4. Funcionários Fantasmas
São três as situações mais comuns envolvendo a casuística dos funcionários fantasmas, conforme a seguir exposto.
4.1 Nomeação de funcionário tendo como finalidade o desvio de sua remuneração
O contexto ordinário relacionado aos chamados funcionários fantasmas são os casos em que há nomeação de pessoas para cargos em comissão, mas estas pessoas nunca exercem tais funções, não prestam qualquer serviço. Os valores referentes aos salários, por sua vez, são desviados para terceira pessoa ou para a própria autoridade nomeante, ou mesmo divididos entre nomeante e nomeado (veja-se, neste caso, o exposto no item 06). A nomeação para o cargo em comissão é utilizada como artifício para possibilitar o acesso aos recursos que deveriam constituir a remuneração do servidor.
Os precedentes do Supremo Tribunal Federal enquadram a situação narrada no crime de peculato-desvio:
(...) Peculato. Desvio de dinheiro público por meio da indicação de servidores para ocuparem cargos comissionados sem prestar os serviços correspondentes. Prova da existência dos fatos e indícios de autoria. 6. Denúncia recebida.25
Assim, quando resta demonstrado que a pessoa já foi nomeada para não exercer quaisquer atividades, sendo desviados os valores de sua remuneração, há certa tranquilidade em tipificar a conduta como peculato-desvio.
Cumpre mencionar que são encontradas decisões asseverando que a situação narrada constitui crime de peculato-furto26. A justificativa para tanto é justamente não considerar a disponibilidade jurídica da nomeação/remuneração como posse, entendendo-se, então, que o funcionário acaba por subtrair os valores da remuneração.
Nas ocasiões em que a própria autoridade nomeante é que fica com a remuneração, há precedentes27 indicando a prática do crime de peculato-apropriação, tendo em vista que o funcionário já teria a posse dos valores e estaria se apropriando deles a cada remuneração recebida. Em tais casos, verifica-se a dificuldade que há em distinguir com clareza entre o crime de peculato-apropriação e o crime de peculato-desvio quando o desvio é feito em favor do funcionário público sujeito ativo do crime.
Entende-se mais adequada a configuração do crime de peculato-desvio, pois, quando se trata de verbas, estas eram destinadas a uma finalidade, que, no caso do funcionário fantasma, era a remuneração pelo exercício das funções. A figura do peculato-apropriação se aplica melhor aos casos em que agente público tem, efetivamente, a posse de coisa corpórea (carro, computador, valor em espécie apreendido, etc.) e passa a usar tais objetos como se fossem seus.
4.2 Nomeação de funcionário que vem a desempenhar apenas atividades particulares
Nos casos em que a pessoa nomeada exerce apenas atividades particulares, desvinculadas de qualquer finalidade pública, ocorrem divergências. Em tais casos as pessoas nomeadas passam a prestar serviços particulares ao nomeante, sendo remunerados com os recursos públicos.
Há diversas posições indicando a atipicidade da conduta, aduzindo que o objeto material é o serviço prestado. Citem-se, nesse sentido, os votos vencidos no julgamento do IPL 1926 pelo Supremo Tribunal Federal, conforme acima citado. Aduz-se que, nesses casos, o cargo comissionado não é utilizado como meio para dispor dos valores, mas sim, para dispor dos serviços, justificando a atipicidade, ante o princípio da taxatividade da lei penal, pois o tipo penal não estabelece os serviços como objeto material do crime de peculato.
Por outro lado, citem-se outros precedentes da Suprema Corte, entendendo pela tipicidade de tal conduta. Veja-se, de início, o seguinte trecho de acórdão28:
(…) 3. A imputação feita ao denunciado na denúncia, foi de, na condição de deputado estadual, ter desviado valores do erário público, mediante a indicação e a admissão de pessoas em cargos comissionados em seu gabinete – no período de setembro de 1999 a janeiro de 2003 -, as quais, na realidade, prestavam-lhe serviços particulares diversos. (...) 5. Há substrato fático-probatório suficiente para o início e o desenvolvimento da ação penal pública de forma legítima. 6. Denúncia recebida.
No julgamento do Inq 3.776, o Supremo Tribunal Federal analisou de modo mais específico a questão, concluindo-se que há “diferença entre usar funcionário público em atividade privada e usar a Administração Pública para pagar salário de empregado particular, o que configura peculato”29, pois a primeira situação é atípica, enquanto a segunda configura o crime de peculato-desvio, conforme esclarece do voto da ministra Rosa Weber30:
(…) Situação diversa ocorre quando o dinheiro público é desviado para o pagamento de empregado que, apenas formalmente, está vinculado à Administração Pública, mas que, na verdade, desempenha e executa serviços para outro servidor público no interesse particular deste último. O objeto material do peculato, nessas situações, é o valor desviado para o pagamento do salário. Nessas hipóteses, tem-se um pseudo funcionário público, que na verdade é um empregado privado de um outro funcionário, o qual está formalmente na condição de funcionário apenas como meio para o desvio do dinheiro público utilizado no pagamento de seus salários.(...)
Concorda-se com a conclusão exposta, pois, em tais casos o objeto material pretendido são os valores, os quais são utilizados para pagamento de um empregado particular. O fato de este empregado particular ter sido nomeado para o cargo em comissão é apenas um subterfúgio para acessar a remuneração, que, por sua vez, será utilizada para a prestação dos serviços particulares.
Recorde-se que, se o sujeito ativo do crime for prefeito, há crime especial previsto, conforme exposto acima.
Há ainda, situação intermediária, em que a pessoa exerce algumas atividades privadas e outras públicas, caso em que a conduta é atípica, pois, nesses casos, resta claro que o objeto material é o serviço, na linha da fundamentação já exposta31.
4.3 Nomeação de funcionário que não exerce suas atribuições, sem conluio com o funcionário nomeante
Por fim, tem-se os casos em que a pessoa nomeada não trabalha e não há elementos indicando o desvio dos valores, tampouco o desvio dos serviços ou o conluio com o servidor nomeante para tanto, mas apenas a não realização do trabalho, casos que são atípicos, conforme precedentes do Supremo Tribunal Federal32 33.
A diferenciação entre esta última situação e a primeira, analisada no item 4.1, deve ser efetuada a partir da análise da conduta da autoridade nomeante e do contexto probatório relacionado ao caso. Caso a nomeação tenha sido realizada com a finalidade de que o nomeado recebesse para nunca trabalhar, resta configurado o peculato-desvio.
Nos casos em que não existem elementos indicativos de tal fato, ou seja, quando há ausência de prestação de serviço por parte da pessoa nomeada, sem indicação de que havia “autorização para que ele não comparecesse ao trabalho”, não há crime de peculato, podendo ser cogitada a prática do crime de abandono de função pública (art . 323 do CP) e também configurando infração disciplinar e ato de improbidade administrativa por parte do servidor nomeado.
Cite-se que o fato de a autoridade nomeante ter conhecimento de que o nomeado não está prestando qualquer atividade e não adotar nenhuma providência é elemento indicativo de sua aquiescência com a conduta, remetendo às conclusões expostas nos itens anteriores.
O ponto central reside justamente em restar demonstrada a colusão entre as partes, buscando o recebimento dos proventos sem a prestação das atividades correlatas ao cargo.
5 Do crime praticado pela pessoa nomeada
Após vistos os casos mais comuns de funcionários fantasmas, cabe verificar se a pessoa nomeada também pratica infração penal. Na maioria dos casos encontrados nos julgados dos tribunais não se verifica a imputação de crime às pessoas nomeadas. Entretanto, entende-se que isso é possível e ocorre em parte dos casos.
A configuração do concurso de pessoas nos crimes analisados dependerá do conhecimento pela pessoa nomeada acerca dos atos ilícitos que estão sendo praticados, ou seja, da configuração de sua conduta dolosa, e de seu concurso para a prática da conduta.
Nas situações analisadas nos itens 4.1 e 4.2, a pessoa nomeada responderá pelo mesmo crime da autoridade nomeante quando concorrer para o ato ilícito, nos termos do artigo 29 do Código Penal. Assim, caso deliberadamente empreste seu nome, assine termo de posse, recebe os valores e unicamente preste serviços particulares ou não efetue nenhum serviço, conforme acordado com o funcionário nomeante, concorrerá para a prática criminosa. Trata-se de condutas necessárias e relevantes para o acesso aos valores, apontando para a configuração do concurso de pessoas.
Outrossim, nos casos em que o funcionário nomeante apenas utiliza de dados de terceiros, sem que estes saibam disso ou tenham sido de alguma forma ludibriados, não haverá o concurso de pessoas.
Por fim, há os casos em que há divisão da remuneração entre nomeante e nomeado, a seguir analisados.
6 Divisão da remuneração entre nomeante e nomeado
Outra casuística correlata aos casos dos servidores fantasmas ocorre quando o servidor responsável pela nomeação exige parcela da remuneração que seria devida ao nomeado, ou quando há divisão da remuneração. Tais casos podem ocorrer no contexto dos funcionários fantasmas ou mesmo de servidores que efetivamente desempenhavam suas funções.
Inicialmente, serão analisados os casos em que o servidor nomeado efetivamente exercia suas funções, mas dividia a remuneração com o funcionário responsável pela nomeação.
6.1 Divisão de remuneração nos casos em que o servidor nomeado exercia suas atividades
A tipificação do possível crime é tema controverso na doutrina34, mas se pode afirmar que a adequada tipificação do crime dependerá das especificidades do caso concreto.
A doutrina35 e a jurisprudência majoritárias costumam apontar que a exigência de parcela do salário se amolda ao crime de concussão (art. 316 do Código Penal), na medida em que há uma exigência de vantagem ilícita para o exercício do cargo. Trata-se de uma exigência ilegal, pois a lei estabelece que a remuneração é devida à pessoa que exerce as atribuições, sendo indevido que o funcionário nomeante se valha da prerrogativa de poder indicar servidores para cargos em comissão como artifício para seu enriquecimento ilícito. Na mesma linha são encontradas diversas decisões judiciais36, conforme ilustrado pelo seguinte acórdão:
(…) III – No caso dos autos, os elementos probatórios reunidos aos autos durante todo o iter processual são suficientes a demonstrar que a acusada, vereadora do Município de Ribas do Rio Pardo, exigiu, em razão da função exercida, vantagem indevida à vítima, que consistia no repasse mensal de parte da remuneração recebida pelo exercício do cargo comissionado de assessora parlamentar. (...)37
A depender dos contornos fáticos, pode-se cogitar também na configuração do crime de corrupção passiva. Trata-se dos casos em que o servidor nomeante apenas solicita a vantagem, ou seja, não impõe esse repasse. Embora teoricamente seja possível tal hipótese, a situação em que se encontra o servidor nomeado aponta que, geralmente, a exigência se encontra implícita, pois eventual negativa implicará, certamente, sua exoneração do cargo em comissão.
Pode-se questionar acerca de eventual infração penal praticada pelo servidor nomeado que repassa a parcela de seu salário. Cogitar eventual concurso do servidor nomeado no crime praticado pelo servidor nomeante aparenta ser incongruente, pois aquele também seria vítima da conduta. Entretanto, não se pode ignorar que ambos concorrem para o ilícito, pois, como regra, o nomeado devolverá parte de sua remuneração. O servidor nomeado tem a opção de não concordar com a exigência, mesmo que isso possa acarretar a perda de seu cargo. Tais fatos demonstram ser necessária maior reflexão acerca de possível crime por ele praticado.
Inicialmente, merece ser recordado que o crime de concussão é formal, consumando-se com a mera exigência da vantagem ilícita. Assim, na maior parte dos casos, o servidor nomeado, ao efetuar o repasse do seu salário, adere a uma conduta criminosa já consumada, fato que impede a configuração do crime de concurso de pessoas, pois não há concurso de pessoas após a consumação do crime.
Por outro lado, a tipificação da conduta deve ser diversa quando não há uma efetiva exigência entre os servidores (nomeante e nomeado), mas sim um acordo para a entrega de parcela do valor. Em tais casos não aparenta ser adequado o enquadramento como crime de concussão, pois este busca tutelar o idôneo exercício das atribuições de um cargo ou função pública, não a relação do servidor público com o patrimônio público ou privado que tem acesso em decorrência de seu cargo, objeto este tutelado pelo peculato.
Recorde-se que o servidor responsável pela nomeação possui a prerrogativa de nomear os titulares dos cargos em comissão, os quais receberão uma remuneração pelo exercício de tais atividades. Quando há um acordo entre ambos para divisão de tais valores, tem-se que prevalece o uso indevido de tal prerrogativa, ou seja, os valores são divididos quando deveriam ser destinados ao nomeado.
O servidor nomeado, embora figure como lesado, concorda e concorre para a prática ilícita, pois, salvo casos específicos, sua concordância é essencial para a configuração do crime. Não se pode ignorar que o servidor nomeado tem, a priori, o poder de se negar a compactuar com tais fatos, não repassando parcela dos valores, embora possa estar sujeito a ser exonerado. Em situações muito específicas, poderá alegar inexigibilidade de conduta diversa ou outra excludente, como, por exemplo, no caso de pessoa desempregada há longa data e que demonstre a imprescindibilidade dos valores para seu sustento.
Por tal motivo, entendemos que, em tais casos – efetivo acordo entre nomeante e nomeado para divisão de valores - resta configurado o crime de peculato-desvio, concorrendo nomeante e nomeado para a prática da infração penal. Destaca-se que se trata de entendimento minoritário, pois as situações majoritariamente encontradas nas decisões judiciais apontam para a configuração do crime de concussão por parte do servidor nomeante, sem questionamentos quanto à conduta da pessoa nomeada.
6.2 Divisão de remuneração em casos de “funcionário fantasma”
Quando o servidor nomeado não exercia suas atividades, ou seja, era “funcionário fantasma”, e havia a divisão dos valores referentes à remuneração, também resta configurado o crime de peculato-desvio.
No contexto dos funcionários fantasmas, resta mais nítido que nomeante e nomeado praticam condutas ilícitas, que ambos concorrem para a prática de infração penal (art. 29 do CP). Trata-se, na verdade, de um concurso de vontades para um acordo ilícito. O servidor responsável pela nomeação recebe indevidamente parcela da remuneração e o servidor nomeado recebe a outra parte sem exercer qualquer atividade. Tal contexto, a nosso ver, é diferente da situação antes exposta (quando o nomeado efetivamente exerce suas funções) e remete para os casos analisados no item 04.
O cerne, nesses casos, não está na exigência dos valores, mas sim no acordo efetuado por ambos para desvio dos valores que deveriam ser destinados apenas ao pagamento da remuneração. Trata-se de evidente torpeza bilateral, pois ambos ajustam o esquema criminoso do qual obtêm proveito. Assim, ambos praticam, em concurso de pessoas, o crime previsto no artigo 312, parte final, Código Penal, qual seja, peculato-desvio.