O Executivo em Yahweh
Que Yahweh seja rei verifica-se nitidamente em numerosas passagens do Antigo Testamento. Tal concepção, no entanto, peca por falta de unidade, e pode-se perguntar se a realeza de Yahweh constituía elemento básico da crença israelita.
Yahweh é rei de Israel (Nm 23, 21; Dt 33, 5; Jz 8, 23; 1Sm 8, 7; 12, 12). Ele é rei de todas as nações (Sl 22, 29; Zc 14, 16s). É rei em virtude da criação (Sl 74, 12).
O título lhe é conferido sem nenhuma especificação (Ex 15, 8; 1Rs 22, 19; Sl 146, 10; Is 6, 5). Ele é o rei salvador que vinga sua realeza por meio de suas obras salvíficas em favor de Israel (Sl 145, 11-13; Is 33, 22; 43, 14s; 52, 7). Essas suas obras às vezes são mais escatológicas do que históricas, o estabelecimento final de seu reino e de Israel como centro do seu reino (Is 24, 32; Ab 21; Sf 3, 15; Zc 14, 16).
Todos esses aspectos acham-se combinados nos salmos régios: Sl 47; 93; 95-99. Neles Yahweh é rei e conquistador das nações (Sl 47), rei da criação (Sl 93; 97), criador e rei de Israel (Sl 95), criador, rei e juiz das nações (Sl 96), rei de Israel e de todas as nações (Sl 99).
Muito difícil identificar qual desses aspectos teria sido o primeiro ou o principal. Ligado a essa dificuldade está o problema de saber em que período surgiu o conceito de Yahweh como rei.
As tradições da origem da monarquia incluem o argumento de que a realeza humana é um desrespeito à monarquia de Yahweh – até mesmo uma infração ou transgressão contra ela (Jz 8, 23; 1Sm 8, 7; 12, 12).
Essa idéia certamente predominou em Israel, mas resultou de uma construção teológica elaborada pelos escritores posteriores, que se opunham à monarquia. Ademais, a realeza de Yahweh provavelmente só surgiu depois que Israel instituiu para si a monarquia.
A. Alt (Essays on Old Testament History and Religion. New York: Doubleday Anchor, 1968) associou a idéia da realeza de Yahweh com a arca da aliança, o trono de Yahweh, e situou a origem da idéia entre o estabelecimento de Israel na Palestina e a instituição da monarquia.
W. Eichrodt (Theologie des Alten Testaments II/III. Stuttgart/Göttingen,1961) relacionou o título de rei com as obras escatológicas de Yahweh, fato que situaria a origem do título num período posterior.
A. R. Johnson (Sacral Kingship in Ancient Israel. Cardiff: University of Wales Press, 1955, 2nd edn, 1967) fez uma conexão entre o título e os festejos da aliança, que ele julgava ocorridos na monarquia, e, assim, considerá-lo-ia quase contemporâneo ao aparecimento desta.
Parece provável que Yahweh tenha sido primeiramente concebido como rei de Israel mesmo antes da instituição da monarquia, que a realeza de Yahweh sobre todas as nações resultou do fato de haverem sido levadas em conta suas obras salvíficas, e que sua realeza cósmica representou uma terceira etapa da idéia.
A designação deve ter sido, até certo ponto, fruto de uma atribuição feita a Yahweh de títulos e poderes que eram reclamados para outros deuses e dos quais Yahweh não poderia ser privado.
Na estrutura do pensamento mitológico, Israel encontrou recursos mediante os quais lhe seria possível descrever o poder e a soberania de Yahweh.
O Executivo na realeza israelita
A sua origem é relatada em 1Sm 1-12. O complexo dessas tradições impõe a conclusão de que a sua instituição foi uma resposta à crise criada pelos filisteus. Essa conclusão apóia-se também na descrição da dignidade real de Saul em 1Sm 13-31.
Ele aparece, de início, quase inteiramente, como um chefe militar que exercia apenas uma das duas funções: a da guerra ou a da lei. Reuniu uma pequena força de soldados profissionais, vinculados pessoalmente ao seu serviço (1Sm 13, 2.15; 14, 2.52; 18, 5). Davi era um dos membros dessa tropa.
Embora se diga convencionalmente mais de uma vez que Saul governou Israel ou todo o Israel, é impossível determinar quantas tribos aceitaram a sua soberania; é muito provável que Judá não estivesse entre elas.
Em Saul não se vê o caráter pleno da realeza israelita; ele assemelha-se mais a um juiz permanente.
A ausência de qualquer atividade legislativa ou judicial não decorre, porém, exclusivamente da crise em que surgiu sua grandeza. Mesmo nessa época remota já havia uma longa tradição relativa à lei israelita, que possuía uma fonte diversa do poder civil.
Essa tradição legal era anterior à monarquia. Nem durante o reinado de Saul nem posteriormente o rei esteve livre de aceitá-la e autorizado a zombar dela. A função legislativa do rei nunca foi enfatizada na tradição; mas a função judicial do rei era acentuada.
A base teórica do poder real em Israel difere da realeza em outros povos. O rei era um chefe carismático, tal como os juízes. Isso significa que ele estava impregnado do espírito de Yahweh para desempenhar suas funções.
O ato de conferir o espírito era liturgicamente simbolizado pelo rito da unção, que fazia do rei uma pessoa sagrada. Mas ele não é o representante de Yahweh, como o rei mesopotâmico, que era o representador dos deuses.
Como líder carismático que possui o espírito, ele é rei por eleição divina proclamada por meio de um oráculo profético. Essa eleição foi transferida para a dinastia de Davi como um todo (2Sm 7; Sl 89, 20-38), e é bastante provável que essa concepção tenha contribuído para a estabilidade da dinastia do rei até 587 a.C., em contraste com a instabilidade dinástica de Israel do Norte.
A qualidade carismática do rei desapareceu depois de Salomão, exceto nos cânticos litúrgicos, e começou a ser buscada no rei messiânico.
A sociedade pré-monárquica apóia-se na ratificação dos anciãos e do povo que acompanha a ascensão de um rei. Presume-se que isso ocorresse por ocasião da elevação de cada rei: Saul, Davi, Salomão, Roboão e Joás.
As tradições do Israel pré-monárquico jamais combinaram perfeitamente com a monarquia: uma rejeição da realeza de Yahweh. Não há razão para crer que essa tradição resulte inteiramente da criação de experiências posteriores com a monarquia. A insatisfação é expressa na "lei do rei" (Dt 17, 14-20; 1Sm 8, 11-17), sendo que ambos os relatos constituem composições posteriores.
A mesma atitude antimonárquica parece estar refletida em Os 8, 4; 10, 3s; 13, 11; esses trechos vão além de críticas tais como as encontradas em Jr 22, 1-5.15ss; Ez 22.34, que aceitam a instituição e rejeitam seus abusos.
O Executivo na administração israelita
A ascensão do rei é descrita em 1Rs 1, 32-48 e em 2Rs 11, 12-20. O ritual essencial era a unção, e a tradição inclui os símbolos da realeza: trono, coroa e cetro. As "testemunhas" mencionadas na coroação de Joás (2Rs 11, 12) são consideradas como um documento contendo o título do rei ou o oráculo de sua ascensão. Sl 2 é apontado como possível exemplo de tal oráculo.
A administração da monarquia israelita demonstra a influência recebida da corte egípcia. Não existia administração alguma quando Davi se tornou rei, e não se pode provar que ele não tenha adotado a estrutura administrativa de um antigo estado vizinho.
Os que viam a face do rei (2Rs 25, 19; Jr 52, 25) eram os admitidos regularmente a ficar na sua presença. Eram seus funcionários pessoais as mesmas pessoas mencionadas em 1Sm 16, 21; 2Sm 14, 24; 1Rs 12, 6; Jr 52, 12. O conselheiro (2Sm 15, 12-31; 16, 23; Cr 25, 16) era um sábio profissional. O escudeiro carregava as armas do rei na guerra e prestava-lhe serviços pessoalmente (1Sm 16, 21; 31, 4-6; 1Rs 9, 22; 2Rs 7, 2ss). O "amigo do rei" (2Sm 15, 37; 16, 16; 1Rs 4, 5) era provavelmente também um conselheiro.
Davi organizou a guarda real pessoal de maneira muito mais ampla do que o fizera Saul. Os corredores (1Sm 22, 17; 2Sm 15, 1; 1Rs 1, 5; 14, 27s; 2Rs 11, 4ss) formavam a escolta do rei, quando ele viajava, e a guarda do palácio, quando ele se achava em sua residência.
As listas dos oficiais de Davi e Salomão (2Sm 8, 16-18; 20, 23-26; 1Rs 4, 1-6) incluem o comandante do exército, o comandante da guarda real, o arauto, o escriba, os sacerdotes, o chefe dos trabalhos forçados (exceto na primeira lista de Davi), o amigo do rei (Salomão), o mordomo do palácio (Salomão) e o chefe dos governadores de distritos (Salomão).
O mordomo do palácio (1Rs 16, 9; 18, 3; 2Rs 15, 3; Is 22, 15ss) era provavelmente o principal oficial executivo do rei, correspondendo, com certeza, ao primeiro ministro do faraó no Egito. Foi encontrado um selo de Godolias com o nome desse ofício ou cargo. As funções do arauto foram reconstituídas com base no que se sabia a respeito do ofício no Egito; ele era encarregado de audiências, apresentava ao rei os negócios do dia e enviava ao povo as decisões do rei. Os príncipes formavam uma aristocracia da corte, conhecida sob o nome de príncipes ou "escravos do rei". Eles eram recompensados com doações feitas pelos estados do rei e com a participação nos lucros decorrentes dos empreendimentos reais.
Salomão organizou todo o reino, com exceção de Judá, em 12 distritos. Essa organização não sobreviveu depois dele, embora possa ter sido mantida pelos reis de Israel. Alguns críticos acham que 12 distritos de Judá podem ser encontrados em Js 15, 21-62 e sugerem que foram instituídos por Davi ou Salomão. Há quem os atribua também a Josafá ou a Josias.
A administração era totalitária, modificada, até certo ponto, pelo governo local. O rei pagava todas as despesas e recebia todos os rendimentos e lucros, ficando difícil fazer a distinção entre as propriedades da coroa e as do Estado.
As rendas provinham da guerra, dos tributos, das doações feitas por soberanos estrangeiros e de taxas regulares; estas, muito provavelmente, eram indicadas nas alças de jarras ou vasos que traziam o selo real, embora pudessem ser produzidas por terras da coroa. Os trabalhos forçados eram uma forma de taxação. Os bens da coroa consistiam em terras e rebanhos; as minas eram um empreendimento da coroa. Não é improvável que o comércio exterior constituísse um monopólio seu.
Uma posição típica do Executivo
Alguns estudiosos afirmam que houve uma co-regência a respeito de Salomão durante a vida de Davi e a propósito de Joatão durante a vida de Ozias. É quase certo também que Josafá, Ozias e Manassés de Judá, e Jeroboão II, de Israel tenham sido co-regentes (governantes concomitantes) com seus predecessores.
É pouco provável que o filho mais velho não desempenhasse um alto cargo, se já tivesse idade suficiente para tal e, nesse caso, talvez algo de semelhante a uma co-regência se apresentasse como fato normal.
O princípio da primogenitura não era evidente em Israel. Não há nenhuma indicação de que o filho mais velho de Saul tenha sido designado como seu sucessor. O herdeiro de Davi ficou desconhecido até que o próprio Davi o apontasse. Tanto Absalão quanto Adonias pareciam esperar que, como eram irmãos mais velhos sobreviventes, herdassem a coroa nas mesmas condições de um primogênito.
2 Sm 14 e 1 Rs 3 mostram que o rei como juiz tinha poder sobre todos os seus súditos. Esses textos não foram casos de apelação por parte de cortes inferiores. A omissão de Davi (2 Sm 15), que não quis ouvir os casos a ele apresentados, sugere que tal erro tenha sido em parte responsável pelo descontentamento popular provocado.
A posição cultual do rei israelita tem sido muito discutida. Uns acham que ela se inseria num mito e num modelo ritual, que tentavam reproduzir, recorrendo ao antigo Oriente Médio. Assim alegam que o rei é divino, pois se identifica com o deus da fertilidade, o qual morre e ressuscita. Acreditam, contudo, que a posição cultual do rei era mais importante do que se possa deduzir dos textos narrativos do Antigo Testamento.
É o rei que ergue um altar (2 Sm 24,25). Planeja a construção de um templo (2 Sm 7,2) e executa o plano (1 Rs 5,8). Constrói um santuário, regulamenta o calendário festivo (1 RS 12, 26-33). Designa sacerdotes (2 Sm 8, 17; 20,25; 1Rs 2, 26s; 4,2). Estabelece normas para a receita (rendimentos, tributos etc.) do templo (2 Rs 12, 5-9). Institui reformas cultuais (2 Rs 22, 3-7; 23). Oferece sacrifício (1 Sm 13, 9s; 2 Sm 6.13.17s; 24, 25; 1 Rs 3, 4-15; 8,5. 62-64; 9.25; 12,33; 2 Rs 16,12-15). Abençoa o povo (2 Sm 6,18; 2 Rs 8, 14). Esses trechos referem-se à primitiva monarquia. Nesse período o rei era o chefe do sacerdócio, como o era na Mesopotâmia.
A posição cultual do rei também pode ser deduzida dos salmos régios. A maioria deles vê o rei sob aspectos messiânicos. O Sl 110 é um cântico que assegura ao rei a eleição divina e a vitória. Ele está provavelmente relacionado com as cerimônias de ascensão e coroação. O Sl 2 é amplamente reconhecido como um cântico de ascensão, contendo o oráculo divino da eleição. O Sl 89, 20-38 celebra o oráculo de Natã e a aliança da eleição da dinastia de Davi. O Sl 72 festeja o domínio universal do rei e sugere que o rei era um instrumento da prosperidade exigido por Yahweh. O Sl 20 é uma oração pelo rei, contendo um oráculo favorável como resposta; ele é possivelmente uma oração feita em tempo de guerra. O Sl 21 é simultaneamente uma petição e uma ação de graças pela vitória desejada para o rei.
Certamente esses salmos não eram meramente ocasionais, mas pertenciam aos festejos reais de Sião e comemoravam a eleição da dinastia de Davi e de Jerusalém.