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Violência doméstica e familiar.

Crime e castigo

            Na semana que passou, a imprensa nacional noticiou a sanção presidencial da Lei 11.340/2006, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. O dispositivo legal apresenta diversas inovações e, em alguns pontos, sensível avanço na agilização dos procedimentos cíveis. Contudo, na área criminal, a lei se apresenta como um retrocesso.

            A nova lei aumenta a sanção penal para os crimes praticados com violência doméstica e familiar e dificulta a aplicação de penas alternativas. Além disto, afasta os mecanismos da Lei dos Juizados Especiais, Lei nº 9.099/95.

            O Juizado Especial Criminal foi previsto na Constituição Federal e a partir de 1995 foi efetivamente implantado. Apresentou significativas mudanças no sistema judiciário e legal, em especial a busca da conciliação e aplicação de medidas não punitivas.

            A conciliação civil, audiência em que as partes comparecem e discutem seus problemas, numa tentativa de restauração, tem se mostrado o mais eficaz dos instrumentos de pacificação social. Os envolvidos no delito expõem suas razões e o mediador apresenta soluções para resolver a lide. Há um processo de conscientização e de cidadania participativa. Houve uma quebra do paradigma dogmático da Justiça Penal tradicional, no qual o magistrado impõe a sanção independentemente da vontade e manifestação das partes.

            A aplicação de penas e medidas alternativas baseia-se no princípio da mínima intervenção do direito penal. Significa dizer: direito penal somente para os casos em que sua intervenção seja indispensável, imprescindível. A sanção penal é estigmatizante e traz severas conseqüências ao ser humano, num processo de exclusão e morte social. Para minorar este etiquetamento as penas e medidas alternativas foram estabelecidas. Além disso, não se pode deixar de considerar que a Justiça Penal tradicional exerce um papel de vitimização tanto em relação à vítima quanto ao desviante.

            Focando estes dois pontos, sem exaurir as possíveis outras críticas, enxergamos na nova lei um retrocesso.

            A conciliação civil permitia que o autor da agressão e a ofendida buscassem, com o auxilio de mediadores, a solução adequada para os problemas vivenciados no ambiente doméstico e familiar. A conversa entre as partes é sem dúvida alguma o único e eficaz caminho para se combater a violência, não se apresentando a punição mais severa como forma de resolução dos conflitos. A violência contra a mulher não é um ponto isolado na história, mas sim fruto de um processo cultural da sociedade moderna. E os processos culturais não se rompem com lei penais punitivas. É preciso considerar, na estrutura cultural brasileira, a "síndrome do pequeno poder" que, segundo Saffioti, é um problema social e não individual, característica da nossa sociedade. Para a autora as relações sociais são permeadas por uma lógica de poder que permite ao individuo melhor situado socialmente submeter aos que lhes são inferiores. A "síndrome do pequeno poder" surge quando aqueles que não se contentam com sua pequena parcela de poder exorbita sua autoridade. Pode-se observar este sintoma, principalmente, nas relações familiares, entre o homem e a mulher (patriarcalismo) e entre o pai e os filhos (adultocrentismo). Legitima a assimetria das relações de gênero e subordina a mulher ao homem.

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            A severidade das sanções penais ou dos mecanismos de repressão em nada contribui para a pacificação social. O direito penal não é a solução! Tanto que Thomas Morus, canonizado pela Igreja Católica (1935) e celebrado no berço do liberalismo e do comunismo, numa façanha ímpar, autor da obra Utopia, levanta o seguinte questionamento sobre o sistema penal: que outras coisas fazes, além de fabricar ladrões para então puni-los?

            O sentimento de insegurança social permite mais severas punições e a sociedade vê nelas a solução dos seus problemas, porém as leis produzidas nestes contextos são nuvens de fumaça que engrossam o véu da ignorância.


REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

            ASSIER-ANDRIEU, Louis. O Direito nas sociedades humanas. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

            BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2004.

            CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda, 2002.

            FERNANDES, Antonio Scarance. A vítima no processo penal brasileiro. In Lá víctima em el proceso penal. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1997.

            GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. O direito penal na era da globalização. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

            PASSETTI, Edson (Coord). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004.

            SAFFIOTI, Heleieth. In Crianças Vitimizadas: A síndrome do pequeno poder. Azevedo, Maria Amélia; Guerra, Viviane Nogueira de Azevedo (Org.). São Paulo: Iglu Editora Ltda., 2000.

            SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

            YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Tradução Renato Aguiar, Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002.

Sobre os autores
Marcelo Gonçalves Saliba

promotor de Justiça, mestrando pela Faculdade de Direito do Norte Pioneiro de Jacarezinho, professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Paraná, professor de Direito Penal das Faculdades Integradas de Ourinhos, professor colaborador de Prática de Processo Penal da Faculdade de Direito do Norte Pioneiro de Jacarezinho

Maurício Gonçalves Saliba

graduado em História, mestre e doutorando em Educação pela UNESP/Marília, professor visitante de pós-graduação da UNICAMP, professor de sociologia e política da Faculdade Estácio de Sá de Ourinhos (FAESO)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALIBA, Marcelo Gonçalves; SALIBA, Maurício Gonçalves. Violência doméstica e familiar.: Crime e castigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1146, 21 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8824. Acesso em: 8 nov. 2024.

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