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A distância prática entre o juiz e o cidadão à luz do Estado Democrático de Direito

Agenda 26/03/2006 às 00:00

Criado nos primórdios do direito e perpetrado até os dias atuais, o afastamento da figura do magistrado em relação aos jurisdicionados contraria veementemente o Estado Democrático de Direito e, especialmente, a Constituição pátria, a qual elenca como direito fundamental do cidadão a inafastabilidade do Judiciário. Tal problema, objeto do presente trabalho, é preocupantemente comum nas relações entre o Poder Judiciário brasileiro e seus usuários. È importante ressaltar, porém, que não se objetiva aqui exaurir assunto tão vasto; busca-se apenas provocar reflexão acerca de fato infelizmente ordinário nas cortes de justiça brasileiras.

Sempre houve certo temor popular ante a figura do magistrado. Este muitas vezes era visto como a personificação do poder de império do Estado, alguém que tem o poder de prender, coagir, ao invés de justo solucionador de conflitos. Desde que os primeiros sacerdotes das civilizações antigas assumiram a função de julgar querelas, criou-se o mito do julgador dotado de poder divino, por vezes sábio, por vezes cruel. Mesmo após a organização e codificação do direito, procurou-se garantir que o conhecimento das leis fosse pouco divulgado, a fim de manter o poder de mando detido entre os membros da elite. Ainda nas formas mais primárias de democracia, esta era exercida apenas por pequena parcela da população, assim como o acesso aos órgãos de justiça.

Nas democracias atuais, porém, ainda que subsista – e talvez sempre haja – distinção de classes sociais, a persistência do distanciamento dos julgadores torna-se infundada. Contemporaneamente, os Estados democráticos levantam a bandeira do acesso à justiça como aspecto da participação popular no Estado. Nesta perspectiva insere-se a função dos advogados, do Ministério Público e da Defensoria Pública. Também, nas atuais democracias sociais, considera-se o povo usuário dos serviços prestados pelos poderes públicos – inclusive o Judiciário - e razão de ser, portanto, do trabalho de seus agentes. Contudo, tal idéia ainda não é totalmente disseminada.

Não é necessário valer-se periodicamente do Poder Judiciário para se deparar com a dificuldade de acesso aos nossos magistrados, basta ter - ou conhecer alguém que tenha - sido parte em alguma ação judicial. Muitas vezes, quem deseja falar com o juiz de sua causa, fora da ocasião da audiência, pode ter que esperar horas, passando ao menos por dois servidores de secretaria, ou pelo diretor da mesma. Caso trate-se de alcançar desembargador, a dificuldade agrava-se e a espera pode estender-se ainda mais, mesmo a parte convencendo os assessores que tal interpelação é necessária. Trata-se de experiência puramente empírica. Esta rotina dificulta o trabalho dos operadores do direito e a resolução das demandas, além de afastar a parte e desacreditar todo o sistema processual.

É certo que os servidores e agentes da justiça encontram-se constantemente assoberbados de trabalho, que é crescente o número de demandas – o que pode demonstrar algum progresso quanto à conscientização do cidadão comum de seus direitos – e que certo filtro de atendimento é necessário, porém não se pode chegar ao ponto de não satisfazer a necessidade dos jurisdicionados. A dificuldade de acesso, somada à morosidade dos processos e ao dispêndio das custas judiciais, pode inclusive forçar a autotutela, permitida no ordenamento jurídico brasileiro somente em caso de legítima defesa e desforço possessório. Ademais, o descrédito do Judiciário como instituição acompanha a desilusão em relação ao Estado como um todo.

O cidadão comum necessita, além da consciência de seus direitos, acesso confiável aos meios e profissionais que os promovem. É preciso eficiência na resolução das lides. Neste sentido, contamos com instrumentos fundamentais, como a garantia da gratuidade da justiça e a agilidade do rito dos juizados especiais cíveis e criminais, bem como da justiça do trabalho. Presencia-se também recente esforço legislativo voltado à simplificação do processo civil, na tentativa de desafogar um pouco os órgãos da justiça. Tais instrumentos aprimoram os procedimentos judiciais, mas não necessariamente refletem na conduta dos profissionais que os realizam. A melhoria desta depende não só de simplificação das rotinas, mas de esforço dos julgadores no exercício de seus ofícios.

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Neste diapasão, combate-se também a figura do juiz legalista. Este tipo de profissional caracteriza-se por ser pouco acessível não só às partes, mas ao problema social e concreto que lhe é trazido. Demasiadamente apegados à interpretação literal das leis, esquecem-se tais magistrados de que a equidade, os costumes e os princípios fundamentais também são fontes do direito. Assim, por não terem contato nem conhecerem a fundo a lide posta, por muitas vezes resolvem o processo, mas não o conflito. A função do julgador implica a adaptação da legislação ao caso concreto, buscando a resolução de um problema. A pura obediência à lei seca, desprovida de atividade intelectual, é incompatível com a jurisdição. Luiz Flávio Gomes explana com maestria a questão:

"A sociedade reclama, para preencher as suas justas expectativas, um novo modelo de juiz que, mais preocupado com a realidade social e com a eficácia material dos preceitos constitucionais, especialmente com os que prevêem direitos fundamentais, não é nada parecido com simples aplicador das leis, que quase nunca questiona sua justiça ou conformidade constitucional, que aplicava cegamente o dispositivo legal sem se preocupar com os valores superiores (constitucionais) do ordenamento jurídico." [01]

Completam o raciocínio Marcus Vinicius Amorim e Lilia Maia de Morais, ao abordar a natureza multidisciplinar da função judicante:

"Aponta-se, em seguida, a preparação dos magistrados para a administração da justiça como uma instituição política e profissional, abordando a necessidade urgente de dotar os juízes de conhecimento culturais, sociológicos, econômicos e políticos, no propósito de aproximar as decisões judiciais da realidade social, proporcionando a justiça." [02]

Do ponto de vista normativo, a feição de um Poder Judiciário reto e acessível encontra-se entre os direitos e garantias individuais do cidadão, firmados no artigo 5° da Carta Magna. Dentre estes, é preceituada a inafastabilidade do Judiciário em relação a quem dele necessita, a fim de proteger-se de lesão ou ameaça a direito. Tal possibilidade de alcance é protegida até mesmo da discricionariedade legislativa. Firma-se também que o Poder Judiciário deve agir de acordo com processo legalmente instituído, garantidos às partes o contraditório e a ampla defesa. Tal processo deve ter acessibilidade independente de poder aquisitivo, devendo ser prestada aos necessitados assistência jurídica gratuita. Ademais, todos têm direito a requerer certidões e peticionar junto ao Poder Público, com ou sem pagamento de taxas ou emolumentos. A publicidade dos atos processuais também é destacada, como garantia não só de acesso como de transparência dos procedimentos judiciais, não havendo – ressalte-se - restrições constitucionais à consulta de autos, exceto os casos de proteção à intimidade ou interesse social. Por fim, é até prevista ação específica, da qual o cidadão pode utilizar-se para combater ilegalidade, imoralidade ou qualquer lesão ao patrimônio público, independente de custas, salvo má-fé. Estas normas apenas exemplificam o perfil ideal de relacionamento do cidadão com o Poder Judiciário, traçado tanto ao longo da Constituição Federal como na legislação complementar e ordinária.

Também, na Lei Orgânica da Magistratura – lei complementar n° 35, de 14 de março de 1979 – estão dispostos os deveres dos profissionais essenciais ao Judiciário, aqueles a quem incumbe dizer o direito. Destaque-se, dentre estes, os cumprir e fazer cumprir, as disposições legais e os atos de ofício; tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça e atender aos que o procurarem. O magistrado deve também agir com independência, serenidade e exatidão, além de comparecer pontualmente à hora de iniciar-se o expediente ou a sessão, não se ausentando injustificadamente antes de seu término.

Assim, o ordenamento jurídico expressa consonância com as expectativas dos jurisdicionados e da opinião pública em relação ao Judiciário, que deve ser aberto, correto e eficiente. Para consecução deste fim, não basta existência de procedimento célere, requer-se especialmente conduta profissional compatível com tais conceitos.

A postura da magistratura e de todo o corpo de servidores do Judiciário deve estar voltada à justiça e à satisfação das partes, razões de ser de todo o aparato processual. O trabalho destes profissionais deve realizar os preceitos insertos na Constituição, de modo a promover o bem-estar e a inclusão social. Felizmente encontram-se, em meio à produção intelectual da magistratura, exemplos de conduta contrária ao engessamento da máquina judiciária:

"(...) não vejo em nós essa perspicácia superior à das demais pessoas. Também não vejo como podermos nos supor (mesmo que secretamente) representantes da Divindade." [03]

"(...) podemos, no nosso pequeno mundo de uma Vara ou pequena Comarca, fazer muito em favor da comunidade que espera nossas decisões. Podemos reunir as partes e seus advogados, conversar com elas para conhecer em profundidade e em detalhes suas lides e tentar, nessas mesas redondas, solucionar não somente os processos sob nossa responsabilidade, mas, se possível, as próprias lides." [04]

" (...) O que ameaça o juiz, numa democracia, é o perigo do hábito, da indiferença burocrática, a irresponsabilidade anônima. Nós queremos - pedia Calamandrei - juizes com almas, engagés, e que saibam levar com humano e vigilante desempenho o grande peso que implica a enorme responsabilidade de fazer justiça." [05]

Espera-se que a posturas descritas sejam difundidas por todos os julgadores brasileiros, a fim de alcançarmos um serviço jurisdicional salutar, condizente com a previsão normativa e a necessidade social.

A sociedade brasileira necessita de juízes e desembargadores dotados não só de conhecimento técnico, mas de consciência social. É imprescindível afastar-se o ascetismo e o legalismo das nossas cortes, a fim de dar-se espaço à justiça concreta. E que a nova geração esteja em sintonia com a concepção contemporânea da magistratura, de modo a limitar a visão do julgador-divindade aos livros de história.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1988), Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.

________. Lei complementar n° 35, de 14 de março de 1979. Dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 14 mar. 1979.

GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

MARQUES, Luiz Guilherme. Perfil do juiz ideal na Índia antiga. Disponível em: <https://investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/historia-do-direito/4446-perfil-do-juiz-ideal-na-india-antiga>, acesso em 16.fev. 2006.

__________. A missão do juiz do século XXI. Disponível em: <https://investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/judiciario/165098-a-missao-do-juiz-do-seculo-xxi>, acesso em 16.fev. 2006.

OLIVEIRA, Marcus Vinicius Amorim de; MORAIS, Lilia Maia de. O Poder judiciário e os desafios do estado contemporâneo. [S.l.]: [S.n.], 1998.

ZAHLOUTH JÚNIOR, Carlos. Para o juiz atuar melhor. Associação dos Magistrados Brasileiros, Brasília DF, v. 01, p. 10.


Notas

  1. GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 33.

  2. OLIVEIRA, Marcus Vinicius Amorim de; MORAIS, Lilia Maia de. O Poder judiciário e os desafios do estado contemporâneo. [S.l.]: [S.n.], 1998, p. 18.

  3. MARQUES, Luiz Guilherme. Perfil do juiz ideal na Índia antiga. Disponível em: <https://investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/historia-do-direito/4446-perfil-do-juiz-ideal-na-india-antiga>, acesso em 16.fev. 2006.

  4. MARQUES, Luiz Guilherme. A missão do juiz do século XXI. Disponível em: <https://investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/judiciario/165098-a-missao-do-juiz-do-seculo-xxi>, acesso em 16.fev. 2006.

  5. ZAHLOUTH JÚNIOR, Carlos. Para o juiz atuar melhor. Associação dos Magistrados Brasileiros, Brasília DF, v. 01, p. 10.

Sobre a autora
Juliana de Britto Avelino

pós-graduanda em Direito pela Universidade de Fortaleza

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AVELINO, Juliana Britto. A distância prática entre o juiz e o cidadão à luz do Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 998, 26 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8136. Acesso em: 19 dez. 2024.

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