Sumário:I. Introdução. II. Breve Histórico. III. Eficácia plena da norma constitucional. IV. Conclusão.
1.Introdução
Trata-se de estudo sobre a possibilidade de propositura de ação judicial por aposentados do serviço público ou pensionistas respectivos, portadores de doença incapacitante, ante a inércia do Estado da federação em promover a imunidade [01] conferida pelo §21 do artigo 40 da Constituição Federal, sob o argumento da indispensável promulgação de lei estadual regulamentadora respectiva [02].
Por primeiro, apresenta-se um breve histórico sobre a contribuição previdenciária dos inativos e pensionistas, no âmbito do RGS, a partir da EC 20/98, passando-se pela EC 41/03 e culminando com a EC 47/05 (a conhecida PEC Complementar), que instituiu a imunidade em dobro ao portador de doença incapacitante.
Após, a partir da posição atual da Procuradoria do Estado do Rio Grande do Sul sobre o tema, discorre-se sobre as formas alternativas para alcançar tal imunidade, assim como aponta-se os imediatos beneficiários e os fundamentos para o pleito judicial.
II.Breve histórico:
Com a EC 20/98, o regime próprio de previdência dos servidores públicos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios passou a ter caráter contributivo.
Dessa forma, numa primeira leitura, entendeu-se possível a contribuição de inativos e pensionistas, sendo que, no âmbito estadual do Rio Grande do Sul, vigente estariam a Lei Estadual nº 7.672/82 [03], que disciplinava o IPÊ, como também a Lei Complementar Estadual nº 10.588/95, que dispunha sobre a contribuição suplementar na ordem de 2%.
No entanto, na medida em que não houve, nesta Emenda, previsão constitucional expressa sobre a forma como mantido o regime previdenciário do servidor, passou a jurisprudência [04] gaúcha a ter como aplicável o que dispunha o artigo 40, § 12 da CF, introduzido pela EC 20/98, segundo o qual "o regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo efetivo observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social". Sendo que dentre os critérios e requisitos do regime geral, destaque para o inciso II do artigo 195, que vedava a incidência de contribuição sobre aposentadoria e pensão.
Assim, na vigência integral da EC 20/98, sob o fundamento do §12 do artigo 40 c/c o artigo 195, II da CF, fixou-se como ilegal qualquer desconto de contribuição previdenciária de inativos e pensionistas com base nas então em vigor Lei Estadual nº 7.672/82 e na Lei Complementar nº 10.588/95 (esta última até a modificação operada pela Lei Complementar nº 11.476/00, que expressamente excluiu a contribuição suplementar de 2% de inativos e pensionistas).
Sendo que somente com a EC 41/03, publicada em 19/12/2003, é que houve a determinação expressa, na nova redação do ‘caput’ do artigo 40, da incidência de contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentadoria e pensão, com percentual igual dos servidores ativos, incluindo aos que já em gozo dos benefícios, com a ressalva da imunidade inscrita na redação dada ao §18º do citado dispositivo constitucional, até o teto máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social, nos termos do artigo 201 da CF.
No entanto, como dependente de lei respectiva instituidora, tal desconto dos inativos e pensionistas, a partir do teto do §18 do artigo 40 [05], no âmbito estadual do Rio Grande do Sul somente pode ser considerado legal após a vigência da Lei Complementar nº 12.065/04, em 29/07/04, que disciplinou a contribuição previdenciária do novo IPÊ (RPPS/RS).
Ou seja, obedecido o qüinqüênio prescricional, é pacífico que devem ser restituídos os descontos mensais previdenciários de inativos e pensionistas, a qualquer título, até 29/07/04, corrigido monetariamente pelo IGP-M desde o desembolso, mais juros de mora de 1% ao mês, desde a citação ou do trânsito em julgado da sentença.
Por fim, como norma complementar da reforma previdenciária, em 06/07/2005 entrou em vigor a EC 47/05, com efeitos retroativos à data de vigência da EC 41/2003, incluindo o §21 ao artigo 40 da CF, no sentido de ampliar em dobro a imunidade inscrita no seu §18, "quando o beneficiário, na forma da lei, for portador de doença incapacitante".
Imunidade ampliada para o valor atual de R$ 5.336,30 que é objeto do presente estudo, em razão da recente polêmica sobre sua possível aplicação imediata, principalmente face à legislação do Imposto de Renda, que trata de hipótese de isenção similar e da legislação que dispõe sobre a aposentadoria por invalidez.
III-Eficácia plena da norma constitucional:
No que importa para o tema, em resposta a consulta formulada pela Secretaria Estadual da Fazenda, a Procuradoria do Estado do Rio Grande do Sul, através de Parecer nº 14379 da lavra da Dra. Marília Francisca de Marsillac, entre outras questões próximas, concluiu que não há viabilidade de aplicação imediata do §21 do artigo 40 da CF aos inativos e pensionistas portadores de doença incapacitante, porque dependente de anterior provimento legislativo estadual.
Isto porque, no entendimento do Estado do Rio Grande do Sul, em resumo a) trata-se de regra geral e abstrata de imunidade, que demanda funcionalidade para sua correta aplicação; b) imperiosa a submissão ao princípio da legalidade estrita, inscrito no inciso I do artigo 150 da CF e c) o próprio dispositivo constitucional em questão fala em aplicação ‘na forma da lei’.
Neste sentido, fato certo é que ainda não foi editada lei estadual, nem sequer se tem notícia de projeto respectivo, que regulamente especificamente essa recente imunidade conferida pelo §21 do artigo 40 da CF.
Assim, prevalecendo o entendimento da Procuradoria do Estado do Rio Grande do Sul, esse importante comando constitucional, com direto reflexo alimentar, ao menos do âmbito deste Estado fica suspenso de aplicação sem prazo determinado, como se de norma constitucional de eficácia limitada se tratasse.
No entanto, a eficácia dessa norma constitucional deve ser melhor definida, apontando-se qual comando especificamente necessita de regulamentação, para se chegar a conclusão de que tal funcionalidade já existe no direito pátrio.
Isto porque é evidente que o objeto na norma constitucional em questão – a limitação em dobro da incidência da contribuição previdenciária de aposentados e pensionistas, é auto-aplicável, pois não há espaço para qualquer dúvida de que, no caso, somente poderá incidir quando o(s) benefício(s) superar(em) "o dobro do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral da previdência social de que trata o art. 201 desta Constituição".
Ou seja, comando inicial da norma constitucional suficiente para definir que, para a espécie tributária em questão, somente a partir do valor atual de R$ 5.336,30 é que esta poderá ser descontada do contra-cheque do aposentado ou pensionista portador de doença incapacitante.
Em outras palavras, o objeto da norma é certo e determinado, específico para a espécie tributária em questão, com valor definido no próprio tipo constitucional, sem qualquer abertura para escalonamento ou exceção.
Por isto, é plena a eficácia da primeira parte da norma constitucional em questão, já que seus comandos, no dizer de Jose Afonso da Silva, "... produzem todos os seus efeitos essenciais (ou têm possibilidade de produzi-los), todos os objetivos visados pelo legislador constituinte porque este criou, desde logo, uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto" [06].
Dessa forma, fica claro que a expressão "nos termos da lei", contida na parte final da norma constitucional em referência, dirige-se exclusivamente para o sujeito beneficiado com o objeto na primeira parte definido, no sentido de que o que de fato necessita funcionalidade é quem se enquadraria no conceito de portador de doença incapacitante.
Ocorre que, face o princípio constitucional da isonomia, não podem existir várias definições de portador de doença incapacitante, independentemente para qual tipo de benefício se quer enquadrá-lo, se para isenção de imposto de renda, aposentadoria por invalidez ou imunidade de contribuição previdenciária.
Em outras palavras, o inativo ou pensionista não pode ser portador de doença incapacitante para a isenção do imposto de renda e assim não ser considerado para a imunidade de contribuição previdenciária. O mesmo ocorrendo quanto ao deferimento da aposentadoria por invalidez.
Lembrando que a enumeração das doenças incapacitantes, em lei, nunca pode ser taxativa, pois é da natureza do conceito ser concretizada pela análise técnica, via perícia médica oficial, mesmo nos casos em que não relacionada em algum texto normativo.
É o que defende o Conselheiro César Santolin, citado no Parecer 2/2004 [07], da lavra da Auditora Heloisa Trípoli Goulart Picinini, do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, in verbis:
"Efetivamente, entender-se que a lei de âmbito restrito (não lei nacional, mas federal,estadual ou municipal) é que definirá o conteúdo da expressão ´´doença grave, contagiosa ou incurável´´ aponta na própria negação do conteúdo axiológico da norma inserida no art. 40, §1º,I, da Constituição Federal. Isto porque, em primeiro lugar, a qualificação de ´´grave, contagiosa ou incurável´´ não é dicção da lei, mas da ciência especializada, pois só ela pode dizer com a certeza necessária sobre esta circunstância, que, aliás é de natureza dinâmica (o que foi ou égrave, contagioso ou incurável não necessariamente continua sendo, no presente, ou continuará sendo, no futuro, ante os naturais avanços da Medicina). Em segundo lugar, esta condição não pode ser variável espacialmente, de modo que o que é incurável em Porto Alegre não o seja em Canoas, ou o que é contagioso em Pelotas também não ocorra em Frederico Westphalen. A vingar a tese de que a lei, textualmente, e a lei local, é quem define qual ou quais doenças são ´´graves´´, ´´contagiosas´´ ou ´´incuráveis´´, estar-se-á afirmando exatamente o contrário. Neste sentido, a teleologia do dispositivo constitucional tem que ser outra: a aposentadoria será integral em todos os casos onde houver ´´doença grave, contagiosa ou incurável´´, cabendo a lei nacional (e somente a ela) especificar esta condição, que nunca poderá ser no sentido de relacionar taxativamente os casos, mas apenas no de remeter aos critérios médicos que deverão ser empregados no caso concreto (´´núcleo normativo mínimo´´)."
Assim, no momento em que já existe lei, no âmbito federal [08] e estadual [09], classificando previamente as doenças consideradas incapacitantes, de forma aberta, todos os que nela enquadrados são potencialmente beneficiários da imunidade de que se fala.
Enfim, o que a norma constitucional em referência exige definição – o sujeito portador da doença incapacitante, já existe no direito pátrio, fato que lhe confere eficácia plena para aplicação imediata.
E veja-se que não se está defendendo a desnecessidade de exame pericial oficial, por parte do Estado, para a concessão do benefício.
Antes pelo contrário, é evidente que a imunidade em questão deve passar por uma análise administrativa do órgão pagador, como qualquer pedido feito por servidor, aposentado ou pensionista.
O que não se aceita é o Estado negar esta análise caso a caso, num prazo razoável ao requerente do benefício, sob o argumento, sem prazo definido, de ausência de lei estadual regulamentadora da norma constitucional em questão.
Neste sentido, basta ao órgão estadual responsável expedir norma administrativa, com as instruções e procedimentos a serem adotados para tais pleitos, tal como fez o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, via Instrução Normativa 06/2005, utilizando-se de sua consolidada materialmente autonomia administrativa e financeira.
Concluindo, caberia ao Poder Executivo instruir, com máxima urgência, os expedientes administrativos de requerimento de imunidade em dobro da contribuição previdenciária de seus aposentados e pensionistas, sob pena de afronta ao princípio constitucional da solidariedade e da dignidade humana.
Lamentavelmente quedando-se inerte o Estado, como confirmado pela aprovação do Parecer acima citado, cabe o recurso ao Poder Judiciário, através de ação individual do portador de doença incapacitante, para ver reconhecido seu direito, inclusive com efeitos retroativos à data de vigência da EC 41/03 se for o caso.
Solução acima que não impede a propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão, por quem constitucionalmente legitimado, obrigando o Estado a editar tal norma que defende indispensável.
IV_Conclusão:
Considerando as premissas doutrinárias e legais acima expostas, considerando a posição do Estado do Rio Grande do Sul de indeferir qualquer pleito de que trata o §21 do artigo 40 da CF, pois "dependente de anterior provimento legislativo a ser editado pelo Estado", resta ao servidor público aposentado ou respectivo pensionista buscar tal benefício junto ao Poder Judiciário, via ação individual.
Notas
01
"a qualidade da situação que não pode ser atingida pelo tributo, em razão de norma constitucional que, à vista de alguma especificidade pessoal ou material dessa situação, deixou-a fora do campo sobre que é autorizada a instituição do tributo. ... O fundamento das imunidades é a preservação de ‘valores’ que a Constituição reputa relevantes. ... Não se trata de uma amputação ou supressão do poder de tributar, pela boa razão de que, nas situações imunes, não existe (nem preexiste) poder de tributar". (Amaro, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, Editora Saraiva, 4ª edição, SP, 1999, pp. 145)02
Ao contrário da Procuradoria do Município de Porto Alegre, que entende pela necessidade de lei complementar federal, nos termos do artigo 146, II da CF03
Art. 42 - A receita do Instituto será constituída de: a) contribuição mensal do segurado, sob a denominação de contribuição, equivalente a nove por cento do salário de contribuição, a ser descontada compulsoriamente na folha de pagamento, não podendo ser inferior à correspondente ao padrão inicial do Quadro Geral dos Funcionários Públicos Civis do Estado, destinada ao custeio dos benefícios e serviços;04
Com a superveniência da Emenda Constitucional 20/98, foi estabelecido um novo regime de previdência de caráter contributivo, que definiu como contribuintes unicamente os ‘servidores titulares de cargos efetivos’. Assim, foi alterada a orientação deste Supremo Tribunal sobre a matéria, tendo o Plenário, no julgamento da ADI 2.010-MC, rel. Min. Celso de Mello, unânime no ponto em questão, DJ de 12/04/02, assentado que a contribuição para o custeio da previdência social dos servidores públicos não deve incidir sobre os proventos ou as pensões dos aposentados e pensionistas. Tal entendimento se aplica aos servidores da União, bem como aos dos Estados e Municípios, que, portanto, estão impedidos de exigir, de seus pensionistas, o correspondente pagamento da seguridade social, a partir da alteração da CF/88, conforme decidido na ADI 2.188-MC, rel. Min. Néri da Silveira, Plenário, unânime, DJ de 09/03/2001, e na ADI 2.158-MC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, unânime, DJ de 1º/09/2000, entre outros julgados05
atualmente em R$ 2.668,15.06
Silva, Jose Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Malheiros, SP, 4ª ed., 2000, pg. 8207
http://www.tce.rs.gov.br/Pareceres_ASC/Pareceres_de_2004/index.php08
art. 6º, inciso XIV da Lei Federal nº 7.713/88 (com redação dada pela Lei Federal nº 11.052/04) e artigo 151 da Lei nº 8.213/91, complementado pelo art. 1º da Portaria Interministerial MPAS/MS nº 2.298/01, que elencou as doenças a que se refere o inciso II do Art. 26 da Lei nº 8.213, de 1991.09
Art. 158, §1º da Lei Complementar Estadual nº 10.098/04 (ESTATUTO E REGIME JURIDICO UNICO DOS SERVIDORES PUBLICOS CIVIS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL)