl 2, 21). Se o batismo é uma morte para a vida que se vivia antes, a pessoa batizada é libertada do jugo da lei (Rm 7, 1-6). Jesus Cristo realizou o que seria impossível a lei fazer: libertar do pecado, que também é uma "lei" (Rm 8, 1-3).

            Paulo recorre à história de Israel para mostrar que a lei não constituía uma barreira efetiva ao pecado (Rm 2, 17-24); na verdade, a lei não é melhor do que a "lei" que os gentios trazem em seus corações e que os faz praticar as obras da lei mesmo sem conhecê-la (Rm 2, 14-16).

            O Espírito vem pela fé e não pela lei (Gl 3, 2). A lei "provoca a ira" no sentido de que revela o pecado, manifesta o que há de pecado no homem e a importância deste para superar o pecado (Rm 4, 15; 5, 20; 7, 9; 2Cor 3, 6; Gl 3, 19). Porque a lei como reveladora do pecado é um instrumento de condenação, e não de salvação.

            O evento cristão equivale, pois, a uma nova criação (Gl 6, 15); os cristãos morreram para a lei (Rm 7, 4) com Cristo (Gl 2, 19), e, como Cristo é o novo Adão (Rm 5,15-19), a velha criação foi superada, tornou-se ultrapassada (Rm 10, 4).

            A lei, pela revelação que faz do pecado, trouxe uma condenação; ninguém está sujeito a ela (Gl 3, 13). Portanto, o destino da lei não era o de salvar o homem, mas de conduzi-lo a Jesus, o salvador; a lei era o pedagogo que levava as crianças à escola. Quando a criança atinge a maioridade, o trabalho do pedagogo termina. Aqui, a concepção que Paulo tem da lei atinge uma síntese.

            Paulo repete a palavra em que Jesus reduzia toda a lei ao mandamento do amor (Gl 5, 14). Da mesma forma, como um rabino experimentado, ele cita oportunamente a lei para ilustrar algum ponto, seguindo a maneira usada nas discussões rabínicas (1Cor 9, 8; 14, 21-34).

            A lei é freqüentemente mencionada em Hb, mas a ênfase recai sobre a lei natural e cultual, que explica a dignidade e a função do sacerdócio. O sacerdócio de Jesus é apresentado e explanado como um sacerdócio de Israel. Também aqui é aplicado o princípio da insuficiência da lei (Hb 7, 11.18s; 10, 1).

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Sobre o autor
Máriton Silva Lima

Advogado militante no Rio de Janeiro, constitucionalista, filósofo, professor de Português e de Latim. Cursou, de janeiro a maio de 2014, Constitutional Law na plataforma de ensino Coursera, ministrado por Akhil Reed Amar, possuidor do título magno de Sterling Professor of Law and Political Science na Universidade de Yale.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Máriton Silva. A lei na filosofia, na teologia e no direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 989, 17 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8107. Acesso em: 23 abr. 2024.

Mais informações

Texto baseado em série originalmente publicada no "Jornal da Cidade", de Caxias (MA), entre 15/05/2005 e 20/11/2005.

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