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Breve histórico dos uso de réus colaboradores contra a máfia

Agenda 24/05/2021 às 10:00

Apresenta-se o caso italiano da delação que levou ao julgamento criminal conhecido como Maxiprocesso de Palermo, de 1986, no qual 475 mafiosos foram conduzidos ao banco dos réus, condenando-se 344 acusados em primeira instância.

Recentemente, em 14 de janeiro de 2021, a imprensa internacional anunciou o início do julgamento de 350 réus acusados de pertencimento à máfia calabresa ‘Ndrangheta. Dentre eles, 58 acusados concordaram em colaborar com a justiça, rompendo o pacto de silêncio vigente conhecido como omertà, prometendo revelar segredos do temido clã Mancuso1. As acusações envolvem assassinatos, tráfico de drogas, extorsão, lavagem de dinheiro, abuso de poder, além de crimes de colarinho branco. 

Na Itália, a utilização de mafiosos como testemunhas se iniciou com a prisão no Brasil do mafioso da Cosa Nostra, Tommaso Buscetta, em 24 de outubro de 1983, (que estava foragido da Itália). Extraditado, Buscetta se tornou o primeiro arrependido conhecido da história moderna a revelar aos juízes Giovanni Falcone e Paolo Borselino os detalhes da organização mafiosa que assolava os Estados Unidos e a Itália na época.

O grande problema para o acordo com os italianos é que na época inexistia na Itália uma lei que previa prêmio ou proteção ao réu colaborador. Além disso, havia severas dúvidas a respeito da real vontade política do Estado italiano em aprofundar investigações contra a Cosa Nostra, tendo em conta o poder político da organização (STILLE, 1996).

A solução encontrada para Tommaso Buscetta foi um acordo bilateral com os americanos. O juiz Giovanni Falcone havia estabelecido boas relações com os colegas americanos durante a investigação do Caso Pizza Connection, aproximando-se do então procurador distrital Rodolfo Giuliani. “O entusiasmo e a admiração que as descobertas de Falcone receberam nos investigadores americanos foram enorme” (PASQUINI, 2016, p. 278). Na época, os promotores americanos já dominavam bem a prática de utilização de arrependidos como testemunhas e vinham tendo bastante sucesso com a Lei Federal de Organizações de Corrupção e Influenciados por Racketeer de 1970 no combate às organizações mafiosas no país.

De fato, os depoimentos de Buscetta representaram uma quebra de paradigmas e abalaram estruturas dos dois lados do oceano. Até aquele momento, as máfias italianas eram uma espécie de “mito”, pois, em que pese houvesse crença de sua existência, jamais havia se comprovado que realmente havia um grupo criminoso organizado, com normas e código de honra próprio.

Não suficiente , o acordo de Buscetta produziu um efeito dominó nas máfias italianas, sendo que diversos mafiosos se tornaram arrependidos, entre estes, os membros da Camorra Gaspare Mutolo, Mario Pepe e Salvatore Migliorina, que testemunharam perante a Comissão Parlamentar Antimáfia em 1993, mencionando as conexões entre a Cosa Nostra e a Camorra.

Nos seus relatos, Tomaso Buscetta mencionou que a Cosa Nostra italiana entrou em crise quando Totto Riina, conhecido como o capo de Corleone começou a violar o código de honra da máfia, mormente no que se refere aos homicídios de mulheres e crianças, como também dos próprios protetores da organização criminosa. Segundo Montoya (2007, p. 15), “a violência atingiu níveis tão intoleráveis que os arrependidos aumentaram em número, devido, como eles mesmo afirmam, a que a nova máfia não respeita o código de honra.” Tommaso ainda revelou a existência e o funcionamento da da Comissão mafiosa, espécie de Parlamento do crime, onde os chefes da organização deliberavam sobre o cometimento dos crimes mais graves como homicídios.

 Os impressionantes depoimentos de Buscetta corroborados por diversas outras provas levantadas pelo grupo de investigadores da força tarefa antimáfia levaram ao julgamento criminal conhecido como Maxiprocesso de Palermo, iniciado em fevereiro de 1986, no qual 475 mafiosos foram conduzidos ao banco dos réus, condenando 344 acusados em primeira instância.

O processo ainda percorreria um difícil e longo caminho com reviravoltas e anulações. Contudo, ao final, superando as inúmeras pressões políticas contra a manutenção das condenações, que incluiu até a corrupção de magistrados de Tribunais Superiores, em 30 de janeiro de 1992, a I Seção da Corte Suprema italiana confirmou as sentenças do Maxiprocesso de Palermo, determinando o sentença definitiva dos capos da Cosa Nostra, boa parte deles à prisão perpétua. Entre os condenados a passar a vida toda na cadeia estavam  o então chefe da Cosa Nostra, Salvatore Riina, que só viria a ser preso em 1993.

Tomasso Buscetta viveu escondido no programa de proteção de testemunhas nos Estados Unidos onde morreu de câncer em 2000. Já os juízes Falcone e Borselino foram dinamitados por ordem de Salvatore Riina em 23 de maio de 1992 e 19 de julho de 1992, respectivamente. A Cosa Nostra e a Itália nunca mais foram a mesmas.

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1 Jornal O Estado de São Paulo disponível em https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,comeca-na-italia-o-maior-julgamento-contra-a-mafia-em-mais-de-30-anos,70003580392 acesso em 8/4/2021.


Referências

AGUIAR, Julio Cesar de AGUIAR, Vítor Souza CUNHA. A voluntariedade no sistema de justiça penal consensual: uma reflexão analítico-comportamental a partir da teoria da escolha racional. Revista jurídica da Unicuritiba. V.1. nº 63. 2021.

AYALA, Giuseppe. La guerra dei giusti. Milão, 1993.

Bolzoni e D'Avanzo, La giustizia è cosa nostra: il caso Carnevale tra delitti e impunità. Glifo Eddizione. 2018 .

DINO, Alessandra. Os último chefões: investigação sobre o governo da Cosa Nostra. Trad. Valéria Pereira da Silva. São Paulo: Editora Unesp, 2013.

DI LAMPEDUSA, Tomasi. The Leopard. 1960. LA LICATA, Francesco. Storia di Giovanni Falcone. Milão, 1993.

Jornal " O Estado de São Paulo" de 14 de janeiro de 2021.  Itália inicia julgamento de 350 mafiosos, o maior em 30 anos.

MOCCIA, Sérgio. O controle da criminalidade organizada no estado social de Direito: aspectos dogmáticos e de política criminal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 92/2011, p. 31 – 57, set-out. 2011.

MONTOYA, Mario Daniel. Máfia e Crime Organizado, Lumens Juris, Rio de Janeiro de 2007.

PASQUINI, Mauro. Falcone e Borsellino. Due vite per la giustizia. Area 51, 2016. San Lazzar di Savena (Bologna)

RAAB,.Selwyn. Five Families: The Rise, Decline, and Resurgence of America's Most Powerful Mafia Empire.

Sentença 22327/2003 da Corte Suprema de Cassação italiana. Réu: Corrado Carnevale.

SMITH, Jo Durden. A história da Máfia. M.Books do Brasil Editora. São Paulo, 2015.

STILE, Alexander. Excellent Cadavers: The Mafia and the Death of the First Italian Republic. 1996

STERLING, Claire. Octopus. Nova York, 1990.

Sobre o autor
Diogo Castor de Mattos

Possui graduação em Direito pela Pontíficia Universidade Cátólica do Paraná (2009) Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional de Curitiba (2010) e especialista em Direito Contemporâneo pela Faculdade Opet de Curitiba (2012). Participou do Projeto de Iniciação Científica (PBIC 2009) com bolsa de estudos do CNPQ.Foi procurador federal da Advocacia Geral da União (2011-2012). Também foi aprovado nos concursos públicos para os cargos de Defensor Público Federal (2010) e Procurador da República (2012- por duas vezes). Atualmente é promotor de justiça do Ministério Público do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Diogo Castor. Breve histórico dos uso de réus colaboradores contra a máfia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6536, 24 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90549. Acesso em: 21 nov. 2024.

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