O documentário sobre a prisão de Caetano Veloso na virada de 1968 para 1969 me fez lembrar minha passagem pela mesma PE da Vila Militar três meses depois, quando ainda havia sargentões recordando o episódio e se jactando das humilhações a eles impostas.
É sempre doloroso remexer nas lembranças dos "anos de chumbo", mas, infelizmente, o povo brasileiro tem memória curta e é facilmente iludido por pregações mentirosas, daí eu, como sobrevivente, assumir o papel de preservar a memória do martírio de minha geração, até como tributo à memória dos companheiros que não estão mais aqui.
Marcado para 2 a 12 de setembro próximos, o 77º Festival de Veneza apresentará em sua mostra não-competitiva (ou seja, sem concorrer ao Leão de Ouro e demais prêmios da seleção oficial) o documentário brasileiro Narciso em Férias, sobre a prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil duas semanas após a assinatura do Ato Institucional nº 5 e os 54 dias em que permaneceram encarcerados na PE da Vila Militar (RJ).
Escrito e dirigido por Renato Terra e Ricardo Kalil, o filme é focado em Caetano, hoje com 77 anos. Mostra como ele e Gil foram mantidos em solitárias durante duas semanas e depois transferidos para celas.
Sobre a inferno da solitária, ele conta:
"Eu tinha de comer ali no chão mesmo. Isso durou uma semana, mas pareceu uma eternidade. Eu comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho que eu tinha tido".
Foi durante o cativeiro que ele viu as fotos inéditas do nosso planeta, tiradas do espaço e publicadas pela revista Manchete, que o inspiraram para compor Terra dez anos mais tarde.
E a lembrança das risadas da irmã mais nova lhe serviam de consolo, daí ter composto lá mesmo a pungente Irene.
"Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui/ Eu não tenho nada, nada, quero ver Irene rir/ Quero ver Irene dar sua risada".
Quatro meses depois foi a minha vez de passar por aquele quartel, talvez até na mesma solitária (eram três).
Afora comer no chão mesmo e sem talheres, havia também o buraco no solo como latrina, a falta de torneira ou chuveiro, o espaço ínfimo, o frio que fazia à noite (deixaram-me só com a cueca e sem coberta nenhuma), de forma que, mesmo sentando no chão e abraçando as pernas na tentativa de me esquentar, mal conseguia pregar o olho.
Irritava-me muito a jactância de um sargento, que fazia questão de repetir a toda hora que Caetano e Gil haviam chorado quando tiveram suas jubas raspadas a zero, ao passo que os militantes pelo menos mantinham uma compostura básica, na avaliação machista dele.
"Quando eu me encontrava preso na cela de uma cadeia/ Foi que eu vi pela primeira vez as tais fotografias/ Em que apareces inteira, porém lá não estavas nua/ E sim coberta de nuvens/ Terra/ Terra".
Não era esse o tipo de reconhecimento que eu queria do inimigo. E percebia muito bem que aquilo era demais para um civil, mesmo não tendo ele de passar pelas sessões de tortura a que nós éramos submetidos.
Foi lá que o cabo Marco Antônio Povoreli, um brutamontes que pesava 140 quilos, por pura maldade, estourou meu tímpano com um tapa no ouvido direito dado com a mão espalmada, quando me reconduzia à solitária após haver sido torturado com choques elétricos.