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O presidente, os jornalistas, as máscaras que caem e a denunciação caluniosa

Agenda 10/07/2020 às 11:00

Reflete-se acerca da representação criminal feita pelo Deputado Marcelo Freixo à PGR contra o Presidente da República Jair Bolsonaro.

Com a notícia de que o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro contraiu o vírus covid-19, houve um alvoroço na imprensa a respeito do caso, acorrendo, naturalmente, os jornalistas em busca de informações, inclusive perante o próprio chefe do executivo federal. [1]

O Presidente foi abordado por jornalistas, os quais o rodearam e indagaram, dentre outras coisas, sobre como estava se sentindo. A resposta foi que já estava se recuperando. E, em seguida, para mostrar a aparência já saudável de seu rosto, o Presidente retirou a máscara que usava.

Muito bem. O Parlamentar Marcelo Freixo, filiado ao Psol, quase que imediatamente, protocola uma representação na PGR contra o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, por suposta prática de “crime contra a saúde pública”, sob o argumento de que, ao retirar a máscara nas proximidades dos jornalistas, teria praticado fato típico. Na própria notícia que veicula essa atitude do Parlamentar no veículo Carta Capital, consta a imagem, em foto isolada e descontextualizada, do Presidente sem máscara na ocasião. [2]

Não é crível que o Parlamentar não tenha assistido ao vídeo da abordagem ao Presidente e de toda a sua ação naquele momento, ou que não seja capaz de discernir entre o ato de baixar a máscara protetora e o momento e espaço em que isso é feito. O Parlamentar é uma pessoa normal, capaz e articulada. Também não é crível que tenha agido no ímpeto, somente por ouvir dizer, sem sequer observar o vídeo disponível a todos publicamente.

Assim sendo, deveria ter notado que os jornalistas abordam o Presidente e se aproximam dele por conta própria, estando com a devida proteção, tanto eles como o Presidente. Em seguida, fazem indagações, inclusive sobre como ele estaria se sentindo. Para responder a tais indagações, o Presidente se afasta, caminhando para trás a uma grande distância dos Jornalistas (por isso sua foto isolada de qualquer pessoa na matéria da Carta Capital) e ainda retira o cabo do microfone de lapela que nele haviam colocado, pede e sinaliza com as mãos para que os jornalistas se distanciem, o que eles fazem. A uma distância segura, por um tempo curto, o Presidente baixa a máscara, e exibe seu rosto deixando claro que apenas deseja mostrar seu semblante saudável a fim de ilustrar a resposta à pergunta que lhe foi feita pelos componentes da imprensa ali presentes, que estão a uma distância bem acima  daquela mínima preconizada para segurança. Além disso, o Presidente retira a máscara, mas os jornalistas estão com a devida proteção. [3]

A distância mínima tem sido recomendada entre 1 (um) e 1,5 (um e meio) metros. Há discussões a respeito, aumentando esse distanciamento se as pessoas estão, por exemplo, se exercitando (devido a gotículas de suor, por exemplo), mas há razoável consenso sobre o grau de distanciamento social requerido. E o presidente ou os jornalistas não estavam se exercitando ali. Também está mais do que demonstrado que o distanciamento com proteção de máscara e proteção para os olhos não é um fator que reduza a zero o risco de contaminação. Em resumo, a contaminação pode ocorrer de qualquer forma, com máscara, com distância e até mesmo com proteção para os olhos que quase ninguém utiliza. A contaminação é, portanto, possível em qualquer circunstância, mesmo com todas as proteções. O que as proteções e o distanciamento fazem é tornar a contaminação menos provável. [4] Destaque-se que a OMS divulgou que a contaminação pode ocorrer inclusive pelo ar em locais fechados, sendo de se destacar que também o presidente acolheu os jornalistas em local aberto, o que já reduz o risco de contaminação. [5]

Será que então os jornalistas também deveriam ser responsabilizados criminalmente por sua aproximação, ainda que com máscaras, mas sem proteção ocular, seja entre eles mesmos ou com relação ao aumento da carga viral do Presidente? Será que o Presidente também, desde o início, deveria ter sido responsabilizado, já que não tinha proteção ocular, bem como o distanciamento e tudo o mais não assegura não haver contágio? Será que todos nós deveríamos ser responsabilizados criminalmente porque só usamos máscaras? Será que houve uma mudança drástica do Direito Penal, não informada a ninguém, sendo agora possível responsabilizar criminalmente as pessoas por fatos inevitáveis da natureza? Não vale mais sequer a regra geral do Direito de que o impossível não pode ser exigido de ninguém (“ad impossibilia nem tenetur”)?   

Ou será que estamos diante, com relação ao Parlamentar Freixo, de algo similar ao personagem do conto “O Alienista”, de Machado de Assis? Nele, o médico, “Dr. Simão Bacamarte”, idealiza e implanta uma internação em massa das pessoas num hospício denominado de “Casa Verde”. Mas, ao final, estando praticamente toda a população da cidade internada, o próprio Simão se dá conta de que, se todos os demais são loucos, e ele o único “normal”, então parece que o louco é ele mesmo. [6]

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Talvez a insanidade seja realmente algo interessante para o Parlamentar, acaso sua representação gere a instauração de alguma investigação contra o Presidente, porque, nesse caso, ao menos em tese, e de acordo com as evidências que não apontam para uma atitude inconsciente da nítida inexistência de crime algum, incorrerá, ele sim, em crime de “Denunciação Caluniosa” (artigo 339, CP):

“Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente”.

Na lição da doutrina:

A denunciação caluniosa é punível somente a título de dolo. Consiste o dolo na vontade livre e espontânea de provocar instauração de inquérito ou de processo contra alguém, pela prática de um crime, da qual o sabe inocente. Indispensável seja o dolo direto, com relação ao conhecimento da inocência da pessoa acusada. Não será suficiente, como em outras hipóteses delituosas, o dolo eventual. [7]

É praticamente impossível, diante das imagens do fato em discussão, acreditar que o Parlamentar, em sendo pessoa sã e capaz, tenha realmente agido acreditando na prática de crime por parte do Presidente da República. Desse modo, haveria o dolo específico necessário à configuração da “Denunciação Caluniosa”, que é o de prejudicar alguém intencionalmente, ensejando a instauração de alguma investigação indevida contra tal pessoa, com a ciência de sua inocência patente.

Parece, portanto, ser de interesse do próprio Parlamentar que a sua representação seja objeto de arquivamento pelo Procurador Geral da República sem qualquer perquirição. Mas, ainda que o seja, lhe restará o crime de Calúnia com aumento de pena nos termos do artigo 138 c/c 141, I, CP ou o mesmo ilícito previsto no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83), a depender do entendimento ministerial quanto à presença de motivação política, o que, diga-se de passagem, não é de modo algum descartável de pronto. [8]  

Ademais, certamente a prática, em tese, de crime pelo Parlamentar (Denunciação Caluniosa, Calúnia Majorada ou Crime de Calúnia da Lei de Segurança Nacional), configurará quebra do decoro, que pode resultar na perda do mandato, nos estritos termos do artigo 55, II e VI, CF. Entende Eduardo Bim que o processo disciplinar da casa legislativa pode ser instaurado, ainda que não haja condenação definitiva, pois que a quebra do decoro pode dar-se não somente pela prática de crime (algo mais grave), mas por outros atos incompatíveis com a honorabilidade da Casa Legislativa e do cargo eletivo. Em suas palavras:

O fato indecoroso não precisa constituir crime, mas o sendo, não há óbice ao processo de cassação, ainda que tal fato seja objeto de investigação ou processo judicial, revestindo, por assim dizer, uma dupla tipicidade. Ives Gandra da Silva Martins  – em opinião legal, frise-se – deixou-se seduzir pelo argumento de que o fato de o ato tido como indecoroso ser capitulado como crime inibiria a cassação de mandato pelo inciso II do artigo 55 da CF/88, restando somente a possibilidade de cassação pelo inciso VI do mesmo artigo. Entendeu o jurista: “Se todo o ato considerado criminoso fosse também tido como atentatório ao decoro parlamentar, à evidência, o n. VI nunca poderia ser utilizado, na medida em que a sanção pretendida viria com a singela aplicação do n. II.”  Não faria sentido suprimir o poder disciplinar da casa legislativa exatamente nos casos mais graves, como são os crimes. O voto do Ministro Octavio Gallottti  (...), no MS 21.443 foi categórico a esse respeito: “Nem seria compreensível que, nas hipóteses presumivelmente mais graves de quebra de decoro (as coincidentes com tipos delituosos), a ação de disciplina da Câmara ficasse tolhida pela dependência e a espera não só da deliberação do Poder Judiciário, como da própria iniciativa do órgão do Ministério Público, em se tratando de crime de ação pública.” [9]

Efetivamente, esse parece ser o entendimento mais correto e predominante, tendo em vista a aplicação do princípio da proporcionalidade, sendo incompreensível que a prática de um crime, ainda que em tese, não seja capaz de dar ensejo, desde logo, ao procedimento disciplinar no legislativo, enquanto que outras condutas indecorosas, mas não criminosas, possibilitem apuração imediata.


REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de.O alienista e O espelho. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

BIM, Eduardo Fortunato. A cassação de mandato por quebra de decoro parlamentar. Revista Brasília. n. 169, p. 65 – 94, jan./mar., 2006.

BOLSONARO tira a máscara após confirmar covid-19. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-fQnyEQFvXM, acesso em 08.07.2020.

CORONAVÍRUS: Bolsonaro testa positivo para covid-19. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53326691, acesso em 08.07.2020.

COSTA JÚNIOR, Paulo José da, COSTA, Fernando José da. Curso de Direito Penal. 12ª. ed. São Paulo: Saraiva,2010.

DISTÂNCIA de ao menos 1 m, máscara e proteção para os olhos reduzem contágio de covid-19.  Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/distancia-de-ao-menos-1-m-mascara-e-protecao-para-olhos-reduzem-contagio-de-covid-19.shtml, acesso em 08.07.2020.

FORATO, Fidel. Cientistas e OMS admitem: Coronavírus pode ser transmitido pelo ar. Disponível em https://canaltech.com.br/saude/cientistas-e-oms-admitem-coronavirus-pode-ser-transmitido-pelo-ar-167664/, acesso em 08.07.2020.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume 2. 15ª. ed. Niterói: Impetus, 2018.

PUTTI, Alexandre. Marcelo Freixo denuncia Bolsonaro à PGR por crime contra a saúde pública. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/politica/marcelo-freixo-denuncia-bolsonaro-a-pgr-por-crime-contra-saude-publica/, acesso em 08.07.2020. 


Notas

[1] CORONAVÍRUS: Bolsonaro testa positivo para covid-19. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53326691, acesso em 08.07.2020.

[2] PUTTI, Alexandre. Marcelo Freixo denuncia Bolsonaro à PGR por crime contra a saúde pública. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/politica/marcelo-freixo-denuncia-bolsonaro-a-pgr-por-crime-contra-saude-publica/, acesso em 08.07.2020.  Observe o leitor a foto publicada, de forma isolada do contexto, sem que algum jornalista ou qualquer pessoa apareça nas proximidades, mas apenas destacando o fato de que Bolsonaro está sem máscara no momento.

[3] O leitor deve assistir ao vídeo e observar por si mesmo a impossibilidade racional de acreditar existir dolo de perigo na atitude do Presidente e, ao reverso, seu cuidado no distanciamento e retirada extremamente momentânea da máscara.  Também pode pesquisar e constatar que há vários vídeos com a filmagem fechada, não mostrando o distanciamento tomado pelo Presidente, ocasional ou intencionalmente, tal como na foto da Carta Capital. Cf. BOLSONARO tira a máscara após confirmar covid-19. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-fQnyEQFvXM, acesso em 08.07.2020.

[4] DISTÂNCIA de ao menos 1 m, máscara e proteção para os olhos reduzem contágio de covid-19.  Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/distancia-de-ao-menos-1-m-mascara-e-protecao-para-olhos-reduzem-contagio-de-covid-19.shtml, acesso em 08.07.2020.

[5] FORATO, Fidel. Cientistas e OMS admitem: Coronavírus pode ser transmitido pelo ar. Disponível em https://canaltech.com.br/saude/cientistas-e-oms-admitem-coronavirus-pode-ser-transmitido-pelo-ar-167664/, acesso em 08.07.2020.

[6] ASSIS, Machado de.O alienista e O espelho. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, “passim”.

[7] COSTA JÚNIOR, Paulo José da, COSTA, Fernando José da. Curso de Direito Penal. 12ª. ed. São Paulo: Saraiva,2010, p. 955.

[8] Leciona Greco: “Para que o fato seja definido como crime contra a segurança nacional é preciso que a calúnia tenha conotação política. Do contrário, se não tiver natureza política, mas sim, pessoal, pelo fato de a vítima ocupar, por exemplo, o cargo de Presidente da República, o delito será aquele previsto no art. 138 do Código Penal, devendo sua pena ser aumentada de um terço, conforme determina o art. 141 do referido diploma repressivo”.  Cf. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume 2. 15ª. ed. Niterói: Impetus, 2018, p. 347.

[9] BIM, Eduardo Fortunato. A cassação de mandato por quebra de decoro parlamentar. Revista Brasília. n. 169, jan.,/mar., 2006, p. 80.  Também disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/eduardo-fortunato-bim-cassacao-mandato.pdf, acesso em 08.07.2020.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O presidente, os jornalistas, as máscaras que caem e a denunciação caluniosa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6218, 10 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83845. Acesso em: 23 dez. 2024.

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