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A paralisação do comércio não gera ao Estado o dever de indenizar

Agenda 04/08/2020 às 15:22

Ao contrário do que muitos podem pensar, o Estado não possui o dever de indenizar comerciantes pelos prejuízos sofridos com paralisação do comércio.

Diante da calamidade pública decretada no Brasil, com medidas restritivas e suspensivas do comércio sendo tomadas por prefeitos e governadores, se instalou um cenário de incerteza econômica no país, causado com o prolongamento das quarentenas.

Ocorre que, diante disso, muitas pessoas se perguntam, principalmente aquelas sem formação jurídica, se os comerciantes teriam amparo legal para reaver os seus prejuízos momentâneos.

Nos dias atuais, há a figura do Estado do bem-estar social, pelo qual se tem um papel mais atuante na sociedade, não sendo um mero editor de normas asseguradoras da ordem pública, e sim um papel de intervenção estatal de grande relevo no âmbito privado, atuando em diversas áreas sociais, culturais e econômicas, sempre com o escopo de proporcionar uma primazia ao bem-estar social, efetivando e protegendo direitos.[1]

As restrições ao comércio adotadas pelas autoridades públicas são manifestações da atividade de polícia, podendo ser entendida como o instrumento necessário pelo qual o Estado é autorizado a exercer os atos de coerção necessários para fazer cumprir ou prevalecer o interesse público sobre o privado.[2]  

Assim, a quarentena é decretada com a finalidade de fazer valer os interesses coletivos, leia-se saúde pública, em prol do mero interesse individual, sendo uma medida sanitária necessária em tempo de pandemia.

Nesse sentido, como é cediço, o Estado tem presente no exercício de suas atividades a manifestação do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, inspirador do legislador e vinculador do administrador em todo o seu desempenho funcional no trato da coisa pública.

Dessa feita, o interesse individual não poderá se sobrepor ao interesse público, meio de consecução do bem comum e da justiça social, ampliando o alcance do poder de polícia do Estado, cujo poder e escopo era limitado apenas a preservação da ordem pública, abrangendo agora a imposição de obrigações positivas, visando o equilíbrio da ordem social.[3]

Diante disso, pode-se afirmar que o poder de polícia é concebido como um veículo instrumental que a Administração Pública possui para limitar, restringir, condicionar, com base na lei vigente, o exercício de direitos, visando a atender o interesse coletivo.

Não se pode olvidar que, além de tudo, que há um conceito normativo fornecido pelo artigo 78 do Código Tributário Nacional, que, na sua essência, representa a possibilidade de condicionar o interesse privado em prol de interesses comuns, como a incolumidade pública.

Urge mencionar, neste momento, que não se pretende esmiuçar a origem do poder de polícia, nem sua transformação perante os intervalos liberais, intervencionistas e sociais, e sim situá-lo no momento brasileiro atual.  Em seu conceito moderno, sem mais delongas, é uma atividade estatal consistente em condicionar o exercício dos direitos individuais em prol do interesse público. Esse interesse público pode ser entendido como as mais diversas áreas da sociedade, como segurança, saúde, defesa do consumidor.[4]

Sob essa ótica, o poder de polícia administrativa é exercido pela Administração Pública por meio de seu poder normativo, valendo-se de portaria, resoluções, instruções, decretos para exteriorizá-lo, uma vez fundado na lei.

Com isso, vários decretos no decorrer da pandemia descrevem, em sua parte preambular, a base legal que fundamenta o seu exercício. Vale mencionar o Decreto Nº 20.843/2020 da cidade de Campinas[5], pelo qual o ato normativo indicou vários dispositivos legais para se fundamentar, dentre os principais, cabe citar o artigo 15, inciso XX, da Lei Federal nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, abarcando atribuições do poder de polícia sanitária; a Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre medidas de enfrentamento da emergência da saúde pública de relevância internacional.

Em suma, os atos do poder executivo que contemplem restrições ou limitações ao direito de particulares devem estar consubstanciados em lei, abrangendo a fiscalização da atividade sobre a qual recai.[6]

 Com efeito, o termo polícia sanitária é um desdobramento do poder de polícia administrativa, possuidora de aptidão para adoção de normas para evitar ou amenizar riscos presente e futuro que lesem ou ameacem lesar a saúde e a segurança da população, dispondo o poder público da prerrogativa de adotar as melhores medidas nas limitações de higiene e segurança em prol da defesa dos indivíduos e da comunidade.[7]

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O exercício do poder de polícia sanitária é de competência de todos os entes federativos, atribuído ao ente estatal detentor da respectiva aptidão para administrar, gerir e regular determinado seguimento da sociedade. Em nosso sistema constitucional, os temas de assistência social e de saúde pública estão sujeitos a uma tríplice atuação – no âmbito federal, estadual e municipal -, por interessar ao Estado como um todo. Discutir competência legislativa dos entes federativos é debater um dos alicerces do Estado Democrático de Direito: o Federalismo.[8]

Logo, não se deve olvidar que a competência normativa e reguladora dos entes federativos no trato da saúde pública devem ser exercidas com a finalidade de atender ao bem-estar social na medida da predominância do interesse de cada ente federativo nas medidas tomadas, em homenagem ao pacto federativo e a divisão de competências estabelecida no texto constitucional. Assim, essas medidas devem estar conforme a proporcionalidade que o caso requeira, evitando-se medidas desarrazoadas que coloquem em xeque a legalidade da medida de polícia sanitária adotada.

Como o Brasil constitui um Estado Democrático de Direito, o exercício do Poder de Polícia não é absoluto, e encontra seus limites na própria lei, no devido processo legal e nos direitos fundamentais, com observância aos limites da lei que fundamenta o seu agir. Essa concepção não é distorcida, e sim, fiel ao que dispõe o artigo 78 do Código Tributário Nacional, em seu parágrafo único[9], considerando regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente.[10]

Assim, o ato da autoridade pública induz em responsabilidade do Estado quando o agente público cai em excesso de poder quando extrapola seus limites no tocante à competência. Nessa circunstância, a autoridade não possui a competência para praticar o ato que se predispõe praticar. O excesso de poder não se confunde com o abuso de poder, o excesso de poder leva ao abuso de poder. Vale frisar que o abuso de poder é gênero dos quais se tem como espécies o excesso de poder e desvio de poder. Nessa toada, o desvio de finalidade surge na figura do agente público que, não obstante atue dentro de sua esfera de atribuição (competência), atua com fins diversos dos objetivados pela lei, valendo-se de meios ou motivos imorais ou ilegais.[11]

Dessa forma, o Estado tem sua responsabilidade civil invocada quando se vê diante da prática de um ato contrário ao ordenamento jurídico, seja por via direta ou indireta. Assim, o pressuposto da responsabilidade do Estado é a prática de ato antijurídico, rompendo-se o princípio da isonomia de todos perante os gastos com a máquina pública. [12]

Nessa linha, sendo certo que o uso do poder de polícia sempre será lícito e seu abuso será ilícito, sendo este último por excesso ou desvio do poder, cabe ao administrador agir fielmente aos parâmetros legais. Não podendo viciar seu ato por abuso de poder, sendo esse o fator determinante para existir uma razão para indenização.

Ora, agindo o Estado com base no poder de polícia, o sacrifício individual deve ser proporcional[13] ao ganho social, com respeitos aos direitos fundamentais do indivíduo, autorizando a indenização do particular somente em casos de restrições com flagrante ilegalidade ou inconstitucionalidade.

Conclui-se que o Estado, em regra, não responderá pelas medidas restritivas adotadas em prol da saúde pública durante a quarentena, salvo se, em epíteto, os atos forem ilícitos, estando maculados com algum vício, configurando seu exercício arbitrário (abuso de poder). Ou, mesmo que considerados lícitos, só gerará indenização em apenas duas circunstâncias: por expressa previsão legal, ou no sacrifício desproporcional ao particular, exigindo-se um juízo de ponderação e razoabilidade da medida adotada.


Notas

[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. São Paulo, editora: Forense, 2018, pág. 41.

[2] LAZZARINI, Álvaro. Abuso de poder x Poder de polícia. Revista dos Tribunais. Vol. 721, nº 1995, pág. 2. Disponível em:. Acesso em: 16 Fev.2020.

[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. São Paulo, editora: Forense, 2018. Pág. 134.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo.31. ed. São Paulo, editora: Forense, 2018. Pág. 194.

[5] CAMPINAS, decreto municipal, Nº 20.843/2020 http:covid-19.campinas.sp.gov.br/legislação/municipal.

[6] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo, editora: Saraiva, 2012. Pág.122.

[7] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo, editora: Malheiros, 1997, pág. 126.

[8] Supremo Tribunal Federal, Ministro Alexandre de Moraes, Medida Cautelar em sede de ADI 6341.

[9] Artigo 78. (......) Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.

[10] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. São Paulo, editora: Forense, 2018. Pág. 195.

[11] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo, editora: Malheiros, 1997. Pág. 96.

[12] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. São Paulo, editora: Forense, 2018. Pág. 895.

[13] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 6. ed. São Paulo, editora: Método, 2017. Pág. 811

Sobre o autor
Relivaldo José da Silva Buarque

Graduado em Direito pela PUC Campinas; Especialista em Direito Tributário, Especialista em Direito Empresarial, Especialista em Direito Civil e Processo Civil; ex-estagiário concursado do Ministério Público de São Paulo; ex-monitor de Direito Constitucional pela PUCCAMP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Relivaldo José Buarque. A paralisação do comércio não gera ao Estado o dever de indenizar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6243, 4 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84419. Acesso em: 24 nov. 2024.

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