Sumário: 1 Introdução. 2 A proibição de discutir dívida confessada. 3 A posição da doutrina e da jurisprudência. 4 O exame da questão à luz dos princípios da legalidade tributária e da inafastabilidade da jurisdição. 5 Conclusão.
1 Introdução
Acaba de vir à luz a Medida Provisória nº 303/06, já batizada de Refis III, reabrindo o prazo para requerer o parcelamento de débitos tributários até o dia 15 de setembro de 2006, nas seguintes condições:
a)os débitos vencidos até 28-02-2003 poderão ser parcelados em 130 (cento e trinta) parcelas mensais, corrigíveis pela TJLP, com redução de 50% das multas, ou em 6 (seis) parcelas mensais, corrigíveis pela SELIC com redução de 30% dos juros incorridos até a data do pagamento da 1ª parcela e com redução de 80% das multas, ou ainda, pagamento à vista com os mesmos benefícios (art. 9º).
b)os débitos vencidos entre 01-03-2003 a 31-12-2005 poderão ser parcelados em até 120 (cento e vinte) meses, corrigíveis pela SELIC, e sem os benefícios das reduções dos juros ou das multas (art. 8º).
Como das vezes anteriores, é vedado o parcelamento de débitos resultantes da retenção na fonte. A novidade está na inclusão das empresas enquadradas no regime do SIMPLES (micro e pequenas empresas) que, agora, poderão usufruir os benefícios do Refis nas mesmas condições das demais empresas.
Importante salientar, também, que não é obrigatória a desistência de ação judicial contra o fisco ou da impugnação administrativa como condição para requerer o parcelamento de outros débitos, que não se encontrem sub judice ou em discussão na esfera administrativa.
2 A proibição de discutir dívida confessada
Repetindo disposição semelhante em instrumentos normativos precedentes, prescreve o § 6º do art. 1º:
‘A opção pelo parcelamento de que trata este artigo importa confissão de dívida irrevogável e irretratável da totalidade dos débitos existentes em nome da pessoa jurídica na condição de contribuinte ou responsável, configura confissão extrajudicial nos termos dos arts. 348, 353 e 354 do CPC e sujeita a pessoa jurídica à aceitação plena e irretratável de todas as condições estabelecidas nesta Medida Provisória’.
A cada versão do Refis procura-se aperfeiçoar o mecanismo repressor contra o contribuinte, optante do regime de parcelamento.
Aparentemente, esse § 6º impede a discussão da dívida confessada invocando aplicação de preceitos do Código de Processo Civil citados.
O art. 348 define a confissão como admissão da verdade de um fato contrário ao interesse do confitente e favorável ao interesse da outra parte na relação jurídica material ou processual.
O art. 353 equipara a confissão extrajudicial à prova judicial.
O art. 354 versa sobre a indivisibilidade da confissão, de sorte a afastar a possibilidade de aceitar como prova apenas a parte que beneficia o confitente e rejeitar a outra parte que lhe for desfavorável.
Pergunta-se, essa redação ‘aperfeiçoada’ é suficiente para afastar toda a discussão em torno da dívida confessada?
3 A posição da doutrina e da jurisprudência
Os estudiosos do Refis, desde a sua primeira versão, não abordam essa questão. Aliás, a própria doutrina raramente tem dedicado espaço para análise dessa questão enfocada neste artigo, parecendo conformada com a jurisprudência de nossos tribunais sobre a matéria.
Transcrevamos as ementas de dois julgados do STJ para melhor compreensão:
‘EMENTA.
ICMS - PARCELAMENTO - AÇÃO DECLARATORIA - PROVA PERICIAL - DESNECESSIDADE. AS QUESTÕES POSTAS NA AÇÃO DECLARATORIA EM EXAME SÃO DE DIREITO E NÃO DEPENDEM DE PROVA, MUITO MENOS PERICIAL. NO MOMENTO EM QUE O CONTRIBUINTE PREFERE PARCELAR A DIVIDA, ACEITA O QUE LHE E EXIGIDO PELO FISCO, NÃO MAIS HAVENDO LUGAR PARA DISCUSSÃO SOBRE O PRINCIPAL E OS ACRESCIMOS. RECURSO IMPROVIDO.’ (REsp 147697/SP, Rel. Min. Garcia Vieira, DJ de 15-12-1997, p. 66306).
No mesmo sentido: AgRg no REsp 278268/PR, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, DJ de 12-11-2001 p. 128, AgRg no REsp 269597/PR, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 13-08-2001 p. 56.
‘EMENTA.
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS – CONTRATAÇÃO DE EMPRESA PARA FORNECIMENTO DE MÃO-DE-OBRA À PREFEITURA – PARCELAMENTO – CONFISSÃO DE DÍVIDA – EXTINÇÃO DO FEITO – ART. 269, V DO CPC.
1. Segundo a jurisprudência do STJ, a adesão a parcelamento com assinatura de termo de confissão de dívida equivale à renúncia sobre a qual se funda a ação, devendo ser extinto o feito com julgamento do mérito, nos termos do art. 269, V DO CPC.
2. Recurso especial provido.’ (REsp 676409/PE, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 16-05-2006 p. 204)
No mesmo sentido: REsp 643187/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 22-05-2006 p. 181, REsp 808328/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 30-05-2006 p. 149, REsp 723172/RS, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ de 29-08-2005 p. 312.
4 O exame da questão à luz dos princípios da legalidade tributária e da infastabilidade da jurisdição
A jurisprudência dos nossos tribunais impedindo a discussão do débito confessado sob todos os aspectos, de forma indiscriminada, não pode ser aceita em face da ordem jurídica global. A matéria há de ser examinada à luz do princípio da legalidade tributária e do princípio da inafastabilidade da jurisdição.
Dispõe o art. 150, I da CF que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.
Por sua vez, preceitua o art. 5º, XXXV da CF que:
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Ora, tanto a submissão da entidade política ao princípio da legalidade tributária, como a proibição de a lei impedir o acesso ao Judiciário configuram direitos e garantias individuais, insusceptíveis de supressão até por via de Emendas (art. 60, § 4º, IV da CF), muito menos a lei ordinária poderia dispor em sentido contrário.
Exatamente, o princípio da estrita legalidade tributária, insculpido no art. 150, I da Carta Política levou a doutrina a construir a teoria da natureza ex lege do tributo, no sentido de que a obrigação tributária somente pode resultar de lei, e não do contrato ou da declaração unilateral, como acontece na obrigação de direito civil.
Interessante notar que ninguém discorda da natureza legal do tributo, nem a jurisprudência. A discordância surge apenas ante a confissão da dívida tributária, para efeitos de parcelamento.
À primeira vista parece lógico a exigência da confissão de dívida e sua irretratabilidade, para submeter a dívida assim confessada ao regimento de pagamento parcelado. Do contrário, reinaria confusão e insegurança jurídica total, decorrente de impugnações judiciais dos débitos sob moratória. Aliás, inconcebível a idéia de efetuar pagamento parcelado de uma dívida que entende ser indevida e que por isso mesmo está sendo impugnada. Daí a necessidade de prévia desistência da impugnação administrativa ou judicial de dívida que se pretende incluir no Refis.
Entretanto, examinando a questão à luz do ordenamento jurídico como um todo, segue-se que a jurisprudência retrocitada não pode ser aplicada indiscriminadamente em todas as hipóteses.
No que diz respeito ao quantum debeatur, desde que, tenha ocorrido o fato gerador da obrigação tributária, o valor confessado é insusceptível de discussão na esfera judicial, ainda que, essa confissão seja resultado automático da adesão do contribuinte ao regime de parcelamento. De outro modo, não seria possível o pagamento mensal de quantia certa.
Contudo, a confissão, como admissão da verdade de um determinado fato, contrário ao interesse do confitente, definido no art. 348 do CPC, citado no art. 1º da MP 303/06, não tem o condão de criar um tributo sem lei. Não há como possa a confissão suprir a atividade legislativa. Seria como a confissão de um ‘crime’ não existente no mundo jurídico, isto é, confissão de um fato atípico. Se o fato confessado não ocorreu no mundo fenomênico, a obrigação tributária não surgiu. Apenas a ocorrência do fato gerador do tributo, isto é, a subsunção do fato concreto à hipótese legal descrita, faz surgir a obrigação tributária a ser tornada líquida e certa pelo lançamento tributário, dando nascimento ao crédito tributário.
Há ‘n’ situações em que o fato gerador deixa de ocorrer, ou ocorre na extensão menor do que a considerada pelo fisco. Exemplo: base de cálculo da COFINS (de faturamento bruto para a receita bruta).
Sempre que a dívida confessada, para efeito de parcelamento, decorrer de situação em que não houve prévia ocorrência do fato gerador, circunstância que só posteriormente veio ao conhecimento do contribuinte, ficará aberto o caminho para a impugnação judicial da dívida confessada, por força do princípio da inafastabilidade da jurisdição. A Constituição não permite que seja o contribuinte legalmente proibido de valer-se do Poder Judiciário com o fito de livrar-se do pagamento de tributo sem causa legal.
Interditar o acesso ao Judiciário, sob o singelo argumento de que houve confissão espontânea da dívida é o mesmo que abolir do mundo jurídico a ação de repetição de indébito tributário.
De fato, não poderia haver prova maior de confissão da dívida tributária do que o ato de seu pagamento voluntário.
Conforme já escrevemos, ‘o tributo indevido, exigido ou pago voluntariamente deve ser restituído em virtude do princípio de legalidade’. [01] Nada tem a ver com o princípio, que veda o enriquecimento ilícito que continua sendo invocado por parcela da doutrina.
Por isso, cristalizou-se na doutrina e na jurisprudência a tese de que não é preciso o contribuinte fazer a prova do pagamento por erro, como se exige no direito privado, para se obter a restituição do indébito tributário.
5 Conclusão
O disposto no § 6º do art. 1º da MP nº 303/06 deve ser interpretado de forma a harmonizar-se com os princípios da legalidade tributária e da inafastabilidade da jurisdição, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade. Está a merecer a propositura de ação direta de inconstitucionalidade por órgãos legitimados, a fim de obter pronunciamento da Corte Suprema no sentido da interpretação conforme a Constituição, sem redução de texto.
Notas
01 Cf. nosso Direito financeiro e tributário, 19ª edição, São Paulo: Atlas, 2006, p. 581.