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Exame de ordem, autonomia universitária e liberdade de exercício profissional

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Agenda 09/06/2006 às 00:00

12. O ESTELIONATO EDUCACIONAL

O que acontece na OAB, portanto, para esse jornalista, não nos deveria espantar, porque é apenas a conseqüência de uma sucessão de omissões das famílias, da comunidade e do poder público, todos sócios numa verdadeira tragédia educacional.

O Governo Federal e a OAB, através de uma série de ações e omissões, criaram o perverso sistema atual, que permite a proliferação dos cursos universitários, de baixa qualidade, que formam profissionais despreparados, prejudicando, em primeiro lugar, o interesse público, das pessoas que poderão ser obrigadas a contratar, eventualmente, os serviços desses profissionais, e depois, também, prejudicando os próprios bacharéis, que terão os seus diplomas "no lixo".

Assim, depois de estudar durante cinco anos, em uma universidade federal, ou em um curso jurídico particular, o bacharel descobre que é, apenas, "uma porcaria", como afirmou, do alto de seu doutorado, o professor Renan Lotufo, em um franco desrespeito aos direitos alheios, que não se coaduna, absolutamente, com qualquer tipo de ética profissional, nem com os mais comezinhos princípios de decência, que são exigidos, normalmente, pela convivência em sociedade.

Ou seja: o bacharel foi enganado pela universidade federal, ou por uma instituição particular de ensino, porque, depois de ser reprovado no exame de ordem, descobriu, finalmente, que é "uma porcaria", e que o seu curso foi apenas uma fraude, porque o MEC permitiu que ele funcionasse, sem ter o mínimo de condições necessárias. Como conseqüência, não poderá exercer uma profissão. Dessa maneira, fica evidente que ele foi enganado, porque perdeu o seu tempo, e porque pagou – quando pagou, nas particulares -, por um serviço educacional que não lhe foi prestado corretamente. Do contrário, ele não poderia ter sido aprovado pela faculdade, se depois não é capaz de passar no Exame de Ordem. Supondo-se, é claro, apenas para argumentar, que o Exame de Ordem serve para avaliar, realmente, alguma coisa. Ressalte-se, ainda, que se o bacharel não pagou o seu curso universitário, porque foi aluno de uma federal, e se ficou impedido de exercer a advocacia, porque foi reprovado no Exame de Ordem, nesse caso, ele não terá sido a única vítima da fraude, mas também todos nós, que pagamos os nossos impostos, e que financiamos, portanto, todas as instituições federais de ensino superior.

Nesse caso – e os civilistas, como o Dr. Lotufo, sabem muito bem disso -, caberia uma indenização, que deveria ser pedida, pelos prejudicados, ao Estado brasileiro, à OAB e às universidades, não apenas para compensar o prejuízo causado, de tempo e de dinheiro, mas para obrigá-los a cumprirem corretamente as suas obrigações e para desestimulá-los, pelo valor da indenização a ser paga, de voltarem a praticar os mesmos erros.


13. A RESERVA DE MERCADO

Na minha opinião, o Exame de Ordem tem sido usado, pela OAB, como instrumento para aumentar o seu poder e para impedir o ingresso de novos advogados no mercado de trabalho, que se alega já estar saturado.

Por incrível que pareça, é possível identificar algumas confissões, nesse sentido.

A mais explícita, certamente, é a declaração do Bastonário Rogério Alves, Presidente da Ordem dos Advogados de Portugal:

"Existem atualmente 23 mil advogados, em relação a uma população de 10 milhões de habitantes. Na Áustria, por exemplo, são 9 milhões de habitantes para um total de apenas 4 mil advogados. De cada 100 candidatos a ingressar na profissão em Portugal, atualmente, cerca de 90 são aprovados, fato que tem inflacionado o mercado de trabalho e gerado mais advogados do que vagas de trabalho. Por isso, a entidade está desenvolvendo o projeto de endurecer o exame para aferir com mais precisão a qualidade técnico-profissional dos candidatos advogados. (grifo nosso)

Dentro desse quadro, a profissão dos advogados de Portugal já está praticamente vivendo uma situação caótica. Muitos advogados passam por grandes dificuldades financeiras, basicamente por falta de trabalho. Tal fato tem levado muitos advogados a procurar "bicos", ou seja, buscam um emprego paralelo à profissão, de forma a suprir necessidades básicas para não passar fome. A partir de janeiro, entrou em vigor o novo Estatuto da Ordem dos Advogados de Portugal. O estágio profissional obrigatório passou, com o novo estatuto, de 18 meses para no mínimo 24 meses. Hoje, 60% dos advogados inscritos na OAP têm menos de 40 anos de idade. Dentro de 10 anos, aproximadamente 60% da advocacia serão de mulheres. Há também na OAP 7 mil advogados que estão com suas inscrições suspensas".

Em São Paulo, segundo o advogado José Cretella Neto, que se especializou em cursos preparatórios e na publicação de livros destinados ao Exame de Ordem, são 200 mil profissionais atuando na advocacia. No mesmo Estado, são 40 milhões de habitantes, ou seja, um advogado para cada grupo de 200 habitantes.

Assim, se os Portugueses estão preocupados com a concorrência, a situação, em São Paulo, é bem pior.

Diversos advogados e dirigentes da OAB têm dito o mesmo que o Bastonário:

"Há anos a OAB luta para poder exercer veto, que impeça o credenciamento de novos cursos sem bibliotecas, com quadro docente de baixo nível, com superlotação de classes, etc. No entanto, o parecer da OAB tem caráter meramente "consultivo" e o MEC não abre mão de sua prerrogativa. Você pode responder por que será que o MEC autoriza novos cursos? Será que a pressão econômica (para falar de uma forma sutil) não é mais forte? Temos 200.000 advogados militando em SP. Não há mercado para todos e, por isso, vem ocorrendo, há duas décadas, uma enorme guerra de honorários, já que advogados cobram preços vis por seus serviços. Como ganham mal, não têm dinheiro para comprar livros, estudar, e se atualizar. Quem ganha com isso?" (grifo nosso)

"Também não gosto de limitar o acesso de pessoas ao mercado, pois sou totalmente a favor da livre concorrência - verifique em meus livros de doutrina (arbitragem, OMC, etc, publicados pela ed. Forense) e você encontrará minhas posições nesse sentido"

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(Fonte: José Cretella Neto, em mensagem enviada via e-mail).

"Hoje são 886 cursos de direito que proliferam em todos os rincões nacionais, muitos sem quaisquer condições de funcionamento. Barrar esse crescimento desprovido de qualidade tornou-se um dos pontos centrais da agenda política da OAB-SP, nesta administração e defende a necessidade do Exame"

(Luiz Flávio Borges D’Urso, Presidente da OAB, Secção São Paulo - Folha de São Paulo – 23.06.05).


14. O EXAME DE ORDEM É INCONSTITUCIONAL, INJUSTO E ARBITRÁRIO

Em suma: o Exame de Ordem é inconstitucional, injusto e arbitrário, conforme explicarei, sucintamente, a seguir.

O Exame de Ordem é inconstitucional, porque não foi criado por lei, mas por um provimento do Conselho Federal da OAB, que usurpou a competência legiferante do Congresso Nacional (CF, art. 22, XVI) e o poder regulamentar do Presidente da República (CF, art. 84, IV), restringindo indevidamente a liberdade de exercício profissional, constitucionalmente assegurada (CF, art. 5º, XIII).

Evidentemente, apenas uma lei do Congresso Nacional, sancionada pelo Presidente da República, poderia restringir a liberdade de exercício profissional, porque compete privativamente à União legislar sobre "condições para o exercício de profissões" (CF, art. 22, XVI, in fine). Assim, na ausência de lei, porque o Exame de Ordem foi regulamentado pelo Conselho Federal da OAB, não resta dúvida de que o exame é inconstitucional, por força dos diversos dispositivos constitucionais pertinentes e da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, que também consagra a liberdade de exercício profissional.

Já dizia Ruy Barbosa (Comentários, Homero Pires, v.6, p.40), que:

"demonstrada a aptidão profissional, mediante a expedição do título, que, segundo a lei, cientifica a existência dessa aptidão, começa constitucionalmente o domínio da liberdade profissional."

O meu próprio diploma, aliás, assinado pelo Dr. Lourenço do Valle Paiva, Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará, em 16.08.1967, afirma que:

"tendo presente o termo de colação de grau de bacharel em direito, conferido no dia 23.12.1966....(etc.)...mandei passar-lhe, em virtude da autoridade que me confere o Regimento da Faculdade, este diploma, a fim de que possa exercer a profissão nos Estados Unidos do Brasil, com os direitos e prerrogativas legalmente concedidos". (grifo nosso)

O Exame de Ordem é injusto, porque cria uma barreira ao exercício profissional, somente depois que o bacharel concluiu o seu curso, quando a mais elementar lógica recomendaria que essa barreira fosse erigida bem antes, para que se evitasse que o bacharel perdesse cinco anos e muitos milhares de reais, para depois ser impedido de trabalhar. São quase 80 mil bacharéis que ficam impedidos de exercer a profissão, a cada ano, pelo Exame de Ordem, que o próprio Dr. Scaff reconhece que não é capaz de avaliar a capacidade profissional do bacharel em direito.

Ressalte-se que não pretendo defender, aqui, a proliferação desordenada de cursos jurídicos de baixa qualidade, mas não resta dúvida de que a Constituição e a lei atribuíram ao Estado, através do MEC, a fiscalização e a avaliação da qualidade desses cursos, e não à OAB, ou a qualquer outra corporação profissional.

Finalmente, o Exame de Ordem é arbitrário e sem transparência, porque não tem critérios estabelecidos e não é fiscalizado por ninguém. Ao mesmo tempo em que a Ordem aprova, no Acre, quase todos os bacharéis, ela reprova 97% no Paraná! Evidentemente, deveria haver um controle externo, como existe, da própria OAB, em qualquer concurso da área jurídica.


15. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não resta dúvida de que o ensino, no Brasil, é deficiente, e de que existe uma verdadeira proliferação de cursos jurídicos – e de tantos outros – sem o mínimo de condições para a formação de bons profissionais.

No entanto, isso não autoriza a OAB a fiscalizar os cursos universitários, nem a fazer um exame, para supostamente avaliar os bacharéis, e para impedir o exercício profissional dos candidatos reprovados.

Não basta dizer que o exame é necessário, porque ocorreu uma enorme proliferação de cursos jurídicos e que o ensino jurídico, em muitos casos, é extremamente deficiente, porque isso não transfere à OAB a competência que pertence ao MEC. A avaliação da qualidade do ensino superior compete ao poder público, nos termos do art. 209, II, da Constituição Federal.

A competência para essa fiscalização é toda do MEC, e ela é indelegável, a quem quer que seja. Caberia à OAB exigir, isto sim, que essa fiscalização fosse efetiva. Da mesma forma, todos os outros conselhos profissionais deveriam exigir que o MEC cumprisse as suas atribuições, impedindo a proliferação das "fábricas de diplomas".

Se isso for feito, se o MEC fiscalizar, e se os cursos universitários formarem bons profissionais, nenhum conselho de fiscalização poderá pretender restringir o direito ao trabalho dos novos bacharéis, sob a alegação de que "o mercado já está saturado". Esse é um outro problema, que não pode ser resolvido dessa maneira, por um motivo muito simples, de estatura constitucional, o de que todos são iguais perante a lei. Não se pode restringir o exercício profissional dos novos advogados, para resguardar o mercado de trabalho dos advogados antigos.

Todos os bacharéis reprovados no exame de ordem e impedidos, conseqüentemente, de exercer a advocacia, têm o direito de exigir uma indenização, como forma de compensação para o tempo perdido e para o dinheiro gasto, inutilmente. Caberia uma indenização, que deveria ser pedida, pelos prejudicados, ao Estado brasileiro, à OAB e às universidades, não apenas para compensar o prejuízo causado, de tempo e de dinheiro, mas para obrigá-los a cumprirem corretamente as suas obrigações e para desestimulá-los, pelo valor da indenização a ser paga, de voltarem a praticar os mesmos erros.

Até esta data - eu, pelo menos, desconheço e acho que já li quase todas as opiniões a respeito -, não existe nenhum argumento jurídico sério que possa provar a constitucionalidade do exame de ordem. Ressalte-se que muitos dirigentes da OAB e inúmeros juristas competentes já se manifestaram, mas não conseguiram contestar qualquer dos argumentos aqui expostos. Aliás, depõe contra a imagem da OAB a sua insistência em manter essa e outras inconstitucionalidades, evidentemente por interesses políticos, em detrimento de sua função institucional, porque não se pode supor que os seus dirigentes não tenham condições de entender as razões pertinentes à inconstitucionalidade do Exame de Ordem.

Não basta dizer, também, que ainda não houve uma decisão judicial declarando a inconstitucionalidade do Exame de Ordem e que, por esse motivo, ele é válido e constitucional. Esse é outro argumento absurdo, porque a propositura da ação não tem nada a ver com o debate jurídico. Mesmo que o STF, por pressão da OAB, talvez, julgasse improcedente uma ADIN nesse sentido e dissesse que o Exame de Ordem é constitucional, poderíamos continuar discutindo o assunto e dizendo que ele é inconstitucional.

Felizmente, a opinião doutrinária, neste país, ainda é livre. Ainda não inventaram, para isso, uma súmula vinculante, que possa nos impedir de pensar e de manifestar a nossa opinião.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fernando. Exame de ordem, autonomia universitária e liberdade de exercício profissional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1073, 9 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8489. Acesso em: 23 dez. 2024.

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