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Direito de habitação.

Dilemas de acionabilidade. Concretização

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Agenda 11/05/2006 às 00:00

4. Concretização judicial do direito à moradia e a reserva do possível

Como lembra Regina Ferrari, quando a Constituição Federal afirma que todos devem ter direito ao bem social correspondente à moradia, é preciso enxergar que tal não investe o seu titular numa condição exigibilidade plena, pois "seria impossível admitir (...) que a todo indivíduo que demonstrasse não possuir moradia caberia ação contra o Poder Público para recebê-la (...)". [24]

A concretização dos direitos sociais, no que se refere a prestações materiais, encontra seulimiteno princípio da reserva do possível [25]. Trata-se de um princípio decorrente da atividade financeira do Estado alusivo à impossibilidade de um magistrado, no exercício jurisdicional, ou, até mesmo, o próprio Poder Público, de efetivar ou desenvolver direitos, sem que existam meios materiais para tanto, o que consequentemente resultaria despesa orçamentária oficial, ainda que inexistente a previsão do gasto.

A partir do instante em que a própria doutrina constitucionalista cogita um esvaziamento de plena eficácia dos direitos sociais ante tênue diferenciação face à categoria direitos fundamentais, onde ecoa a lição de Canotilho [26], debilita-se a possibilidade do controle judicial de implementação e execução de políticas públicas, nos limites estabelecidos pela própria Constituição [27].

O peso dos argumentos que levam, no entanto, a desprezar-se o necessário papel do Poder Judiciário na chancela de defesa dos direitos sociais conspurcados, é certamente questionável. Aliás, é a ausência de densa argumentação jurídica, fundada na racionalidade pós-positivista que aporta em nossa tradição jurídica, que conduz a essa obliteração dos direitos sociais, em especial de direitos sociais, como os relativos à saúde e à moradia, pela própria extensão de conseqüências que esse direito subjetivo desencadeia.

O revés econômico pelo qual passa nosso País, à conta de sua débil condição de modernidade neoliberal tardia, arrefece as expectativas quanto à construção de um necessário aparato constitucional de excelência decisória e compromisso com o ideal democrático projetado nas linhas da Constituição. As adaptações sofridas pelo Texto de 1988 demonstraram, tão só, como é fácil levar a débito a perenidade das convicções ilusórias de um Estado social municiado para a concreção dos direitos de cidadania.

O problema central a ser perseguido na sondagem em prospecção motiva-se, em sendas críticas, na ausência de um eixo discursivo concentrado na realidade constitucional vivida: a doutrina da aplicabilidade das normas constitucionais, a despeito da notável evolução conceitual desenvolvida, sobretudo, a partir do final da década de 60, com a obra de José Afonso da Silva [28], deixa-se esvanecer diante da insegurança interpretativa (ou da própria aplicabilidade da qual é ínsita) que ocasiona em lindes práticos.

Ocorre, nesta seara, um processo curioso de transposição teórica de marcos estrangeiros, à vista da fácil captação e assimilação acrítica dos sopros alienígenas, que insistem em imiscuir-se no perscrutar da realidade sócio-legal brasileira, pelos próprios investigadores pátrios, sem o mínimo cuidado com o peculiar paradigma alçado pelo contexto brasileiro.

Com efeito, é na própria deblateração da eficácia jurídica das normas que amparam direitos sociais tal como o direito à moradia, entre tantos outros, que vislumbra-se o problema do esvaziamento da argumentação jusfundamental, por meio de insípidos embates acadêmicos e sua justaposição ante à prática social de exclusão e desprezo aos comiserados. É exatamente na busca por marcos lógicos mais apurados que se poderá insculpir um sistema de fundamentação e interpretação do contexto dos direitos de especial categoria.

Diante da inoperatividade do legislativo, a via judiciária apresenta-se como forma de dialógica democrática entre o cidadão e o Estado. Mas em que medida poderia o Judiciário determinar o atendimento da pretensão posta em face da ausência de mecanismos suficientes para o amparo habitacional sob a responsabilidade das autoridades representativas? [29]

Não se trata apenas de saber se um juiz pode ou não determinar o fornecimento de medicamentos ou que seja assegurada a entrega de uma unidade habitacional a um grupo de desabrigados em prováveis situações-limite da vida prática, mesmo em face da ausência de texto normativo especifico ou de programa social já formulado pelo próprio Executivo. A hipótese aqui sindicada verte-se à necessidade eleição de um padrão discursivo capaz indicar parâmetros para aferir a legitimidade dos atores judiciais no controle das políticas públicas sociais, demonstrando que a criação/fiscalização de tais corresponde à noção de juridificação da política sem que isso implique rompimento com a teoria democrática da maioria.

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Para alcançar esse desiderato, é necessário, sobretudo, romper com as teses sub-desenvolvidas de um direito constitucional de baixa eficácia e com a falácia da "reserva do possível", esta última, segundo Andreas Krell, "fruto de um direito constitucional comparado equivocado". [30]

De outra sorte, lembra Ricardo Lobo Torres que, embora o Supremo Tribunal Federal tenha decidido que o Executivo não está obrigado a pagar precatório judicial se não houver recursos disponíveis [31], esse entendimento não deve se estender para os casos em que se discute a garantia do "mínimo existencial" – a própria noção de direitos fundamentais sociais –, "que tem prevalência sobre eventuais sobras de caixa". [32]

O debate tem evoluído substancialmente: prova disso é que o Supremo Tribunal Federal já decidira, em outra ocasião, acerca possibilidade de controle judicial das políticas públicas, mesmo que sua formulação e execução presumam-se reservadas aos demais Poderes:

Não obstante a formulação e execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato coletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. [33]

Não obstante, o problema acerca de uma gradação máxima de acionabilidade dos direitos sociais ainda está longe de um deslinde teórico e prático-dogmático [34].

Na visão de Böckenförde, os direitos sociais não exprimem, por si mesmo, um conteúdo fixo quanto à extensão de sua eficácia, se de mínima, média ou máxima gradação, de sorte que os direitos fundamentais cingem-se a – nada mais que – tarefas constitucionais (Verfassungsaufträge) [35].

Na esteira da conclusão pontual de Loreci Gottschalk, em sua exauriente dissertação de mestrado, quando se fala de direito à habitação, não se pode almejar que seu conteúdo esteja na pertença das opções constitucionais: "antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efetividade está dependente da chamada ´reserva do possível´". [36]


5. As políticas sociais de habitação: as novas diretrizes da Secretaria Nacional de Habitação

O Sistema Financeiro de Habitação (SFH), instituído pelo art. 8º da Lei 4.380, de 21 de agosto de 1964, baseou-se no princípio de que os recursos para a execução de um plano habitacional deveriam ser captados, basicamente, em âmbito interno do País, somando-se as disponibilidades dos órgãos oficiais com a dos órgãos particulares, estimulando-se por variadas formas a poupança dos indivíduos ou grupos.

Nesse desiderato, diversos mecanismos foram surgindo, de modo a permitir o fomento habitacional, tal como as cooperativas habitacionais, constituídas com o objetivo de proporcionar, exclusivamente a seus associados, a construção e aquisição de imóveis e sua integração sócio-comunitária [37].

Com o passar do tempo, a correção monetária tornou-se fator proibitivo da criação de moradia, questão sumamente agravada com a desvirtuação, pelos próprios órgãos responsáveis, das normas do SFH, ocasionando fissuras nos contratos de mútuo e, inviabilizando sobremaneira o extinto Fundo de Compensação de Variações Cambiais – FCVS, criado com o objetivo de cobrir o pagamento dos saldos residuais de financiamentos do SFH.

Diante de tais circunstâncias, os mutuários que conseguiam suportar os reajustes das prestações chegavam ao final do contrato devendo o dobro do valor financiado, além de ter que repactuar o débito por muitos anos [38]. Após a extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH), a Caixa Econômica Federal passou a gerir os direitos e obrigações do sistema de financiamento habitacional [39].

O SFH foi desgastado por sucessivas medidas de operacionalização que, contrapostas ao panorama econômico e à própria política de finanças do Governo, acabaram por afastar os adquirentes da casa própria da efetiva conquista de sua moradia condigna, havendo em muitos casos, o leilão do imóvel financiado, resultante de execução extrajudicial. Por esse exemplo, percebe-se claramente que os desdobramentos do SFH trouxeram severos prejuízos para a economia popular, malogrado o desiderato de propiciar a construção e a compra de residências [40].

O arrefecimento do sistema habitacional nacional e os problemas oriundos dos contratos de mutuários do SHF, que só recentemente vêm sendo equacionados, ao tempo em que foram propostas mudanças estruturais no setor. Com o Ministério das Cidades, criado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 1º de janeiro de 2003, a política setorial de desenvolvimento urbano, incluindo-se, a habitação, foi impulsionada. Com o aparecimento da Secretaria Nacional de Habitação, órgão vinculado ao Ministério das Cidades, busca-se o equacionamento do déficit habitacional brasileiro [41].

O foco do novo paradigma de política habitacional é garantir moradias para as pessoas que vivem em guetos, cortiços, favelas e palafitas nas regiões metropolitanas. No primeiro semestre de 2004 foi lançado o Programa de Crédito Solidário, que possibilita um leque de ações de interesse social desenvolvidos pelo Governo, utilizando recursos do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), que desde 1995, "fugindo à sua destinação legal, eram empregados somente em aplicações financeiras, embora, de acordo com a lei que o criou, devessem ser destinados ao financiamento de investimentos na área de habitação popular". [42]

Em 2004, as estimativas do Ministério das Cidades indicam que foram atendidas cerca de 543.000 famílias, com a aplicação de recursos da ordem de R$ 8,8 bilhões [43].

Já em 2005, as Portaria Conjunta nº 1 e 2, das Secretaria do Tesouro Nacional e Secretaria Nacional de Habitação, deram início a uma nova etapa na política habitacional nacional, o chamado Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social (PSH). No último dia 19 de abril de 2005, foi editada a Portaria nº. 289, da Secretaria do Tesouro Nacional, em que foram homologadas as ofertas de recursos públicos destinados a 29.992 novos financiamentos para atender famílias de baixa renda.

A partir do momento em que o Governo possa reafirmar e praticar, efetivamente, medidas de implementação do direito social à moradia, alguns efeitos positivos almejados poderão ser sentidos, de acordo com o pesquisador Nelson Saule Junior [44]:

- A faculdade de o cidadão exigir de forma imediata as promoções e ações constitutivas desse direito, face à inércia do Estado que pode configurar a inconstitucionalidade por omissão;

- O direito de acesso à justiça, mediante ações e processos judiciais eficazes, destinados à proteção do direito à moradia;

- O direito de participar da formulação e implementação das políticas habitacionais.

Há de se levar em conta, ainda, que o problema habitacional envolve aspectos plúrimos, a começar pela própria perspectiva da dignidade humana, ínsita à questão, passando pelo foco da saúde pública, até chegar ao que hoje se convencionou chamar direito ao desenvolvimento: a construção civil, cujo peso na formação do Produto Interno Bruto é estimado em 19%, responde, de acordo com cálculos do IBGE, por 7,1% do emprego nas seis principais regiões metropolitanas brasileiras.

A radiografia do modelo social de habitação do Brasil não poderia ter sido melhor captado por Celso Furtado [45]:

A pobreza no Brasil não resulta das disparidades entre o mundo rural e o mundo urbano, como na Índia, e sim da concentração de renda urbana. No mundo inteiro houve e há problemas de déficit habitacional. Mas todos os países em que houve e há políticas de financiamento da construção resolveram parcialmente, ou pelo menos evitaram o agravamento do problema. Em alguns países da Europa, e na Nova Zelândia, a habitação é uma meta social definida pelo governo. Desde os anos 1950 a França vem construindo as chamadas habitations à loyer modéré (HLM), casas e apartamentos de aluguel reduzidos; o déficit habitacional que havia no final da Segunda Guerra foi sanado em pouco mais de dez anos. Essa política de financiamento nos tem cruelmente faltado. O Banco da Habitação realizou muita coisa, mas foi fechado em meados dos anos 1980, sem uma crítica mais séria do que estava fazendo. Como era uma herança dos governos militares, havia contra ele uma opinião pública bastante desfavorável. Hoje se percebe que foi um erro ter acabado com esse banco, auxílio indispensável à solução do problema mais grave e de mais difícil solução no Brasil: a habitação.

Com efeito, o déficit habitacional é o grande empecilho para superar-se o quadro de pobreza. Os 53 milhões de pobres e miseráveis brasileiros não têm como pagar um aluguel, muito menos como possuir uma moradia. Suprir esse déficit exige um investimento a longo prazo, uma massa de recursos que podemos estimar em 4% do produto nacional. O constante endividamento do país agrava o quadro da pobreza e complica a implantação de projetos que visem a solucioná-la. Hoje, por exemplo, se o governo conseguisse o equivalente a 4% do produto nacional, essa parcela seria logo absorvida pelo pagamento de juros.

Portanto, a pesquisa interdisciplinar aqui é mais que emergente, é imprescindível, à vista da interface existente entre o direito social de habitação e elementos específicos tais como a qualidade da habitação [46], o planejamento urbanístico, o controle sanitário/epidemiológico, as nuances econômicas e desenvolvimentistas, os dados emintemente sociológicos [47], principalmente, o aspecto da cidadania e da identidade do ser humano com o ambiente em que vive [48].

Contudo, o novo paradigma constitucional direito de habitação deve se alinhar à realidade mundial de reconhecimento de tais direitos, o que faz com que a disposição normativa dos direitos sociais transmute-se em valoroso background para a concreção de um sistema societal equilibrado, condigno e adequado, dentro de um adequado padrão de vida, ínsito ao mínimo existencial social.

Sobre o autor
Gustavo Rabay Guerra

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutor e pesquisador em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UNB), professor do Centro Universitário de Brasília (UNICEUB) e advogado em Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, Gustavo Rabay. Direito de habitação.: Dilemas de acionabilidade. Concretização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1044, 11 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8344. Acesso em: 23 dez. 2024.

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