Diz-se que, além de seu portentoso bigode, Clóvis Beviláqua carregava consigo um único luxo: uma coleção de fotografias pessoais – marca de sua simplicidade e apego às coisas do lar. Foi ele, pois, um apreciador do que G. K. Chesterton classificou como “a instituição anárquica e não anarquista”: a família.
É de espantar-se, de mais a mais, que o jurisconsulto Beviláqua, grande conhecedor do Direito Internacional, jamais tenha saído do Brasil (!), a despeito dos inúmeros serviços prestados a entidades estrangeiras, devido ao cargo que assumiu no Ministério das Relações Exteriores (com nomeação do Barão do Rio Branco).
Estas anedotas de sua humilde vida pessoal fizeram com que a memória deste grande intelectual se turvasse com o passar dos anos. Hoje se lhe referem as pessoas tão somente como um dos responsáveis pela elaboração do Código Civil de 1916, obnubilando-se seus méritos filosóficos e literários, os quais são numerosos e notórios.
Eu mesmo, durante a graduação, pouco ouvi dizer e nada me aprofundei no conhecimento de Beviláqua, e hoje sinto as consequências negativas oriundas desta atitude falha, por exemplo, no estudo das disciplinas propedêuticas e, claro, da dogmática civil.
Não sabia eu que o biografado havia entre seus escritos obras de relevante valor filosófico, nas quais demonstrou seu constante esforço em conciliar a tradição e as inovações técnico/científicas de sua época. Beviláqua viveu na transição entre os Séculos XIX e XX, período profundamente marcado por mudanças estruturais na sociedade, subsidiadas por ideias filosóficas assaz inovadoras. Clóvis Beviláqua foi um nobre humanista, conciliador de tendências culturais distintas – marca oriunda de sua alta formação erudita, cultivada desde os tempos das lições que tomava de seu pai, sacerdote católico.
Este amálgama de formação religiosa (advinda do pai, que fora padre); generosidade de coração (conta-se que era humilde e bondoso) e vanguarda de pensamento (o CC de 1916 foi considerado bastante “avançado” para a época) fez com que C. Beviláqua fosse carinhosamente apelidado de “Santo Laico”.
Uma obra que exemplifica seu labor teórico é aquela denominada “Juristas Philosophos”, publicada em 1897, pela Livraria Magalhães. Neste livro, Beviláqua traça uma breve história das ideias jurídico/filosóficas, conduzindo o leitor por meio de grandes estudiosos da área. Sua análise parte dos especulativos pensadores da Clássica Grécia, passando pela prática jurídica Romana, até as altas elucubrações de seu mestre Tobias Barreto, grande nome da chamada “Escola de Recife” (um dos movimentos intelectuais mais fecundos da história de nosso país).
São vários, destarte, os motivos que me levam a indicar-lhes este livro de Beviláqua, elencarei apenas três:
- Clóvis realiza, em “Juristas Philosophos”, um trabalho digamos: à Plutarco, com vistas ao fornecimento de modelos de grandes estudiosos do Direito, para que as seguintes gerações compartilhem e almejem as virtudes dos antepassados mais ilustres. Ora, esta vertente de estudo baseado em vidas humanas virtuosas cedeu lugar, cada vez mais, à abstração das instituições e dos cargos – ao ponto de hoje falar-se, com pompas bacharelescas, de “instituições democráticas” e almejar-se, com gana cada vez maior, a ocupação de tal ou qual cargo público. Este discurso é pueril e diminui o estudo do Direito a seus aspectos mais baixos, mercadológicos/profissionais. Conhecer os grandes juristas, inclusive em seus aspectos pessoais, é a forma mais válida de compreender a História do Direito e, mais ainda, de incentivar os jovens a tornarem-se virtuosos como os mestres. Esta é uma das grandes lições do livro;
- Em “Juristas Philosophos”, Beviláqua também nos fornece um panorama geral dos pilares que sustentam a tradição jurídica ocidental, notadamente na vertente Romano-Germânica. O jurista cearense explica, desde a Introdução, que o Direito atual é um amálgama de tradições que remontam à Grécia Antiga, de onde surgiram as bases filosóficas do Direito e da Política; passando pela Roma Antiga, na qual se pôde colocar em prática os postulados erigidos pelos gregos; até chegar-se ao Direito Moderno, que possui forte inspiração no ideal liberal-democrático, do equilíbrio de Poderes – sendo Montesquieu um dos mais citados por Beviláqua no decorrer do livro;
- O livro é, por fim, um excelente material para a introdutória compreensão da “Escola de Recife”, tendo em vista que um dos autores analisados por Beviláqua foi justamente Tobias Barreto. De mais a mais, há, ao final do livro, uma digressão a respeito dos “Ensaios de Philosophia do Direito”, de Sylvio Romero – sendo este um dos mais prolíficos juristas da História do Brasil. Romero é um intelectual relativamente esquecido nos hodiernos meios intelectuais (ainda mais jurídicos), sendo considerável o mérito de C. Beviláqua em deixar registrada a fecundidade deste grande mestre.