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(Mais um) um exemplo de "baixa constitucionalidade" e a decorrente ofensa aos direitos fundamentais

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Agenda 06/07/2006 às 00:00

O NEOCONSTITUCIONALISMO E A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

Entre várias acepções da expressão neoconstitucionalismo uma delas é utilizada para se referir o modelo jurídico que representa o Estado Constitucional de Direito de alguns países europeus, desenvolvido após a 2.ª Guerra Mundial, notadamente em países como Itália, Alemanha e Espanha [4].

Este movimento doutrinário designado por neoconstitucionalismo, na expressão de Fioravanti, citado por Ariza, "representan el intento de recomponer la gran fractura entre democracia y constitucionalismo." [5]

A expressão denota a direção deste movimento doutrinário, ou seja, a busca de novos modelos jurídicos para representar os Estados surgidos após os adventos das guerras mundiais, uma vez que as configurações do Estado Liberal Burguês e do Estado Social mostraram-se esgotadas em suas possibilidades de dar respostas efetivas às novas necessidades sociais.

Tais movimentos refletiram-se no espírito do constituinte de 1988, de forma que a Constituição Brasileira é, nas palavras do Prof. Lenio LUIZ Streck [6], "densa de valores, compromissária e voltada para a transformação das estruturas econômicas e sociais".

Mas, ao mesmo tempo, (con)vivemos com uma tradição positivista que cria uma série de barreiras, principalmente na interpretação das leis e na concretização material dos direitos fundamentais.

Nas palavras do Mestre Lenio Luiz Streck [7]:

O positivismo abre espaço para a discricionariedade judicial, que tanto pode dar-se na análise da lei como da Constituição. Desse modo, o que deve ser considerado como superado no positivismo – nas suas mais variadas formas – é a análise que deve ser feita não apenas sobre a vigência da lei, mas sobre a sua validade substancial. E isto faz a diferença, exatamente porque é na diferença – que é ontológica – entre texto e norma e entre vigência e validade, que se encontra o ponto de superação da lei plenipotenciária, "blindada" pelas posturas positivistas contra os valores substanciais da Constituição e da intervenção da jurisdição constitucional.

Até parece que esta percuciente observação foi feita a partir da análise acima descrita sobre a sistemática de reajustes dos proventos dos inativos e pensionistas da Previdência Social.

A tradição positivista centra-se em posições que o citado professor [8] identifica como sendo:

a) norma em vez de valor;

b) subsunção em vez de ponderação;

c) independência do direito ordinário em vez de onipresença da Constituição;

d) autonomia do legislador democrático dentro do marco da Constituição em vez da onipotência judicial apoiada na Constituição.

No caso delineado acima exposto, há a preponderância do texto da lei, em vez da busca efetiva do valor da dignidade da pessoa humana, ínsita numa lei que objetiva manter o poder aquisitivo dos inativos da Previdência Social.

Da mesma forma, não há que se falar em ponderação, uma vez que a lei está sendo aplicada tal como foi elaborada, não dando margem para se efetuar uma ponderação de valores ou de princípios na sua efetivação.

A independência do direito ordinário ao invés da onipresença da Constituição é notória: a lei é regulada e aplicada independentemente de se ponderar ou de se avaliar os seus efeitos concretos na vida dos trabalhadores aposentados. Ou seja, a principiologia constitucional não vincula o direito ordinário e muito menos condiciona a sua aplicação.

O legislador ordinário atua dentro dos parâmetros fixados pela Constituição, com a autonomia inerente à independência dos poderes; entretanto para uma efetividade material da Constituição é inegável que a jurisdição constitucional impõe-se como marco necessário para a efetiva concretização dos direitos fundamentais.

Para superar as trincheiras do positivismo, o professor [9] elenca três frentes de discussão doutrinária nas quais o neopositivismo desenvolve seu novo instrumental jurídico: na teoria das fontes, na teoria da norma e no plano da interpretação.

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Na teoria das fontes, com o entendimento de que a lei já não é a única fonte do direito, uma vez que a Constituição aparece como tal e auto-aplicativa. Na teoria da norma, com o surgimento dos princípios com o seu valor normativo de ordem superior com reflexos na própria teoria das fontes. E, em especial, no plano da interpretação, onde o neoconstitucionalismo propicia o que se tem convencionado chamar de "revolução copernicana", em virtude da profundidade das novas técnicas de interpretação, contrapostas às da hermenêutica clássica, característica do positivismo jurídico, ou seja, um novo paradigma hermenêutico-interpretativo em contraposição ás clássicas estruturas rígidas e indissolúveis entre norma e texto e entre vigência e validade.

Em apertada síntese, a superação do positivismo ocorre com o que a doutrina chama de "constitucionalização do ordenamento jurídico" que, nas palavras de Riccardo Guastini [10]:

"...propongo entender um proceso de transformación de un ordenamiento al término del cual el ordenamiento en cuestión resulta totalmente "impregnado" por las normas constitucionales. Um ordenamiento jurídico constitucionalizado se caracteriza por una Constitución extremadamente invasora, entrometida (pervasiva, invadente), capaz de condicionar tanto la legislación como la jurisprudência y el estilo doctrinal, la acción de los actores políticos, así como las relaciones sociales."

A Constituição do Brasil de 1988 apresenta esta característica de "invasora" do ordenamento jurídico,com vistas à criação de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º, I), mediante o desenvolvimento de um amplo conjunto de medidas de intervenção na ordem social cuja finalidade é a de garantir o pleno desenvolvimento da dignidade da pessoa humana, dentro de um processo de respeito à ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa (art. 170, caput).

Nas palavras de Lenio Luiz Streck [11]

"Ou seja, de um direito meramente reprodutor da realidade, passa-se a um direito com potencialidade de transformar a sociedade, como, aliás, consta no texto da Constituição do Brasil. O direito, nos quadros do Estado Democrático (e Social) de Direito, é sempre "um instrumento de mudança social. O direito é produzido pela estrutura econômica mas, também, interagindo em relação a ela, nela produz alterações. A economia condiciona o direito, mas o direito condiciona a economia. (Cfe Grau, O direito posto, op. cit. p. 59)"

Significa dizer que a Constituição do Brasil de 1988 tem um elevado potencial de transformação da sociedade, de forma a garantir o desenvolvimento nacional e, ao mesmo tempo, erradicar a pobreza e a marginalização em que ainda vivem milhões de brasileiros.

Para tanto, e sob os auspícios do chamado neoconstitucionalismo, é impensável que tais objetivos sejam alcançados sem superar as "velhas teses do positivismo acerca da interpretação" [12] na quais destacam-se a liberdade do Poder Legislativo e a discricionariedade do Poder Executivo na imposição e interpretação de leis desatreladas dos princípios constitucionais que regem o ordenamento jurídico.

Significa, como enfatiza Lenio Luiz Streck [13]:

"Dito de outro modo, a superação do positivismo – exegético e dedutivista – pelo neoconstitucionalismo implica um salto sobre as concepções hermenêuticas que entendem o processo interpretativo como parte de um processo em que o intérprete "extrai o exato sentido da norma" (sic), como se fosse possível,isolar a norma de sua concretização, sem considerar, ademais, que esse tipo de entendimento – característico do paradigma de direito formal burguês – ignora a parametricidade constitucional!" Ora, não há pura interpretação; não há hermenêutica "pura". Hermenêutica é faticidade; é vida; é existência, é realidade. É condição de ser no mundo. A interpretação não se autonomiza da aplicação. Por isto, Gadamer supera as "três subtilitas" pela applicatio, cujo resultado é a coisa mesma (Sache selbst), o caso em sua singularidade, enfim, "o caso decidendo". "

Desta forma, se a Constituição estabelece o Princípio da Irredutibilidade dos Benefícios, art. 7.º, IV, in fine c/c art. 201, § 4.º, tal princípio vincula os Poderes da República, na imposição de leis pelo Poder Legislativo, na sua aplicação pelo Poder Executivo e na sua interpretação pelo Poder Judiciário, devendo este Poder, por força do que lhe impõe a Constituição, afastar do ordenamento jurídico qualquer legislação e/ou normas administrativas emanadas de sua aplicação que afrontem este princípio norteador que traz em sua essência o princípio basilar de Justiça.

Ao se propor o reajuste dos proventos dos inativos e pensionistas da Previdência Social nos termos do art. 41 da Lei 8.213/91, mediante reajustes anuais, na mesma época do reajuste do salário mínimo, ao mesmo tempo em que se reconhece o efeito deletério, mês a mês, da inflação nos setores da economia, ignorando-o na perda mensal do poder aquisitivo dos proventos dos inativos e pensionistas da Previdência Social, os Poderes Executivo e Legislativo, de mãos dadas, afrontam diretamente a Constituição, violando o Princípio da Irredutibilidade dos Benefícios.

Enquanto os preços estão livres e ditados pelas forças do mercado (os agentes econômicos se defendem, de inúmeras formas, da perda do poder aquisitivo do capital), os inativos e os pensionistas ficam totalmente na dependência daqueles que receberam a outorga do poder do povo para, respeitando a Lei Maior, lhes fazer justiça.

Mas, desafortunadamente, o que vem ocorrendo é que a "baixa constitucionalidade" resulta numa "baixa compreensão e aplicação" da Constituição.

E se não houver uma mudança de paradigma no entendimento, por parte dos atores políticos e jurídicos, do significado da nossa Constituição dificilmente iremos superar a visão liberal-burguesa-positivista-normativista-individualista que (ainda) mantém refém da pobreza e da marginalização uma parte considerável da população brasileira.


Notas

  1. STRECK, Lenio Luiz. Págs. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 216/220.
  2. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4. ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, p. 352.
  3. BANDEIRA DE MELO, Celso Antonio. Elementos de Direito Administrativo. 16. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 817/818.
  4. ARIZA, Santiago Sastre. La Ciência Jurídica ante ao Neoconstitucionalismo. In CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2005, p. 239.
  5. FIORAVANTI, M. Constitución. De la antigüedad a nuestros dias [1999], trad. M. Martinez Neira, Trotta, Madrid, 2001, p 163, apud ARIZA, Santiago Sastre. La Ciência Jurídica ante ao Neoconstitucionalismo. In CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2005, p. 239.
  6. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 18.
  7. STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica de superação do positivismo pelo (neo)constitucionalismo. in ROCHA, Leonel Severo e STRECK, Lenio Luiz (Org.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 157/158.
  8. Idem, p. 159.
  9. Idem, ibidem.
  10. GUASTINI, Riccardo. La "Constitucionalización" del Ordenamiento Jurídico: el caso Italiano. In CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2005, p.49.
  11. STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica de superação do positivismo pelo (neo)constitucionalismo. In ROCHA, Leonel Severo e STRECK, Lenio Luiz (org.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 161.
  12. Idem, ibidem.
  13. Idem, ibidem.
Sobre o autor
Marcos Barbosa Vasques

advogado no Rio de Janeiro (RJ), mestrando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VASQUES, Marcos Barbosa. (Mais um) um exemplo de "baixa constitucionalidade" e a decorrente ofensa aos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1100, 6 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8607. Acesso em: 28 nov. 2024.

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