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Aspectos criminais da Lei de Violência contra a Mulher

Agenda 13/09/2006 às 00:00

A Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, que está reestruturando completamente o ordenamento jurídico no que diz respeito à violência contra a mulher, foi publicada no dia 08 de agosto de 2006. Considerando-se que prevê vacatio de quarenta e cinco dias, entrará em vigor no dia 22 de setembro de 2006.


A necessária divisão do assunto em três etapas

Com o advento da Lei 11.340/2006, o assunto "violência contra a mulher" passará por três etapas (jurídicas) distintas, que são temporalmente as seguintes: 1ª) da publicação da lei (08.08.06) até 21.09.06; 2ª) de 22.09.06 até à criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Jufams); 3ª) depois da criação dos Jufams (em cada Estado, por lei estadual, e no Distrito Federal e Territórios pela União – art.14).

Primeira etapa: hoje a violência contra a mulher não conta com um conjunto ordenado de normas. Elas existem (há uma multiplicidade de regras sobre a matéria), mas não se acham sistematicamente ordenadas. A proteção civil é feita pelos juízos cíveis; da parte criminal encarregam-se os juízes criminais ou os juizados criminais. Quando se trata de crime de menor potencial ofensivo (crimes com sanção não superior a dois anos), a competência é dos juizados criminais especiais. A grande maioria das infrações penais contra a mulher é conhecida e julgada (hoje) por esses juizados.

A Lei 9.099/1995, como se sabe, introduziu no Brasil o modelo consensual de Justiça e contemplou quatro institutos despenalizadores, que são: (a) transação penal, (b) composição civil extintiva da punibilidade (nos crimes de ação penal privada ou pública condicionada), (c) exigência de representação nas lesões corporais leves ou culposas e (d) suspensão condicional do processo.

O dia-a-dia do funcionamento dos juizados nunca agradou alguns setores da sociedade. Algumas associações de mulheres, especialmente, sempre protestaram contra a forma de solução dos conflitos "domésticos" (ou seja: da violência doméstica) pelos juizados. Em casos de ação penal pública, a mulher (ou outra vítima qualquer) nem sequer participa da transação penal (o Estado "roubou-lhe o conflito", como diz Louk Hulsman). O profundo mal-estar que causou o modelo praticado de Justiça consensuada a esses segmentos constitui o fundamento mais evidente do surgimento do novo diploma legal, que está refutando de modo peremptório qualquer incidência da Lei 9.099/1995 (art. 41).

Primeiro foi a Justiça Militar, por força da Lei 9.839/1999; agora é a "violência contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar" (Lei 11.340/2006) que se afasta do âmbito dos juizados criminais. Num primeiro momento (1995/1996) houve uma fuga (de assuntos) "para os juizados"; com o advento do último texto legal, o que se nota é o (paulatino) abandono dos "velhos" juizados ("fuga dos juizados").

Durante o período de vacatio legis, entretanto (da publicação da lei – 08.08.06 - até o dia 21.09.06), os delitos contra a mulher (no ambiente doméstico ou íntimo) continuarão sendo resolvidos pelos Juizados criminais (quando a pena máxima prevista para o crime não for superior a dois anos). Essa é a primeira etapa da disciplina jurídica desse assunto. Mesmo que a lei nova seja favorável (por exemplo: pena mínima no caso de lesão corporal leve: hoje é de seis meses e com a lei nova passou para três meses), não pode o juiz aplicá-la durante a vacatio (porque a lei nova pode ser revogada em qualquer momento, antes mesmo de entrar em vigor). Se em alguma situação concreta o juiz perceber que pode algum benefício da lei nova ter incidência, o correto será aguardar a vigência da lei nova (tomando-se eventuais medidas cautelares, se o caso necessitar).

Segunda etapa: a segunda etapa jurídica dessa matéria vai acontecer a partir de 22.09.06 (que é a data da vigência da nova lei). Dela se encarregarão as varas criminais (art. 33 da Lei 11.340/2006). Tudo que fará parte (no futuro) da competência dos Jufams (Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher), de imediato (ou seja: a partir de 22.09.06), cabe às "varas criminais" (arts. 29 e 33), que terão competência "cível e criminal" para conhecer e julgar "as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher" (no segundo artigo dessa série estaremos cuidando dessa matéria).

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Terceira etapa: a terceira etapa dessa evolução jurídica dar-se-á em cada Estado (ou no Distrito Federal) que criar os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (art. 14). É a etapa que sinaliza com a solução mais adequada para o problema da violência doméstica ou familiar, porque enfoca essa questão do ponto de vista multidisciplinar (dos futuros juizados poderão participar profissionais das áreas psicossocial, jurídica e de saúde, que desenvolverão trabalhos de orientação, encaminhamento e prevenção voltados para a ofendida, o agressor e seus familiares).


Observações críticas

No que diz respeito às medidas cautelares e protetivas de urgência a nova lei representa um avanço impressionante. No que concerne, entretanto, ao âmbito criminal, a opção política feita pelo legislador da Lei 11.340/2006 retrata um erro crasso. Ao abandonar o sistema consensual de Justiça (previsto na Lei 9.099/1995), depositou sua fé (e vã esperança) no sistema penal conflitivo clássico (velho sistema penal retributivo). Ambos, na verdade, constituem fontes de grandes frustrações, que somente poderão ser eliminadas ou suavizadas com a terceira via dos futuros Juizados, que contarão com equipe multidisciplinar (mas isso vai certamente demorar para acontecer; os Estados seguramente não criação com rapidez os novos juizados). De qualquer modo, parece certo que no sistema consensuado o conflito familiar, por meio do diálogo e do entendimento, pode ter solução mais vantajosa e duradoura; no sistema retributivo clássico isso jamais será possível.

Quem, nos dias atuais, acredita no sistema penal clássico (inquérito policial, denúncia, instrução probatória, ampla defesa, contraditório, sentença, recursos etc.) e supõe que o funcionamento da Justiça criminal brasileira seja eficiente para resolver alguma coisa, com certeza, não tem a mínima idéia de como ele se desenvolve (ou não o conhece em sua real dimensão).

O sistema penal retributivo clássico é gerenciado por uma máquina policial e judicial totalmente desconexa (seus agentes não se entendem), morosa e extremamente complexa. Trata-se de um sistema que não escuta realmente as pessoas, que não registra tudo que elas falam, que usa e abusa de frases estereotipadas ("o depoente nada mais disse nem lhe foi perguntado" etc.), que só foca o acontecimento narrado no processo, que não permite o diálogo entre os protagonistas do delito (agressor e agredido), que rouba o conflito da vítima (que tem pouca participação no processo), que não a vê em sua singularidade, vitimizando-a pela segunda vez, que canaliza sua energia exclusivamente para a punição, que se caracteriza pela burocracia e morosidade, que é discriminatória e impessoal, que é exageradamente estigmatizante, que não respeita (muitas vezes) a dignidade das pessoas, que proporciona durante as audiências espetáculos degradantes, que gera pressões insuportáveis contra a mulher (vítima de violência doméstica) nas vésperas da audiência criminal etc.

Tudo quanto acaba de ser descrito nos autoriza concluir que dificilmente se consegue, no modelo clássico de Justiça penal, condenar o marido agressor. E quando ocorre, não é incomum alcançar a prescrição. Na prática, a "indústria" das prescrições voltará com toda energia. O sistema penal clássico, que é fechado e moroso, que gera medo, opressão etc., com certeza, continuará cumprindo seu papel de fonte de impunidade e, pior que isso, reconhecidamente não constitui meio hábil para a solução desse tenebroso conflito humano que consiste na violência que (vergonhosamente) vitimiza, no âmbito doméstico e familiar, quase um terço das mulheres brasileiras.


Competência criminal da Lei de Violência contra a Mulher

Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Jufams, que poderão ser criados pelos Estados e no Distrito Federal e Territórios) terão competência "cível e criminal" para conhecer e julgar "as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher" (art. 14). Enquanto não criados tais juizados, essa tarefa será das "varas criminais" (arts. 29 e 33). Como se vê, a partir de 22.09.06 passa para tais varas criminais a plena competência para julgar as causas acima referidas.

Competência (imediata) das varas criminais: o que se entende por "causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher", que comporão (no futuro) a competência dos Jufams e que, de imediato, passam para a responsabilidade das varas criminais? A resposta deve ser encontrada no artigo 5º da Lei 11.340/2006.

Esse dispositivo legal (art. 5º) diz o seguinte: "Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual".

A fixação da competência (imediata) das varas criminais (que é a mesma que no futuro fará parte dos Jufams), como se nota, depende (da conjugação) de dois critérios: 1º) violência contra mulher e 2º) que ela (mulher) faça parte do âmbito doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo do agente do fato. Em outras palavras, a competência será firmada em razão da pessoa da vítima ("mulher") assim como em virtude do seu vínculo pessoal com o agente do fato (ou seja: é também imprescindível a ambiência doméstica, familiar ou íntima).

Note-se: não importa o local do fato (agressão em casa, na rua etc.). Não é o local da ofensa que define a competência (das varas criminais e dos Jufams). Fundamental é que se constate violência contra mulher e seu vínculo com o agente do fato.

Para ter incidência a lei nova o sujeito passivo da violência deve necessariamente ser uma "mulher" (tanto quanto, por exemplo, no crime de estupro). Pessoas travestidas não são mulheres. Não se aplica no caso delas a lei nova (sim, as disposições legais outras do CP e do CPP). No caso de cirurgia transexual, desde que a pessoa tenha passado documentalmente a ser identificada como mulher (Roberta Close, por exemplo), terá incidência a lei nova.


A questão da constitucionalidade da lei

A Lei 11.340/2006 constitui exemplo de ação afirmativa, no sentido de buscar uma maior e melhor proteção a um segmento da população que vem sendo duramente vitimizado (no caso, mulher que se encontra no âmbito de uma relação doméstica, familiar ou íntima). O art. 5º, I, da CF diz que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". Mas o tratamento diferenciado em favor da mulher (tal como o que lhe foi conferido agora com a Lei 11.340/2006) justifica-se, não é desarrazoado (visto que a violência doméstica tem como vítima, em regra, a mulher). Quando se trata de diferenciação justificada, por força do critério valorativo não há que se falar em violação ao princípio da igualdade (ou seja: em discriminação, sim, em uma ação afirmativa que visa a favorecer e conferir equilíbrio existencial, social, econômico, educacional etc. a um determinado grupo). Se a lei nova escolheu o melhor caminho a partir de 22.09.06 é outra coisa. Faço reservas em relação a isso.

Sujeito ativo da violência pode ser qualquer pessoa vinculada com a vítima (pessoa de qualquer orientação sexual, conforme o art. 5º, parágrafo único): do sexo masculino, feminino ou que tenha qualquer outra orientação sexual. Ou seja: qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo da violência; basta estar coligada a uma mulher por vínculo afetivo, familiar ou doméstico: todas se sujeitam à nova lei. Mulher que agride outra mulher com quem tenha relação íntima: aplica a nova lei. A essa mesma conclusão se chega: na agressão de filho contra mãe, de marido contra mulher, de neto contra avó, de travesti contra mulher, empregador ou empregadora que agride empregada doméstica, de companheiro contra companheira, de quem está em união estável contra a mulher etc. Exceção: marido policial militar que agride mulher policial militar, em quartel militar (a competência, nesse caso, é da Justiça militar).

Quem agredir uma mulher que está fora da ambiência doméstica, familiar ou íntima do agente do fato não está sujeito à Lei 11.340/2006. É dizer: quem ataca fisicamente uma mulher num estádio de futebol, num show musical etc., desde que essa vítima não tenha nenhum vínculo doméstico, familiar ou íntimo com o agente do fato, não terá a incidência da lei nova. Aplicam-se, nesse caso, as disposições penais e processuais do CP, CPP etc.

A violência contra a mulher pode assumir distintas formas: física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral (art. 7º). Não importa o tipo de violência: se gerar algum ilícito penal ou alguma pretensão civil (de urgência), tudo será da competência das "varas criminais" (de imediato) (no futuro, dos Jufams).

Observe-se que, no futuro, quando criados os Jufams, a competência deles não terá por base o atual critério dos juizados (infrações penais até dois anos). Trata-se de competência que será definida em razão de critérios próprios. Qualquer delito contra mulher praticado no âmbito das relações domésticas, de família ou íntima (não importa a pena nem a natureza do crime: lesão corporal, ameaça, crime contra a honra, constrangimento ilegal, contra a liberdade individual, contra a liberdade sexual etc.) será da competência dos Jufams (e, de imediato, das varas criminais).

Cárcere privado, lesões corporais, tortura, violência sexual, calúnia, injúria, ameaça etc.: tudo é da competência imediata das varas criminais (e, no futuro, dos Jufams). Exceções: as exceções a essa regra ficam por conta das competências definidas na Constituição Federal: júri, crimes da competência da Justiça Federal, crimes da competência da Justiça militar etc. No caso de homicídio (crime doloso contra a vida) a competência é do Tribunal do Júri, incluindo-se o sumário de culpa (fase instrutória preliminar). Não será de imediato das varas criminais nem dos Jufams no futuro. Diga-se a mesma coisa em relação à competência da Justiça Federal: agressão do marido contra a mulher dentro de um avião ou navio (é da competência da Justiça Federal, CF, art. 109). Note-se que a lei não prevê os Jufams no âmbito da Justiça Federal.


Regras de competência (incidência imediata)

Todas as novas regras de competência contempladas na Lei 11.340/2006 terão incidência imediata (no mesmo dia 22.09.06), por força do art. 2º do CPP (princípio da aplicação imediata da lei genuinamente processual). Mas os crimes ocorridos até 21.09.06 continuarão regidos pelo direito anterior (mais benéfico). Lei nova prejudicial não retroage.


Direito de preferência

Nas varas criminais, as causas que envolvem violência doméstica ou familiar contra a mulher contam com direito de preferência (parágrafo único do art. 33). Essa preferência não exclui outras já definidas em lei (lei dos idosos, por exemplo). O juiz deve dar prioridade (na movimentação dos processos) a todas essas causas (elas devem ter andamento mais célere).


Sucessão de leis penais e continuidade delitiva

No caso de continuidade delitiva (marido que pratica agressões freqüentes e sucessivas contra a mulher), caso tenha havido agressões na vigência da lei anterior bem como da lei nova, incide a Súmula 711 do STF (ou seja: a pena que terá incidência é a da nova lei, não a da lei antiga).

Sobre os autores
Alice Bianchini

doutora em Direito Penal pela PUC/SP, mestre em Direito pela UFSC, diretora do Instituto Panamericano de Política Criminal (IPAN), consultora, parecerista, coordenadora dos cursos de especialização telepresenciais e virtuais da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (LFG)

Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIANCHINI, Alice; GOMES, Luiz Flávio. Aspectos criminais da Lei de Violência contra a Mulher. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1169, 13 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8916. Acesso em: 5 nov. 2024.

Mais informações

Texto resultante da fusão de dois artigos de uma série, dos mesmos autores: “Aspectos criminais da Lei de Violência contra a Mulher” e “Competência criminal da Lei de Violência contra a Mulher”.

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