Está previsto no art. 3º do Código de Processo Penal que: "A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito". [1]
Nesta esteira, para encontrar a teleologia da norma, o intérprete da lei processual penal [2] terá que ampliar o seu alcance, ou seja, o poder legiferante disse menos do que, na realidade, queria dizer. [3]
Segundo a doutrina dominante [4], a interpretação da norma processual quanto ao seu resultado pode ser extensiva ou restritiva.
Para que possamos interpretar extensivamente uma norma processual penal, temos, em primeiro lugar, que verificar se essa norma processual tem caráter material ou formal. Américo Taipa de Carvalho[5] faz a distinção entre normas processuais penais materiais e normas processuais formais:
"O esquecimento prático desta especificidade e autonomia do processo penal, aliado a um viciado método de dedução conceitualístico-formal, conduziu à aceitação superficial do princípio da aplicação imediata das leis processuais penais na sua globalidade. (...) Numa palavra: menosprezavam-se as rationes jurídico-política e político-criminal da aplicação da lei penal favorável e descurava-se a distinção entre normas processuais penais materiais e normas processuais penais formais. ‘Esquecia-se´´ que as primeiras (de que são exemplos, como já referimos, a queixa, a prescrição, as espécies de prova, os graus de recurso, a prisão preventiva, a liberdade condicional) condicionam a efetivação da responsabilidade penal ou contendem diretamente com os direitos do argüido ou do recluso, enquanto que as segundas (de que são exemplos as formas de citação ou convocação, a redação dos mandados, as formas de audição e registro dos intervenientes processuais: estenografia, vídeo, etc., prazos de notificação do argüido, formalidades e prazos dos exames periciais, formalidades e horários das buscas), regulamentando o desenvolvimento do processo, não produzem os efeitos jurídicos-materiais derivados das primeiras".
Como bem salienta o autor, a prisão preventiva faz parte das normas processuais penais materiais. Deste modo, a interpretação de seus fundamentos, em especial a garantia da ordem pública, deve ser restritiva, obedecendo às regras de interpretação da lei material e os princípios fundamentais de direito penal. Com efeito, Andrei Schmidt[6] entende que: "(...) tendo em vista que a restrição da liberdade, mediante a proibição penal, é uma exceção (posto que a liberdade é regra), a única interpretação teleológica que poderá ser admitida é a restritiva (...)".
Todavia, a garantia da ordem pública, como fundamento da prisão preventiva, vem sofrendo, pela maioria dos operadores do direito, uma interpretação extensiva. O que está acontecendo é que os decretos de custódia preventiva com a finalidade de garantir a ordem pública estão relacionados com os mais diversos motivos, tais como: clamor social, gravidade do delito, exemplaridade, perigosidade do agente, desassossego, temor geral, espanto, perplexidade, abalo ou inquietação social etc.
Podemos perceber que, se a expressão "ordem pública" sofrer uma interpretação extensiva, todos os casos de prisão preventiva vão estar fundamentados com base empírica na garantia da ordem pública, pois, qualquer delito, menor que seja a gravidade, vai atingir a tal "ordem pública". Segundo Eugenio Raúl Zaffaroni[7] a interpretação extensiva não pode prosperar:
"Em princípio rejeitamos a "interpretação extensiva", se por ela se entende a inclusão de hipóteses punitivas que não são toleradas pelo limite máximo de resistência semântica da letra da lei, porque seria analogia".
Entendemos que a interpretação adequada para o fundamento da garantia da ordem pública é a restritiva, pois, além de se tratar de uma norma processual penal com caráter material, ela deve ser interpretada sempre a favor do réu. Nessa perspectiva sublinha Zaffaroni[8]:
"(...) entendemos que o princípio in dúbio pro reo nos indica a atitude que necessariamente devemos adotar para entender uma expressão legal que tem sentido duplo ou múltiplo
Devido à incerteza conceitual da expressão "ordem pública", o juiz – garante da instrução no processo de estrutura acusatória - ao decretar a prisão preventiva com este fundamento, deve fazer uma leitura restritiva da norma, respeitando os princípios da legalidade e da proibição da analogia "in malam partem", observando sempre o que é melhor para o réu.
É evidente que a lei penal se restringe àquilo que seu texto declara, exceto quando sua alteração interpretativa gerar benefício ao imputado. Isso ressalta a idéia de que o direito criminal deve atuar com a menor ênfase possível.
NOTAS
[1] BRASIL, Código de Processo Penal. 40.ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 18.
[2] Paulo Lúcio Nogueira dissertou sobre a interpretação judicial: "É aquela feita pelos juízes e tribunais ao aplicarem a lei a um caso concreto. Tem também valor relativo, pois muitos juízes chegam a interpretar a mesma norma de formas diferentes, o que nos parece indevido. E justamente em virtude de decisões conflitantes a respeito da mesma lei é que existe hoje a uniformização da jurisprudência, que não tem sido devidamente utilizada ou aplicada". NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso Completo de Processo Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 31.
[3] LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002, v. 1, p. 70.
[4] Nesse sentido: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 1, p. 23; TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, v. 1. p. 25; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 175. Conforme a lição de Andrei Schmidt: "Costuma-se classificar as possibilidades interpretativas de diversas formas. Uma delas diz respeito ao resultado da interpretação, podendo ser declarativa, restritiva ou extensiva (analógica)". SCHMIDT, Andrei Zenkner. O Princípio da Legalidade Penal no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 186.
[5] CARVALHO, Américo A. Taipa de. Sucessão de Leis Penais. 2. ed., Coimbra: Coimbra, 1997, pp. 263 - 264.
[6] Op. cit., pp. 195 - 196. Marcellus Polastri salienta, "a interpretação restritiva restringe o alcance do dispositivo interpretado, e, desta forma, se chega à vontade do legislador". LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002, v. 1, p. 70. Por seu turno, Nélson Hungria disserta sobre interpretação restritiva da norma penal: "Restritiva se diz a interpretação que restringe o alcance das palavras da lei, verificando o intérprete que o pensamento desta não permite atribuir àquelas toda a latitude que parecem comportar". HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. 1, t. I, p. 83.
[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl, Op. cit., p. 176.
[8] Ibidem. p. 176.