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(Mais um) um exemplo de "baixa constitucionalidade" e a decorrente ofensa aos direitos fundamentais

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06/07/2006 às 00:00
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DA PERDA INTERCORRENTE RESULTANTE DA CORREÇÃO ANUAL DOS PROVENTOS

A maneira mais objetiva e direta de explicitar o que se está chamando de perda intercorrente dos proventos pode ser visualizada no gráfico a seguir, onde estão plotados os proventos ao longo dos meses e o respectivo efeito mensal sobre os mesmos em função da inflação.

Consideremos dois períodos sucessivos de 12 meses, cujos proventos fixos são p1 e p2.

Ao longo do 1.º período, os proventos são fixos durante 12 (doze) meses, mas a inflação não, ou seja, a cada mês que passa, para se manter o poder aquisitivo de p1, seria necessário que o mesmo sofresse um acréscimo correspondente à inflação acumulada no período. Por exemplo, no mês n, para que o valor de p1 recuperasse o seu poder aquisitivo, seria necessário que sofresse um acréscimo de a tal que (p1 + a) seria o valor equivalente a p1, no instante 0. E assim sucessivamente.

Ao chegar no mês 12, e estando a inflação acumulada no valor de d, o valor do provento equivalente a p1, no instante 0, é (p1 + d ), o qual é, também, o novo valor dos proventos a vigorar no 2.º período, conforme determina a Lei 8.213/91, art. 41, I.

Veja-se, então que, na verdade, a manutenção do poder aquisitivo não está sendo preservado permanentemente e sim intermitentemente, a cada 12 meses, momento em que os proventos do período anterior são reajustados com a inflação passada. Mas, durante estes mesmos 12 meses, a inflação corroeu mensalmente os proventos e esta perda não é reposta para os inativos. A perda acumulada está graficamente representada pelo triângulo amarelo.

É um esquema sutil e cruel mediante o qual os Poderes da República, notadamente os Poderes Executivo e o Legislativo, cumprem, formalmente, o mandamento constitucional de preservação "permanente" do poder aquisitivo dos salários, mas, materialmente, engendram, maliciosamente, uma violação expressa do mesmo mandamento, o qual passa despercebido pelos desafortunados inativos da Previdência Social.


DA VINCULAÇÃO DOS PODERES PÚBLICOS AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988

Inicialmente é preciso destacar que o Princípio fundante da nossa República é o da Dignidade da Pessoa Humana, expresso em todas as letras no art. 1.º, inciso III da Carta Política.

Encerra este Princípio, na lição de Miguel Reale, citado pelo Prof. Daniel Sarmento que "... a pessoa humana deve ser concebida e tratada como valor-fonte do ordenamento jurídico, sendo a defesa e a promoção da sua dignidade, em todas as suas dimensões, a tarefa primordial do Estado Democrático de Direito."

Desta forma, como salienta o Prof. Sarmento, "...é lícito afirmar que todo e qualquer ato normativo, administrativo ou jurisdicional que se revelar atentatório à dignidade humana será inválido e desprovido de eficácia jurídica, ainda que não colida frontalmente com qualquer dispositivo constitucional."

Continuando assevera que :

O Estado tem não apenas o dever de se abster de praticar atos que atentem contra a dignidade humana, como também o de promover esta dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. O homem tem a sua dignidade aviltada não apenas quando se vê privado de algumas de suas liberdades fundamentais, como também quando não tem acesso à alimentação, educação básica, saúde, moradia etc.

O fato acima descrito subsume-se aos seguintes princípios constitucionais :

1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, art. 1.º, III da CRFB/88:

Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
(...)
III. a dignidade da pessoa humana;
(...)

2. Princípio da Irredutibilidade dos Benefícios, art. 7.º, IV, in fine c/c art. 201, § 4.º.

Art. 7.º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
IV. salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo...". (grifamos)
Art. 201.
(...)
§ 4.º É assegurado o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios definidos em lei.

Ou seja, os poderes públicos estão vinculados aos direitos fundamentais e, no magistério do Prof. Ingo Wolfgang Sarlet [2], colhe-se o ensinamento de que:

(...) em nosso direito constitucional, o postulado da aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais (art. 5.º, § 1.º, da CF) pode ser compreendido como um mandado de otimização de sua eficácia, pelo menos no sentido de impor aos poderes públicos a aplicação imediata dos direitos fundamentais, outorgando-lhes, nos termos desta aplicabilidade, a maior eficácia possível. Assim, por exemplo, mesmo em se tratando de norma de eficácia inequivocamente limitada, o legislador, além de obrigado a atuar no sentido da concretização do direito fundamental, encontra-se proibido (e nesta medida também está vinculado) de editar normas que atentem contra o sentido e a finalidade da norma de direito fundamental.

A lição cabe como uma luva ao caso presente.

O legislador editou a Lei 8.213/91 que, em seu art. 41, na atual redação, estabelece que:

Art. 41. Os valores dos benefícios em manutenção serão reajustados a partir de 2004, na mesma data de reajuste do salário mínimo, pro rata, de acordo com suas respectivas datas de início ou do seu último reajustamento, com base em percentual definido em regulamento, observados os seguintes critérios: (Nova redação dada pela Lei nº 10.699 de 9/07/2003)
I - é assegurado o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real da data de sua concessão;
(...)

Veja-se que o reajuste dos proventos e outros benefícios é anual, "na mesma data de reajuste do salário mínimo", em cumprimento ao Princípio Constitucional de Irredutibilidade dos Benefícios.

E o Poder Executivo regula a aplicação desta Lei através de Portarias Ministeriais que, anualmente, fixa o índice de reajuste dos benefícios previdenciários a vigorar para os próximos 12 (doze) meses.

Entretanto, analisando-se o gráfico acima apresentada, constata-se que, embora o reajuste anual tenha por escopo repor a perda do poder aquisitivo dos benefícios concedidos pela Previdência Social nos últimos 12 (doze) meses anteriores, o fato é que o efeito da inflação é mensal e, mensalmente, é apurada, medida e controlada. E assim é porque, constatado que a inflação mensal (e sua projeção nos próximos 12 meses) afasta-se das metas estabelecidas pelo Governo, são tomadas providências para ajuste na economia, o que seria inócuo se se aguardasse a sua mensuração posteriormente, quando já não se teria tempo hábil para tais ajustes econômicos conjunturais.

Ou seja, havendo inflação mensal, há perda do poder aquisitivo mensal dos proventos, da forma como demonstrado (representado pelo triângulo amarelo do gráfico acima).

Para, realmente, cumprir com o mandamento constitucional de irredutibilidade permanente dos benefícios seria preciso que, a cada período de reajuste, houvesse a reposição das perdas intercorrentes dos proventos. Aí, sim, estaria sendo fielmente cumprida o ordem constitucional, DE FORMA PERMANENTE e não INTERMITENTEMENTE.

Mas, da maneira como são procedidos os reajustes dos benefícios anuais, há, apenas, o cumprimento FORMAL da norma constitucional, DE FORMA INTERCORRENTE, uma vez que, a cada 12 (doze) meses, recupera-se o valor dos proventos, reajustando-o em função da inflação passada, mas simplesmente "esquece-se das perdas mensais que ocorreram nos mesmos últimos 12 meses".

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Ou seja, a Lei 8213/91 e as portarias ministeriais que regulam a sua aplicação aparentemente cumprem o "mandado de otimização da eficácia" do Princípio da Irredutibilidade dos Benefícios, porém, de maneira insidiosa e sutil, não o cumprem na sua extensão material, deixando de recompor, aos já parcos benefícios dos proventos, as parcelas que foram, mês a mês, corroídas pela inflação.

Interessante notar que, em se tratando de quaisquer tributos cobrados pelo Estado, em havendo recolhimento em atraso, incontinenti são cobradas as respectivas atualizações monetárias, via imposição da taxa SELIC. Muito justo, aliás, se fosse um critério adotado sempre, em mão dupla, não só no momento de cobrar, mas também no de pagar.

O citado Mestre Ingo Sarlet, ao analisar a questão da vinculação do legislador aos direitos fundamentais, assevera que:

Se, por um lado, apenas o legislador se encontra autorizado a estabelecer restrições aos direitos fundamentais, por outro, ele próprio encontra-se vinculado a eles, podendo mesmo afirmar-se que o art. 5.º, § 1.º, da CF traz em seu bojo uma inequívoca proibição de leis contrárias aos direitos fundamentais, gerando a sindicabilidade não apenas do ato de edição normativa, mas também de seu resultado, atividade, por sua vez, atribuída à Jurisdição Constitucional. Isto significa, em última ratio, que a lei não pode mais definir autonomamente (isto é, de forma independente da Constituição) o conteúdo dos direitos fundamentais, o qual, pelo contrário, deverá ser extraído exclusivamente das próprias normas constitucionais que os consagram.

Desta forma, não há nenhuma dúvida de que não se está cumprindo com as normas consagradoras dos direitos fundamentais, quando se permite a edição de leis e atos normativos que, ao invés de promover e garantir tais direitos, são omissos em regular situações nas quais, inequivocamente, tais direitos são violados de forma permanente.

Continuando com suas considerações, o citado jurista esclarece que:

(...) o efeito vinculante , dos direitos fundamentais alcança não apenas cada pessoa jurídica de direito público mas também as pessoas jurídicas de direito privado que, nas suas relações com os particulares, dispõem de atribuições de natureza pública, assim como pessoas jurídicas de direito público na sua atuação na esfera privada. Neste contexto, assume relevo a lição de Vieira de Andrade, para quem o critério decisivo reside na "existência (ou inexistência), na relação jurídica em causa, de entidades com poderes públicos, com privilégios ou prerrogativas de autoridade."

(...)

No que diz com a relação entre os órgãos da administração e os direitos fundamentais, no qual vigora o princípio da constitucionalidade imediata da administração, a vinculação aos direitos fundamentais significa que os órgãos administrativos devem executar apenas as leis que àqueles sejam conformes, bem como executar estas leis de forma constitucional, isto é, aplicando-as e interpretando-as em conformidade com os direitos fundamentais"

(..)

No caso em questão, não basta o Poder Executivo cumprir o que estabelece a Lei 8.213/91 quanto à recuperação permanente do poder aquisitivo dos proventos da aposentadoria; é necessário, também, que se preocupe com as perdas intercorrentes que sabe existir (já que as regula com perfeição quando se trata de cobrar tributos) e que deterioram de maneira impiedosa os parcos proventos dos aposentados.

A lição da doutrina parece que foi buscar inspiração nos procedimentos do Poder Executivo no tratamento dado aos reajustes dos proventos da aposentadoria.

Clássica é a lição de Celso Antonio Bandeira de Melo [3]:

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofender não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais...

Como bem ressalta o insigne Mestre Ingo Sarlet, "a não-observância destes postulados poderá, por outro lado, levar à invalidação judicial dos atos administrativos contrários aos direitos fundamentais", ou seja, cabe ao Poder Judiciário exercer a fiscalização dos atos da administração pública ofensores aos direitos fundamentais, lembrando ainda, que tal fiscalização, "no caso da administração, é mais ampla que em relação ao legislador, já que este dispõe de liberdade de ação e, portanto, de margem de arbítrio bem maior".

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Sobre o autor
Marcos Barbosa Vasques

advogado no Rio de Janeiro (RJ), mestrando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VASQUES, Marcos Barbosa. (Mais um) um exemplo de "baixa constitucionalidade" e a decorrente ofensa aos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1100, 6 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8607. Acesso em: 20 abr. 2024.

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