Cuida-se de perquirir acerca da possibilidade do raciocínio da tentativa no crime de estupro qualificado, casos em que a qualificadora restasse configurada (lesão corporal grave ou morte), muito embora o crime sexual (estupro) permanecesse na forma tentada. Nosso objetivo, com este modesto ensaio, é o de suscitar, no âmbito jurídico-penal, a discussão de um tema que não vem sendo tão bem decantado pela doutrina e jurisprudência pátrias.
Com o escopo de melhor visualizarmos a vexata quaestio ora proposta, consideremos a seguinte hipótese: o agente, almejando constranger uma mulher à prática de conjunção carnal, inicia os atos executórios tidos como incontroversos à realização de seu nefasto intento, qual seja, o estupro. Para tanto, após arrastar a vítima para um local ermo e atirar-se sobre ela, que se encontra prostrada ao chão, intenta as manobras no sentido de despi-la de suas vestes. A vítima, por sua vez, debatendo-se furiosamente, começa a agredir o coator, e este, com o objetivo tão somente de dominá-la, de forma a propiciar a penetração que ainda não ocorreu, lança a cabeça da vítima contra o chão, fato este que, diante da força excessiva imprudentemente empregada pelo algoz, termina por provocar a morte da subjugada, razão pela qual o agente não logra êxito em realizar o seu propósito.
Partindo-se dessa casuística, e, como visto, afastado o animus necandi, direto ou eventual, no que tange ao resultado morte1, é de se indagar: o agente, nestas circunstâncias, responderá por tentativa de estupro qualificado (art. 213, c/c art. 223, § único, c/c art. 14, II, dispositivos do Código Penal) ou por estupro qualificado consumado (art. 213, c/c art. 223, parágrafo único, do Código Penal)?
Em sede doutrinária, as duas posições são alvo de disputa. Pela tese da consumação, por todos, Luiz Regis Prado e Antônio Lopes Monteiro; esposando a tese do crime tentado, Rogério Greco e Luíza Nagib Eluf, dentre outros.
O notável mestre Luiz Regis Prado, justificando ser o melhor entendimento o que vê, no caso em testilha, a consumação do crime de estupro qualificado, assim leciona:
"A tentativa qualificada traz o inconveniente de se prever para o caso de crime sexual do qual resulta morte da vítima pena mínima inferior àquela abstratamente cominada para o delito de lesões corporais seguidas de morte (art. 129, §3º, CP), fato por sem dúvida menos gravoso do que o primeiro. O melhor entendimento, destarte, é aquele que prima pelo reconhecimento de que haverá, nessas hipóteses, crime qualificado consumado, não obstante ter o delito sexual permanecido na forma tentada" 2
Antônio Lopes Monteiro, a seu turno, assegura a validade da tese do crime consumado qualificado, vislumbrando uma exceção à regra geral do artigo 14, do Código Penal, à semelhança do que ocorre na figura do latrocínio3.
Em sentido contrário, com a argúcia que lhe é peculiar, Rogério Greco posiciona-se pela tentativa de estupro qualificado, salientando que:
"... tratando-se de crime preterdoloso, como regra geral, não se admite a tentativa, uma vez que o resultado que agrava especialmente a pena somente pode ser atribuído a título de culpa, e como não se cogita de tentativa em crime culposo, não se poderia levar a efeito o raciocínio relativo à tentativa em crimes preterdolosos. No entanto, toda regra sofre exceções. O que não podemos é virar as costas para a exceção, a fim de se reconhecer aquilo que, efetivamente, não ocorreu no caso concreto.
Veja-se o exemplo do estupro, que se consuma com a penetração, total ou parcial, do pênis do homem na cavidade vaginal da mulher. Se isso não ocorrer, o que teremos, no caso concreto, será uma tentativa de estupro. Portanto, há necessidade inafastável de se constatar a penetração para efeitos de reconhecimento de estupro" 4 .
Em que pese a envergadura do raciocínio de tão renomados doutrinadores que sufragam a tese do crime qualificado consumado, a meu sentir, o entendimento perfilhado por Greco revela-se mais harmônico com as diretrizes do moderno direito penal, de sorte a conceber a tentativa de estupro qualificado como a solução mais correta para o caso sub examen. Nesse diapasão, aos insofismáveis argumentos expendidos pelo ilustre membro do Parquet mineiro, ousamos promover os acréscimos que se seguem.
No tocante a alegada inferioridade da pena mínima que seria cominada para a tentativa de estupro qualificado, em cotejo com a pena mínima disposta no crime de lesão corporal seguida de morte, conquanto seja sedutor tal raciocínio, basta o conduzirmos às suas últimas instâncias para o reputarmos improcedente. Senão vejamos.
Prima facie, cremos não constituir um critério válido a comparação entre a reprimenda penal cominada a um crime complexo perfeitamente consumado (lesão corporal seguida de morte) e aquela que seria cabível a um delito complexo não consumado em sua totalidade (tentativa de estupro qualificado).
Se não bastasse, por uma simples questão matemática, concluiremos que a pena abstratamente cominada para a hipótese de estupro qualificado tentado seria, com relação a pena mínima, ao contrário do afirmado por Luiz Regis Prado, exatamente igual a do crime de lesão corporal seguida de morte, e, com relação a pena máxima, excederia, em muito, a do art. 129, § 3º, do Código Penal.
Para se chegar a tal conclusão, faz-se mister o seguinte cálculo: considerando-se a causa geral de diminuição de pena do parágrafo único, do art. 14, do CP (tentativa), ao decotarmos o quantum máximo (2/3) da pena mínima do parágrafo único, do art. 223, do Código Penal (12 anos), bem como fazendo incidir o quantum mínimo de redução (1/3) sobre a pena máxima estipulada no preceito secundário daquele mesmo tipo penal (25 anos), chegaremos a uma reprimenda penal abstratamente cominada para o crime de tentativa de estupro qualificado pelo resultado morte oscilando entre 04 anos (pena mínima) a 16 anos e 08 meses (pena máxima) de reclusão. Em vista disso, a pena do art. 213, c/c art. 223, § único, c/c art. 14, II, do Diploma Repressivo apresenta-se, quanto ao aspecto quantitativo, mais severa do que aquela cominada no crime esculpido no art. 129, § 3º, do mesmo diploma legal (04 a 12 anos de reclusão).
Isto sem levarmos em conta o fato de que, havendo presunção de violência (art. 224, do CP) na tentativa de estupro, haverá incidência do art. 9º, da Lei 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos), que dispõe aumento de metade da reprimenda penal, motivo pelo qual a pena mínima para o crime de tentativa de estupro qualificado, nestas circunstâncias, passará para 06 anos, excedendo, em muito, a do crime de lesão corporal seguida de morte.
De qualquer forma, se adotada a tese do crime consumado, estaremos tratando situações absolutamente desiguais como se idênticas fossem. Veja-se a total incongruência: o agente que, querendo estuprar a vítima, inicia os atos executórios, mas, por circunstâncias alheias à sua vontade, não atinge a conjunção carnal e, por culpa, dá causa à morte da vítima, sujeitar-se-á a uma reprimenda penal abstratamente cominada exatamente idêntica àquela prevista para um outro agente que, querendo também violar a liberdade sexual da vítima, alcança proficuamente o seu intento sórdido, ou seja, obtém sucesso na conjunção carnal e, durante a cópula vagínica, vem igualmente a ensejar, por culpa, a morte da subjugada.
Não é difícil perceber que as duas situações acima expostas possuem graus diferentes de afetação dos bens jurídicos tutelados pelo tipo penal complexo do estupro qualificado: na primeira situação, a vítima teve sua liberdade sexual apenas ameaçada (conatus proximus), vindo a morrer logo em seguida. Já na segunda situação, a vítima, antes de contrair o óbito, foi efetivamente conspurcada em sua integridade sexual, ou seja, diferentemente do infortúnio do primeiro agente, teve o segundo a oportunidade concreta de satisfazer a sua lascívia.
Lado outro, não é defensável, conforme postula Lopes Monteiro, que estaríamos diante de uma exceção à regra geral estatuída no artigo 14, do Código Penal, eis que, de acordo com as mais elementares regras de hermenêutica jurídica, "ubi lex no distinguit nec nos distinguere debemus" (onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir), assim como "ubi lex voluit dixit, ubi noluit tacuit" (quando a lei quis determinou; sobre o que não quis, guardou silêncio).
De qualquer modo, abstraindo-se a mensuração do quantum de pena aplicável in casu, tarefa a ser enfrentada em seara legislativa, a questão demanda uma reflexão em termos de adequação típica. Por conseguinte, inafastável é o comando do art. 14, I, do Código Penal, no qual o legislador, em uma clara interpretação autêntica5, giza, no bojo do iter criminis, a definição da meta optata, ou seja, da consumação delitiva, assim dispondo:
"Diz-se o crime:
I – consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal."
Ora, como responsabilizar o agente por estupro qualificado consumado, se, no caso sub studio, não se fazem presentes todos os elementos do crime sexual, ou seja, em outros termos, se a elementar típica "conjunção carnal" não se manifestou, deveras, no mundo dos fatos?
É cediço que a melhor exegese dos tipos penais prima-se por concebê-los, não isoladamente, mas sim, dimanados e integrados a um sistema maior que os transcende e cuja identificação dá-se, dentre outros recursos utilizados pelo hermeneuta, através da leitura dos títulos e capítulos nos quais os artigos se encontram topograficamente localizados. Posto isto, questiona-se: seria razoável penalizar o agente por um "crime contra os costumes" consumado, quando, em verdade, o "delito atrativo da adequação típica"6 capitulado no artigo 213, do Diploma Penal, a toda prova, permaneceu na fase do conatus?
A resposta positiva a tais questionamentos, no nosso entender, inexoravelmente terá o condão de afastar o comando do art. 14, I, do Código Penal, e, por derradeiro, constituir-se-á em flagrante violação do princípio da legalidade, em sua especial vertente "nullum crimen nulla poena sine lege stricta", 7 postulado constitucional do qual emana a ratio essendi que, frente a uma situação lacunosa no âmbito penal, veda a integração da lei por meio da analogia in malam partem.
De tal assertiva não se descuidou Rogério Greco, asseverando, com muita propriedade, que:
"... o Código Penal não é perfeito, como nenhuma legislação o é, seja nacional ou estrangeira. As falhas existem. Entretanto, raciocinando no contexto de um Estado Social e Democrático de Direito, não podemos permitir que essas falhas sejam consideradas em prejuízo do agente".
Concluindo, temos que, não obstante a falha do legislador, compete ao intérprete, em casos como o ora ventilado, em que se propugna duas soluções, optar pela que se apresenta mais conformada ao ordenamento jurídico como um todo, mormente não se olvidando as diretrizes constitucionais e principiológicas aplicáveis à espécie. Com efeito, sopesando tais considerações, força é convir que a tese da tentativa de estupro qualificado é a que menos causa arranhões às linhas mestras do moderno direito penal, da legalidade estrita e da culpa subjetiva.
É o nosso entendimento, sub censura.
Notas
1 Registre-se interessante posicionamento de Guilherme de Souza Nucci, discordando da doutrina e jurisprudência majoritárias, no sentido de que, caso o resultado morte advenha dolosamente, dada a possibilidade de coexistência do animus necandi com o dolo do crime sexual, bem como o fato de que, quando o legislador quer excluir do resultado agravador o dolo, direto ou eventual, assim o faz expressamente, como no art. 129, § 3º, do CP, deve o agente ser responsabilizado tão somente pelo crime sexual qualificado, e não pelo concurso do crime de homicídio e estupro, a exemplo do que ocorre no latrocínio. Neste sentido, confira-se: NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, p. 835, 2006.
2 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 3, p. 268, 2002.
3 MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes hediondos, p. 51.
4 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Especial, v. 3, p. 600-601, 2006.
5 Em escólio da lavra do memorável jurista Carlos Maximiliano, encontramos lapidar ensinamento sobre a interpretação tida como autêntica, o qual, por oportuno, transcrevemos, in verbis "Denomina-se autêntica a interpretação, quando emana do próprio poder que fez o ato cujo sentido e alcance ela declara. (...) Opera-se a exegese autêntica, em regra, por meio de disposição geral, e, ainda que defeituosa, injusta, em desacordo com o verdadeiro espírito do texto primitivo, prevalece enquanto não a revoga o Poder Legislativo; é obrigatória, deve ser observada por autoridades e particulares" MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 87/88, 1991.
6 Expressão nossa.
7 Acerca das vertentes do princípio da legalidade, preconizadas por Ferrajoli e Nilo Batista, vide GRECO, Rogério. Curso de direito penal. Parte especial, vol. 2, p. 20/35, 2005.