Introdução
A ocorrência da pandemia da COVID-19 exigiu o isolamento social, medida determinada pela Organização Mundial da Saúde, como forma de minimizar a contaminação do vírus, na qual acarretou consequências para toda a população mundial, não somente em sua economia, mas em todos seus desdobramentos. [1]
Com isto, muitas empresas tiveram que adotar posicionamentos distintos para que mantivessem suas atividades, como a suspensão de contratos trabalhistas e a demissão em massa de funcionários. Por este motivo, pode-se perceber um aumento significativo nas demandas desta esfera, conforme dados divulgados pelo Tribunal Superior do Trabalho. Este cenário é causa justificativa em algumas ocasiões para o inadimplemento por parte do alimentante. Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que não é motivo para não efetivação do pagamento.[2]
Logo, tratando-se do direito de família, também é notória a necessidade de adaptação conforme o momento vivenciado, tendo em vista a importância deste instituto para que a constituição familiar não fique desamparada. Sendo assim, diversas alternativas foram aplicadas, entre elas a possibilidade da mediação por videoconferência adotada por muitos municípios, bem como a possibilidade de prisão domiciliar ao devedor de alimentos recomendada pelo Conselho Nacional de Justiça, a qual esta iremos aprofundar no presente estudo. [3]
Os recursos indispensáveis à manutenção da vida do alimentado estão sendo alvo de discussões no que tange as dificuldades para o cumprimento da obrigação em meio a pandemia, ressaltando neste caso as consequências advindas do episódio corrente, principalmente financeira. Além disso, a opção pela prisão domiciliar do inadimplente no caso em tela poderá acarretar consequências ao beneficiário que já foram reconhecidas jurisprudencialmente e trazer ineficácia à medida coercitiva prevista no nosso ordenamento jurídico. E também, se este embaraçar o direito do indivíduo, poderá acentuar sua situação de insuficiência por proveito da medida diversa.
Dos alimentos
O termo alimentos no âmbito jurídico refere-se aos recursos que o alimentado necessita para vivência e que não pode provê-los por si mesmo. Deste modo, os arts. 1694 e 1920, ambos do Código Civil, preceituam aqueles que podem receber e quais terão a obrigação de prestá-los, como vemos a seguir:
Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
§ 1o Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.
§ 2o Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia.
Art. 1.920. O legado de alimentos abrange o sustento, a cura, o vestuário e a casa, enquanto o legatário viver, além da educação, se ele for menor.
Os artigos supracitados dispõem sobre a obrigação alimentícia, nos quais é válido evidenciar que pode ser devida entre parentes, cônjuges e filhos, se comprovada a necessidade de recurso destes para se manter.
Para isto, o direito de família adota o Princípio da Solidariedade como forma de auxiliar os parentes entre si. E assim, defende Lôbo:
A solidariedade, como categoria ética e moral que se projetou para o mundo jurídico, significa um vínculo de sentimento racionalmente guiado, limitado e autodeterminado que impõe a cada pessoa deveres de cooperação, assistência, amparo, ajuda e cuidado em relação às outras. A solidariedade cresce de importância na medida em que permite a tomada de consciência da interdependência social. [4]
Enquanto os pais cumprem a obrigação favorável aos filhos em virtude do poder familiar, o benefício pago ao cônjuge/companheiro advém do dever de mútua assistência, tendo em vista que compartilhavam suas vidas. Logo, o referido mecanismo estatal objetivo auxiliar o sustento daquelas pessoas que não conseguem prover por si só.[5]
Para fixação do valor a ser pago ao alimentado, será necessário, conforme determina o art. 1.694, §1º do Código Civil, estabelecer um parâmetro que atenda a possibilidade do alimentante e a necessidade daquele que vir a receber o recurso. Logo, o juiz analisará, e conforme o caso concreto, aplicará o valor que atender ambas as partes.
Da atipicidade nas obrigações alimentícias
Com a pandemia da COVID-19, o Judiciário adotou diversas formas de amenizar os impactos no âmbito das diversas relações jurídicas, como a Recomendação nº 62, de 17/03/2020, do Conselho Nacional de Justiça, que recomendou aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo.
Seguidamente, o Conselho Nacional de Justiça através da Recomendação nº 68, de 17 de junho de 2020, prorrogou sua vigência pelo prazo de cento e oitenta dias, podendo ser avaliada posteriormente nova prorrogação.
No âmbito de tais medidas, existe previsão destinada ao devedor de alimentados, que trata da possibilidade de medida excepcional de se evitar a prisão civil, podendo cumpri-la, se autorizado pelo magistrado, em prisão domiciliar, com respaldo na atipicidade recomendada juridicamente, e que apresenta as seguintes finalidades:
Art. 1º Recomendar aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 no âmbito dos estabelecimentos do sistema prisional e do sistema socioeducativo. Parágrafo único. As recomendações têm como finalidades específicas:
I – a proteção da vida e da saúde das pessoas privadas de liberdade, dos magistrados, e de todos os servidores e agentes públicos que integram o sistema de justiça penal, prisional e socioeducativo, sobretudo daqueles que integram o grupo de risco, tais como idosos, gestantes e pessoas com doenças crônicas, imunossupressoras, respiratórias e outras comorbidades preexistentes que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, com especial atenção para diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV e coinfecções;
II – redução dos fatores de propagação do vírus, pela adoção de medidas sanitárias, redução de aglomerações nas unidades judiciárias, prisionais e socioeducativas, e restrição às interações físicas na realização de atos processuais; e
III – garantia da continuidade da prestação jurisdicional, observando-se os direitos e garantias individuais e o devido processo legal.
Deste modo, para proteção da saúde do indivíduo inadimplente na obrigação alimentar, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva proferiu a seguinte decisão, ainda em maio de 2020:
HABEAS CORPUS. OBRIGAÇÃO ALIMENTÍCIA. INADIMPLEMENTO PRISÃO CIVIL.DECRETAÇÃO. PANDEMIA. SÚMULA Nº 309/STJ. ART. 528, § 7º, DOCPC/2015. PRISÃO CIVIL. PANDEMIA (COVID-19). SUSPENSÃO TEMPORÁRIA.POSSIBILIDADE. DIFERIMENTO. PROVISORIEDADE.1. Em virtude da pandemia causada pelo coronavírus (Covid-19), admite-se, excepcionalmente, a suspensão da prisão dos devedores por dívida alimentícia em regime fechado.2. Hipótese emergencial de saúde pública que autoriza provisoriamente o diferimento da execução da obrigação cível enquanto pendente a pandemia.3. Ordem concedida. (STJ – HC: 574495 SP 2020/0090455-1, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÂS CUEVA, Data de Julgamento: 26/05/2020, T3- TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/06/2020).
Entretanto, apesar da existência de decisões no sentido da adoção de prisão domiciliar, também há decisões também do Superior Tribunal de Justiça que optam pela suspensão da prisão, a qual somente poderá ser cumprida quando normalizar a situação de pandemia que vivenciamos, senão vejamos:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL. PRESTAÇÃO ALIMENTÍCIA FIXADAEM FAVOR DE EX-CÔNJUGE. NATUREZA INDENIZATÓRIA E/OU COMPENSATÓRIADESSA VERBA. INADIMPLEMENTO. EXECUÇÃO PELO RITO DA PRISÃO CIVIL.DESCABIMENTO. CONCESSÃO DA ORDEM QUE SE IMPÕE. RECURSO PROVIDO.1. O propósito recursal consiste em definir se o inadimplemento de obrigação alimentícia devida a ex-cônjuge, de natureza indenizatória e/ou compensatória, justifica a execução sob o rito da prisão civil preconizado no art. 528, § 3º, do CPC/2015.2. A prisão por dívida de alimentos, por se revelar medida drástica e excepcional, só se admite quando imprescindível à subsistência do alimentando, sobretudo no tocante às verbas arbitradas com base no binômio necessidade-possibilidade, a evidenciar o caráter estritamente alimentar do débito exequendo.3. O inadimplemento dos alimentos compensatórios (destinados à manutenção do padrão de vida do ex-cônjuge que sofreu drástica redução em razão da ruptura da sociedade conjugal) e dos alimentos que possuem por escopo a remuneração mensal do ex-cônjuge credor pelos frutos oriundos do patrimônio comum do casal administrado pelo ex-consorte devedor não enseja a execução mediante o rito da prisão positivado no art. 528, § 3º, do CPC/2015, dada a natureza indenizatória e reparatória dessas verbas, e não propriamentealimentar.4. Na hipótese dos autos, a obrigação alimentícia foi fixada, visando indenizar a ex-esposa do recorrente pelos frutos advindos do patrimônio comum do casal, que se encontra sob a administração do ora recorrente, bem como a fim de manter o padrão de vida da alimentanda, revelando-se ilegal a prisão do recorrente/alimentante, a demandar a suspensão do decreto prisional, enquanto perdurar essa crise proveniente da pandemia causada por Covid-19, sem prejuízo de nova análise da ordem de prisão, de forma definitiva, oportunamente, após restaurada a situação normalidade.5. Recurso ordinário em habeas corpus provido. (STJ – RHC: 117996 RS 2019/0278331-0, Relator: Ministro MARCOS AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 06/06/2020, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/06/2020).
Apesar das decisões conflitantes citadas acima, a Terceira Tuma do Superior Tribunal de Justiça veio pacificar a matéria, ao julgar, por unanimidade, em junho de 2020, concedendo a suspensão temporária da prisão civil do devedor de alimentos em virtude da atual pandemia. Importante transcrevermos trecho do mencionado julgado:
Ao aprofundar a reflexão sobre o tema, percebe-se que assegurar aos presos por dívidas alimentares o direito à prisão domiciliar é medida que não cumpre o mandamento legal e que fere, por vias transversas, a própria dignidade do alimentando.
Assim, não há falar na relativização da regra do art. 528, §§ 4º e 7º, do Código de Processo Civil de 2015, que autoriza a prisão civil do alimentante em regime fechado quando devidas até 3 (três) prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo. Válido consignar que a lei federal incorporou ao seu texto o teor da Súmula 309/STJ ("O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo").
Por esse motivo, não é plausível substituir o encarceramento pelo confinamento social, o que, aliás, já é a realidade da maioria da população, isolada em prol do bem-estar de toda a coletividade.
Nesse sentido, diferentemente do que assentado em recentes precedentes desta Corte (HC 566.897/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 19/3/2020, e HC 568.021/CE, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 25/03/2020), que aplicaram a Recomendação n. 62 do CNJ, afasta-se a possibilidade de prisão domiciliar dos devedores de dívidas alimentares para apenas suspender a execução da medida enquanto pendente o contexto pandêmico mundial.
Portanto, a excepcionalidade da situação emergencial de saúde pública permite o diferimento provisório da execução da obrigação cível enquanto pendente a pandemia. A prisão civil suspensa terá seu cumprimento no momento processual oportuno, já que a dívida alimentar remanesce íntegra, pois não se olvida que, afinal, também está em jogo a dignidade do alimentando, em regra, vulnerável. [6]
Nota-se que o Superior Tribunal de Justiça entendeu que a Recomendação do Conselho Nacional de Justiça impediria o cumprimento legal do quanto previsto no Código Civil no que atine a previsão de se utilizar a prisão como forma de exigir o pagamento da obrigação.
Além disso, é possível afirmar que a referida decisão reconheceu que o isolamento social é uma medida vivenciada por todos, como forma de proteção dos males causados pelo vírus da COVID-19. Deste modo, não pode se reconhecer a prisão domiciliar como uma sanção pelo inadimplemento da obrigação alimentar.
Dos impactos propiciados as partes
A pena privativa de liberdade do inadimplente em obrigação alimentar está previsto constitucionalmente:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;
A prisão civil do devedor de alimentos funciona como impulso para que o mesmo cumpra a obrigação alimentícia. Entretanto, haja vista a excepcionalidade atual, no qual está sendo cumprida através da prisão domiciliar ou suspensão da privatização de liberdade do inadimplente do caso narrado, pode-se afirmar que trarão consequências às partes.
Neste sentido, fez-se necessária a edição Lei 14.010, de 10 de junho de 2020, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19), estabelecendo no seu art. 15:
Art. 15. Até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações.
Deste modo, o cumprimento de sentença que busca a obrigação de prestar alimentos está mitigado pela disposição transitória citada. Em que pese, no que concerne à justificativa do inadimplemento, o Superior Tribunal de Justiça entende que a negativa do pagamento não se respalda no desemprego. [7]
Além disso, a prisão em regime fechado é tratada como última alternativa para efetivar o cumprimento do direito do alimentado, que não se defere no momento presente, pois, remeter o alimentante à penitenciária lhe traria maior vulnerabilidade ao risco de contaminação pelo vírus da COVID-19.
Logo, apesar da previsão de medida diversa da prisão para buscar o cumprimento da obrigação alimentícia, esta poderá trazer dificuldades ao alimentando, já que este não poderá dispor da regra constitucional supracitada para efetivar o cumprimento da obrigação por parte daquele destinado a realizá-la.
Para tanto, verifica-se a necessidade de se averiguar a boa-fé dos sujeitos envolvidos na lide, bem como buscar a cooperação visando estabelecer um acordo consensual, servindo como maneira de adaptação nesse período, conforme, de acordo com o caso concreto, a possibilidade do alimentante e a necessidade do alimentando discutida na lide, mas que cumpra sua função principal, não desamparando o mantido. [8]