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Parcelamento.

Confissão irretratável do débito tributário e o princípio da legalidade tributária

Agenda 20/07/2006 às 00:00

Sumário: 1 Introdução. 2 A proibição de discutir dívida confessada. 3 A posição da doutrina e da jurisprudência. 4 O exame da questão à luz dos princípios da legalidade tributária e da inafastabilidade da jurisdição. 5 Conclusão.


1 Introdução

Acaba de vir à luz a Medida Provisória nº 303/06, já batizada de Refis III, reabrindo o prazo para requerer o parcelamento de débitos tributários até o dia 15 de setembro de 2006, nas seguintes condições:

a)os débitos vencidos até 28-02-2003 poderão ser parcelados em 130 (cento e trinta) parcelas mensais, corrigíveis pela TJLP, com redução de 50% das multas, ou em 6 (seis) parcelas mensais, corrigíveis pela SELIC com redução de 30% dos juros incorridos até a data do pagamento da 1ª parcela e com redução de 80% das multas, ou ainda, pagamento à vista com os mesmos benefícios (art. 9º).

b)os débitos vencidos entre 01-03-2003 a 31-12-2005 poderão ser parcelados em até 120 (cento e vinte) meses, corrigíveis pela SELIC, e sem os benefícios das reduções dos juros ou das multas (art. 8º).

Como das vezes anteriores, é vedado o parcelamento de débitos resultantes da retenção na fonte. A novidade está na inclusão das empresas enquadradas no regime do SIMPLES (micro e pequenas empresas) que, agora, poderão usufruir os benefícios do Refis nas mesmas condições das demais empresas.

Importante salientar, também, que não é obrigatória a desistência de ação judicial contra o fisco ou da impugnação administrativa como condição para requerer o parcelamento de outros débitos, que não se encontrem sub judice ou em discussão na esfera administrativa.


2 A proibição de discutir dívida confessada

Repetindo disposição semelhante em instrumentos normativos precedentes, prescreve o § 6º do art. 1º:

‘A opção pelo parcelamento de que trata este artigo importa confissão de dívida irrevogável e irretratável da totalidade dos débitos existentes em nome da pessoa jurídica na condição de contribuinte ou responsável, configura confissão extrajudicial nos termos dos arts. 348, 353 e 354 do CPC e sujeita a pessoa jurídica à aceitação plena e irretratável de todas as condições estabelecidas nesta Medida Provisória’.

A cada versão do Refis procura-se aperfeiçoar o mecanismo repressor contra o contribuinte, optante do regime de parcelamento.

Aparentemente, esse § 6º impede a discussão da dívida confessada invocando aplicação de preceitos do Código de Processo Civil citados.

O art. 348 define a confissão como admissão da verdade de um fato contrário ao interesse do confitente e favorável ao interesse da outra parte na relação jurídica material ou processual.

O art. 353 equipara a confissão extrajudicial à prova judicial.

O art. 354 versa sobre a indivisibilidade da confissão, de sorte a afastar a possibilidade de aceitar como prova apenas a parte que beneficia o confitente e rejeitar a outra parte que lhe for desfavorável.

Pergunta-se, essa redação ‘aperfeiçoada’ é suficiente para afastar toda a discussão em torno da dívida confessada?


3 A posição da doutrina e da jurisprudência

Os estudiosos do Refis, desde a sua primeira versão, não abordam essa questão. Aliás, a própria doutrina raramente tem dedicado espaço para análise dessa questão enfocada neste artigo, parecendo conformada com a jurisprudência de nossos tribunais sobre a matéria.

Transcrevamos as ementas de dois julgados do STJ para melhor compreensão:

‘EMENTA.

ICMS - PARCELAMENTO - AÇÃO DECLARATORIA - PROVA PERICIAL - DESNECESSIDADE. AS QUESTÕES POSTAS NA AÇÃO DECLARATORIA EM EXAME SÃO DE DIREITO E NÃO DEPENDEM DE PROVA, MUITO MENOS PERICIAL. NO MOMENTO EM QUE O CONTRIBUINTE PREFERE PARCELAR A DIVIDA, ACEITA O QUE LHE E EXIGIDO PELO FISCO, NÃO MAIS HAVENDO LUGAR PARA DISCUSSÃO SOBRE O PRINCIPAL E OS ACRESCIMOS. RECURSO IMPROVIDO.’ (REsp 147697/SP, Rel. Min. Garcia Vieira, DJ de 15-12-1997, p. 66306).

No mesmo sentido: AgRg no REsp 278268/PR, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, DJ de 12-11-2001 p. 128, AgRg no REsp 269597/PR, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 13-08-2001 p. 56.

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‘EMENTA.

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS – CONTRATAÇÃO DE EMPRESA PARA FORNECIMENTO DE MÃO-DE-OBRA À PREFEITURA – PARCELAMENTOCONFISSÃO DE DÍVIDA – EXTINÇÃO DO FEITO – ART. 269, V DO CPC.

1. Segundo a jurisprudência do STJ, a adesão a parcelamento com assinatura de termo de confissão de dívida equivale à renúncia sobre a qual se funda a ação, devendo ser extinto o feito com julgamento do mérito, nos termos do art. 269, V DO CPC.

2. Recurso especial provido.’ (REsp 676409/PE, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 16-05-2006 p. 204)

No mesmo sentido: REsp 643187/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 22-05-2006 p. 181, REsp 808328/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 30-05-2006 p. 149, REsp 723172/RS, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ de 29-08-2005 p. 312.


4 O exame da questão à luz dos princípios da legalidade tributária e da infastabilidade da jurisdição

A jurisprudência dos nossos tribunais impedindo a discussão do débito confessado sob todos os aspectos, de forma indiscriminada, não pode ser aceita em face da ordem jurídica global. A matéria há de ser examinada à luz do princípio da legalidade tributária e do princípio da inafastabilidade da jurisdição.

Dispõe o art. 150, I da CF que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.

Por sua vez, preceitua o art. 5º, XXXV da CF que:

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Ora, tanto a submissão da entidade política ao princípio da legalidade tributária, como a proibição de a lei impedir o acesso ao Judiciário configuram direitos e garantias individuais, insusceptíveis de supressão até por via de Emendas (art. 60, § 4º, IV da CF), muito menos a lei ordinária poderia dispor em sentido contrário.

Exatamente, o princípio da estrita legalidade tributária, insculpido no art. 150, I da Carta Política levou a doutrina a construir a teoria da natureza ex lege do tributo, no sentido de que a obrigação tributária somente pode resultar de lei, e não do contrato ou da declaração unilateral, como acontece na obrigação de direito civil.

Interessante notar que ninguém discorda da natureza legal do tributo, nem a jurisprudência. A discordância surge apenas ante a confissão da dívida tributária, para efeitos de parcelamento.

À primeira vista parece lógico a exigência da confissão de dívida e sua irretratabilidade, para submeter a dívida assim confessada ao regimento de pagamento parcelado. Do contrário, reinaria confusão e insegurança jurídica total, decorrente de impugnações judiciais dos débitos sob moratória. Aliás, inconcebível a idéia de efetuar pagamento parcelado de uma dívida que entende ser indevida e que por isso mesmo está sendo impugnada. Daí a necessidade de prévia desistência da impugnação administrativa ou judicial de dívida que se pretende incluir no Refis.

Entretanto, examinando a questão à luz do ordenamento jurídico como um todo, segue-se que a jurisprudência retrocitada não pode ser aplicada indiscriminadamente em todas as hipóteses.

No que diz respeito ao quantum debeatur, desde que, tenha ocorrido o fato gerador da obrigação tributária, o valor confessado é insusceptível de discussão na esfera judicial, ainda que, essa confissão seja resultado automático da adesão do contribuinte ao regime de parcelamento. De outro modo, não seria possível o pagamento mensal de quantia certa.

Contudo, a confissão, como admissão da verdade de um determinado fato, contrário ao interesse do confitente, definido no art. 348 do CPC, citado no art. 1º da MP 303/06, não tem o condão de criar um tributo sem lei. Não há como possa a confissão suprir a atividade legislativa. Seria como a confissão de um ‘crime’ não existente no mundo jurídico, isto é, confissão de um fato atípico. Se o fato confessado não ocorreu no mundo fenomênico, a obrigação tributária não surgiu. Apenas a ocorrência do fato gerador do tributo, isto é, a subsunção do fato concreto à hipótese legal descrita, faz surgir a obrigação tributária a ser tornada líquida e certa pelo lançamento tributário, dando nascimento ao crédito tributário.

Há ‘n’ situações em que o fato gerador deixa de ocorrer, ou ocorre na extensão menor do que a considerada pelo fisco. Exemplo: base de cálculo da COFINS (de faturamento bruto para a receita bruta).

Sempre que a dívida confessada, para efeito de parcelamento, decorrer de situação em que não houve prévia ocorrência do fato gerador, circunstância que só posteriormente veio ao conhecimento do contribuinte, ficará aberto o caminho para a impugnação judicial da dívida confessada, por força do princípio da inafastabilidade da jurisdição. A Constituição não permite que seja o contribuinte legalmente proibido de valer-se do Poder Judiciário com o fito de livrar-se do pagamento de tributo sem causa legal.

Interditar o acesso ao Judiciário, sob o singelo argumento de que houve confissão espontânea da dívida é o mesmo que abolir do mundo jurídico a ação de repetição de indébito tributário.

De fato, não poderia haver prova maior de confissão da dívida tributária do que o ato de seu pagamento voluntário.

Conforme já escrevemos, ‘o tributo indevido, exigido ou pago voluntariamente deve ser restituído em virtude do princípio de legalidade’. [01] Nada tem a ver com o princípio, que veda o enriquecimento ilícito que continua sendo invocado por parcela da doutrina.

Por isso, cristalizou-se na doutrina e na jurisprudência a tese de que não é preciso o contribuinte fazer a prova do pagamento por erro, como se exige no direito privado, para se obter a restituição do indébito tributário.


5 Conclusão

O disposto no § 6º do art. 1º da MP nº 303/06 deve ser interpretado de forma a harmonizar-se com os princípios da legalidade tributária e da inafastabilidade da jurisdição, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade. Está a merecer a propositura de ação direta de inconstitucionalidade por órgãos legitimados, a fim de obter pronunciamento da Corte Suprema no sentido da interpretação conforme a Constituição, sem redução de texto.


Notas

01 Cf. nosso Direito financeiro e tributário, 19ª edição, São Paulo: Atlas, 2006, p. 581.

Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Parcelamento.: Confissão irretratável do débito tributário e o princípio da legalidade tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1114, 20 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8667. Acesso em: 22 dez. 2024.

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