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Aborto anencefálico:

exclusão da tipicidade material

Agenda 26/06/2006 às 00:00

Não há resultado jurídico desvalioso quando o resultado não é desarrazoado (ou arbitrário ou injusto). Por isso, não há crime na conduta de quem pratica o chamado aborto anencefálico, que gera uma morte, porém, não desarrazoada ou arbitrária.

O tipo penal nos crimes dolosos (de acordo com a teoria constitucionalista do delito que adotamos) é a soma da tipicidade formal (ou objetiva) + tipicidade material (ou normativa) + tipicidade subjetiva. Da tipicidade material fazem parte três juízos valorativos distintos: juízo de desaprovação da conduta, juízo de desaprovação do resultado jurídico e juízo de imputação objetiva do resultado. O resultado jurídico (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico), para ser desvalioso (desaprovado), precisa reunir quatro características: (a) concreto; (b) transcendental; (c) grave (não insignificante) e (d) intolerável.

A quarta exigência que advém do resultado jurídico desvalioso é a intolerabilidade da ofensa. A ofensa, portanto, além de real, transcendental e grave, deve ser também intolerável (desarrazoada). Seja por força da exigência de que relevante somente pode ser a ofensa intolerável (princípio da fragmentariedade do Direito penal), seja em razão da teoria da adequação social, o fato é atípico quando não perturba (ou não perturba seriamente ou não perturba desarrazoadamente) o convívio social justamente porque a ofensa ou é tolerada (aceita) pela (quase) unanimidade da comunidade ou não é desarrazoada.

Do exposto, cabe concluir que não há resultado jurídico desvalioso quando o resultado não é desarrazoado (ou arbitrário ou injusto). Esse é o fundamento jurídico para não se reconhecer crime (fato típico) na conduta de quem pratica o chamado aborto anencefálico, que gera uma morte, porém, não desarrazoada ou arbitrária.

Pela relevância do tema, que se encontra sub judice no STF (ADPF 54), vale ponderar o seguinte:


1. "Status quaestione": ação proposta, liminar e cassação da liminar pelo STF

Nos termos dos artigos 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, todo atentado abortivo contra o feto é crime. Apenas em duas situações é permitido o abortamento no nosso país: quando há risco para a gestante (CP, art. 128, I: aborto necessário) ou quando a gravidez resulta de estupro (CP, art. 128, II: aborto humanitário ou sentimental). Como se vê, o aborto anencefálico (aborto de feto com crânio mal formado ou no caso de hidroanencefalia) não está expressamente autorizado. Pela letra fria da lei, constitui (constituiria) delito. De cada 10.000 nascimentos no Brasil, oito são anencefálicos. Muitas gestantes e sua família, assim como alguns médicos, mesmo correndo risco de serem processados, praticam o aborto anencefálico. Literalmente há crime.Vive-se uma situação de insegurança jurídica muito aflitiva. A exceção somente acontece quando o Judiciário, em cada caso concreto, concede autorização para o ato do abortamento.

Para tentar buscar uma solução para essa complicada questão, no princípio de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS -, por intermédio do advogado Luiz Roberto Barroso, com fundamento na CF (art. 102, § 1º) bem como na Lei 9.882/99, ingressou no STF com uma "ação de descumprimento de preceito fundamental" (ADPF 54 QO/DF), visando a obter da Corte Suprema uma interpretação conforme à Constituição de vários dispositivos legais do Código Penal, justamente os que cuidam do delito de aborto (CP, arts. 124, 125, 126 e 128).

Convém enfatizar desde logo que não se pretende, por meio da referida ação, que o STF crie uma nova norma jurídica para autorizar o aborto anencefálico (isto é, aborto do feto com má formação craniana). Criar norma jurídica o Judiciário não pode. Por força da tradicional teoria da tripartição dos poderes (Montesquieu), a tarefa de legislar é do legislador. A questão, entretanto, posta na citada ADPF, é outra: é saber se o aborto anencefálico acha-se ou não inserido no âmbito da proibição legal (isto é: esse tipo aborto está ou não enquadrado na norma proibitiva derivada dos arts. 124, 125 e 126 do CP?). Não se pede ao STF para "legislar", sim, para decidir (conforme as normas e princípios constitucionais) se o aborto anencefálico é ou não um fato típico, ou seja, um fato adequado ao tipo penal do aborto. É uma questão de tipicidade penal, não de "ativismo judicial".

O Ministro Marco Aurélio, na mencionada ADPF, em julho de 2004, deferiu liminar que passou a amparar, com eficácia erga omnes, todos os casos de aborto anencefálico no nosso país. Em outubro do mesmo ano o Pleno do STF (por sete votos contra quatro) cassou a liminar, sob o argumento (principal) de que era satisfativa (leia-se: uma vez feito o aborto, caso o mérito da ação não fosse julgado procedente, a situação seria irreversível; a vida, quando eliminada, não tem retorno).

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Na ocasião em que o STF cassou a liminar duas questões ficaram pendentes: (a) a via da ação de descumprimento de preceito fundamental é adequada para se discutir o tema proposto? (b) no mérito, qual é a posição definitiva dos Eminentes Ministros da Corte Suprema sobre o aborto anencefálico?


2. Pertinência jurídica da ADPF

A argüente (CNTS) apontou como violados, em sua ação de descumprimento de preceito fundamental (que nada mais é que uma nova modalidade de controle de constitucionalidade, que recai sobre o chamado direito pré-constitucional), os preceitos dos artigos 1º, IV (dignidade da pessoa humana); 5º, II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade); 6º, caput, e 196 (direito à saúde), todos da CF. Como ato do Poder Público, causador da lesão, o conjunto normativo ostentado pelos artigos 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal.

Como se percebe, de um lado está o interesse público na proteção do bem jurídico vida (do feto); de outro está o interesse individual e geral de liberdade, que, em última instância, se sintetiza na dignidade da pessoa humana. Qual deve preponderar? Qual tem maior valor? Algum desses interesses seria absoluto?

Pediu-se, na inicial, em última análise, a interpretação conforme à Constituição dos referidos dispositivos do CP, a fim de explicitar que os mesmos não se aplicam aos casos de aborto de feto anencéfalico. Pretende-se a declaração do STF no sentido de que o aborto anencefálico não se enquadra no âmbito da proibição penal. Que não é um fato (materialmente) típico.

Em 27.04.2005 o Pleno do STF, por sete votos a quatro, concluiu pela admissibilidade (e adequação) da ação de descumprimento de preceito fundamental. Resta agora o exame do mérito da questão.

Múltiplas foram as razões invocadas para o positivo juízo de admissibilidade da ADPF: (a) que a questão do aborto anencefálico é muito relevante; (b) que no atual estágio há muita insegurança nessa área; (c) que são muito relevantes os direitos e interesses envolvidos (vida do feto, liberdade da gestante, dignidade etc.); (d) que há muitas decisões discrepantes sobre a matéria; (e) que não há outro meio jurídico mais idôneo para se discutir o tema; (f) que é incabível qualquer outra ação constitucional de controle de constitucionalidade por se tratar de direito pré-constitucional etc.

Vários Ministros do STF já deram evidências, em julgamentos ou entrevistas, de que votarão a favor do direito da mulher de optar por interromper a gravidez se for detectada a anencefalia.

Por ocasião da concessão da liminar (julho de 2004) o Ministro Marco Aurélio de Mello, relator da ação, autorizou a antecipação do parto nesses casos em todo o país. Sublinhou-se que não se trata de aborto porque não há chance de sobrevivência do feto fora do útero.

Os quatro votos pelo arquivamento da ação (ADPF) foram de Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie Northfleet e Carlos Velloso. Eles disseram que o STF substituirá o Congresso na tarefa de legislar porque estará criando uma hipótese de aborto não prevista no Código Penal. Mas, com a devida venia, não é disso que se trata.


3. Fundamento dogmático do aborto anencefálico

Também existe muita polêmica sobre o exato enquadramento dogmático do aborto anencefálico: haveria exclusão da antijuridicidade, da punibilidade ou da tipicidade?

Nosso Código Penal, no art. 128, como já sublinhado, prevê duas hipóteses de aborto permitido: o necessário, quando há risco de vida para a gestante (CP, art. 128, I) e o humanitário ou sentimental (quando a gravidez resulta de estupro – CP, art. 128, II). Não se pretende que o STF crie uma terceira modalidade de exclusão de punibilidade em relação ao aborto. Não é isso que se pede na ADPF citada. Sim, que ele declare que o aborto anencefálico não se enquadra nos tipos legais desse crime (contemplados nos artigos 124 e ss. do CP).

Mas sob qual fundamento isso seria possível?

A resposta só pode ser encontrada no âmbito da tipicidade material, que exige três juízos valorativos distintos: 1º) juízo de desaprovação da conduta (cabe ao juiz verificar o desvalor da conduta, ou seja, se o agente, com sua conduta, criou ou incrementou um risco proibido relevante); 2º) juízo de desaprovação do resultado jurídico (isto é, desvalor do resultado que consiste na ofensa desvaliosa ao bem jurídico) e 3º) juízo de imputação objetiva do resultado (o resultado deve ser a realização do risco criado ou incrementado).


4. O aborto anencefálico não é um fato materialmente típico

A essa conclusão se chega quando se tem presente a verdadeira e atual extensão do tipo penal, que abrange (a) a dimensão formal-objetiva (conduta, resultado naturalístico, nexo de causalidade e adequação típica formal à letra da lei); (b) a dimensão material-normativa (desvalor da conduta + desvalor do resultado jurídico + imputação objetiva desse resultado) e (c) a dimensão subjetiva (nos crimes dolosos). O aborto anenfálico elimina a dimensão material-normativa do tipo (ou seja: a tipicidade material) porque a morte, nesse caso, não é arbitrária, não é desarrazoada. Não há que se falar em resultado jurídico desvalioso nessa situação.

A base dessa valoração decorre de uma ponderação (em cada caso concreto) entre o interesse de proteção de um bem jurídico (que tende a proibir todo tipo de conduta perigosa relevante) e o interesse geral de liberdade (que procura assegurar um âmbito de liberdade de ação, sem nenhuma ingerência estatal).

No aborto anencefálico parece não haver dúvida que o resultado jurídico (lesão contra o bem jurídico vida do feto) não é desaprovado juridicamente. Todas as normas e princípios constitucionais invocados na ação de descumprimento de preceito fundamental (artigos 1º, IV - dignidade da pessoa humana -; 5º, II - princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade -; 6º, caput, e 196 - direito à saúde -, todos da CF) conduzem à conclusão de que não se trata de uma morte (ou antecipação dela) desarrazoada (ou abusiva ou arbitrária).

Não há dúvida que o art. 5º da CF assegura a inviolabilidade da vida, mas não existe direito absoluto. Feliz, portanto, a redação do art. 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos, que diz: ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. O que se deve conter é o arbítrio, o abuso, o irrazoável. Quando há interesse relevante em jogo, que torna razoável a lesão ao bem jurídico vida, não há que se falar em resultado jurídico desvalioso (ou intolerável). Ao contrário, trata-se de resultado juridicamente tolerável, na medida em que temos, de um lado, uma vida inviável (todos os fetos anencefálicos morrem, em regra poucos minutos após o nascimento), de outro, um conteúdo nada desprezível de sofrimento (da mãe, do pai, da família etc.).

Pode-se afirmar tudo em relação ao aborto anencefálico, menos que seja um caso de morte arbitrária. Ao contrário, antecipa-se a morte do feto (cuja vida, aliás, está cientificamente inviabilizada), mas isso é feito em respeito a outros interesses sumamente relevantes (saúde da mãe, sobretudo psicológica, dignidade, liberdade etc.). Não se trata, portanto, de uma morte arbitrária. O fato é atípico justamente porque o resultado jurídico (a lesão) não é desarrazoado (desarrazoada). Basta compreender que o "provocar o aborto" do art. 124 significa "provocar arbitrariamente o aborto" para se concluir pela atipicidade (material) da conduta. Esse, em suma, é o fundamento da atipicidade do aborto anencefálico.

Mas é preciso que se constate, com toda clareza, a inviabilidade do feto. Porque é essa inviabilidade (cientificamente certa) aliada a vários outros interesses relevantes em jogo (sofrimento da gestante, angústia, afetação de sua saúde mental e psicológica, dignidade humana etc.) que torna a antecipação do parto uma medida razoável. Fora das hipóteses de inviabilidade certa da vida, jamais se pode conceber o aborto.

Por isso mesmo, fetos deformados, fetos com doenças mentais, mongais etc., não podem ser eliminados arbitrariamente. Só se justifica a morte (antecipada) do feto cuja vida está totalmente anulada. Aborto anencefálico não é aborto profilático. Ninguém pode, por razões de profilaxia (de depuração da raça, por eugenia etc.), matar qualquer outra pessoa. Aborto profilático é crime. Já o anencefálico exclui a tipicidade material. Neste a vida do feto é inviável; naquele a vida do feto (extra-uterina) é viável. Nisso reside uma grande diferença entre tais situações.

Pouco importa o fato, bastante excepcional, de alguns raros fetos anencefálicos não morrerem dez ou vinte minutos depois do nascimento. Há casos em que o nascido dura semanas, às vezes um ou mais meses. Isso, entretanto, não invalida a premissa de que jamais qualquer um desses fetos veio a sobreviver. A inviabilidade da vida quanto ao anencefálico é absoluta e cientificamente certa. Essa é a razão de se não vislumbrar arbitrariedade na antecipação do parto.

Argumenta-se ainda que o melhor seria deixar a criança nascer, aproveitar dela alguns órgãos vitais importantes (para transplantes) e só depois esperar a sua morte. Essa é uma questão delicada, porque a extração de órgãos vitais só é permitida após a morte cerebral. O feto anencefálico conta com má formação do cérebro, mas não se pode afirmar a sua morte cerebral. Feto anencefálico tem vida cerebral. O cérebro é mal formado, mas funciona. Não é possível, destarte, enquanto o feto tenha vida, retirar-lhe qualquer órgão. Deve-se aguardar a morte cerebral para a extração de órgãos.

Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico:: exclusão da tipicidade material. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1090, 26 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8561. Acesso em: 25 nov. 2024.

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