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O nível de cognição do delegado de polícia relativo à profundidade de análise nas deliberações em situações flagranciais

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Examinam-se os aspectos de cognição horizontal e cognição vertical em sede de prisão flagrancial, em vista do ‘standard’ probatório e/ou de elemento informativo.

Introdução

Todo poder implica responsabilidade. Nesse norte, o Delegado de Polícia é instado, na solução de casos penais apresentados, a decidir sobre a autuação em flagrante delito de pessoas conduzidas, ordinariamente por agentes da autoridade policial. Referida função deliberativa sobre o direito ambulatorial é de  elevada complexidade técnico-jurídica e merecedora de recorte mais aprofundado.

Diante da captura e condução de suspeitos de delitos e fatos potencialmente flagranciais, compete ao Delegado de Polícia, com reduzido tempo, e se valendo, não raras vezes, de apenas a versão informal dos protagonistas – policiais, vítimas e conduzidos – deliberar se adotará a restrição da liberdade (decretando a prisão em flagrante), ou mesmo elaborando uma portaria para delinear quais diligências complementares devem ser tomadas para a solução e apuração da verdade atingível, com seu vindouro esgotamento.

Nesse cenário, vem à balha, se a dúvida surgida na interpretação do fato apresentado e seus nuances (após exaurimento de todos os recursos informativos disponíveis) tem o condão de impedir a autuação em flagrante (com a imediata devolução da efêmera privação de liberdade gerada pela captura) ou lavrar a peça coercitiva, submetendo-o ao posterior crivo judicial.


Do exame sobre a prisão flagrancial

Neste pórtico, o art. 301, do CPP pontua que “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”.

Dando sequência, o art. 302, do CPP elenca as hipóteses de prisões flagranciais:

CAPÍTULO II

DA PRISÃO EM FLAGRANTE

Art. 301.  Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.

Art. 302.  Considera-se em flagrante delito quem:

I - está cometendo a infração penal;

II - acaba de cometê-la;

III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

Superadas as hipóteses de flagrantes existentes que devem ser avaliadas e levada em conta para fins de aferir o nível de cognição do delegado de polícia relativo à profundidade de análise nas deliberações em situações flagranciais, compete ainda avançarmos sobre o art. 304 do CPP.

Com isto, o art. 304 do Código de Processo Penal parametriza parcela protocolar da prisão flagrancial, noticiando que “apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso”. Ademais, o dispositivo, em sua redação alude que “em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto”.

Daí advém a primeira problemática. Nestas circunstâncias, em havendo a dúvida pelo delegado de polícia em sua deliberação, esta deve militar em favor da sociedade ou do conduzido no momento da análise da situação flagrancial?

A pauta não é lateral. É central no cotidiano das Autoridades Policiais, conquanto haja carência de maiores esclarecimentos doutrinários e jurisprudenciais.

À luz do disposto no artigo 304§1º do CPP, ou seja, após a apresentação do preso à autoridade e, lavrado o auto, deve verificar a fundada suspeita contra o conduzido em virtude das respostas dadas, para recolhê-lo à prisão ou fixar a fiança criminal.

Mas o que é fundada suspeita?

O art. 244, do Código de Processo Penal reza que:

“A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar”.

MARCELO DE LIMA LESSA assim pontua:

“mera suspeita é o “talvez seja”. Suspeita é o que “parece ser”. Ambas são frágeis e indicam suposições ou simples desconfianças. De outra banda, a fundada suspeita (exigida pela nossa lei) é o “tudo leva a crer” (...)baseia-se em elementos concretos e seguros, idôneos, não se confundindo sequer em tese, com a simples suspeição (parece ser, acredito que seja, acho que seja etc). (A Independência Funcional do Delegado Paulista, 1ª ed. Acadpesp, 2012, p. 12).

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GUILHERME DE SOUZA NUCCI procurando definir a fundada suspeita menciona que é um:

“[…] requisito essencial e indispensável para a realização da busca pessoal, consistente na revista do indivíduo. Suspeita é uma desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, por natureza, razão pela qual a norma exige fundada suspeita, que é mais concreto e seguro. Assim, quando um policial desconfiar de alguém, não poderá valer-se, unicamente, de sua experiência ou pressentimento, necessitando, ainda, de algo mais palpável, como a denúncia feita por terceiro de que a pessoa porta o instrumento usado para o cometimento do delito, bem como pode ele mesmo visualizar uma saliência sob a blusa do sujeito, dando nítida impressão de se tratar de um revólver. Enfim, torna-se impossível e impróprio enumerar todas as possibilidades autorizadoras de uma busca, mas continua sendo curial destacar que a autoridade encarregada da investigação ou seus agentes podem – e devem – revistar pessoas em busca de armas, instrumentos do crime, objetos necessários à prova do crime, objetos necessários à prova do fato delituoso, elementos de convicção, entre outros, agindo escrupulosa e fundamentadamente”. (grifo do autor) (NUCCI, 2008, p. 501)”.

AURY LOPES JUNIOR defende não ser possível criar uma definição exata de definição sobre fundada suspeita abordando que:

“Mas o que é “fundada suspeita”? Uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que remete à ampla e plena subjetividade (e arbitrariedade) do policial. […] Trata-se de um ranço autoritário de um Código de 1941. Assim, por mais que se tente definir a “fundada suspeita”, nada mais se faz que pura ilação teórica, pois os policiais continuarão abordando quem e quando eles quiserem. (LOPES JUNIOR, 2014, p. 739)”.

A terminologia “fundada” elencada no Código de Processo Penal, não está ali por qualquer motivo. O agente policial não pode abordar apenas porque suspeitou de alguém subjetivamente. Esta suspeição derivada deve ser fundada, ou seja, deve haver uma percepção do policial lastreada em critérios objetivos, de que a pessoa sobre a qual recai a suspeita esteja de posse dos elementos elencados no artigo 240 do Código de Processo Penal, já mencionados alhures.

O Supremo Tribunal Federal, sobre a pauta no Recurso em Sentido Estrito nº 81.305-4 (BRASIL, 2001), já decidiu no sentido de exigir elementos concretos na formação da fundada suspeita, como se segue: 

“EMENTA: HABEAS CORPUS. TERMO CIRCUNSTANCIADO DE OCORRÊNCIA LAVRADO CONTRA O PACIENTE. RECUSA A SER SUBMETIDO A BUSCA PESSOAL. JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL RECONHECIDA POR TURMA RECURSAL DE JUIZADO ESPECIAL. Competência do STF para o feito já reconhecida por esta Turma no HC n.º 78.317. Termo que, sob pena de excesso de formalismo, não se pode ter por nulo por não registrar as declarações do paciente, nem conter sua assinatura, requisitos não exigidos em lei. A "fundada suspeita", prevista no art. 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um "blusão" suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder. Habeas corpus deferido para determinar-se o arquivamento do Termo. (grifo nosso)”

A doutrina tradicional assevera que, ao receber o preso e as notícias a respeito do fato tido como delituoso, a autoridade policial deverá analisar estes e os elementos que colheu, com muita cautela, a fim de verificar se é hipótese de lavrar auto de prisão em flagrante. A prisão não implica, necessariamente, a lavratura do auto, podendo a autoridade policial, por não estar convencida da existência da infração penal ou por entender que não houve situação de flagrância, conforme a hipótese, dispensar a lavratura do auto, determinar a instauração de inquérito policial para apurar o fato ou apenas registrar boletim de ocorrência (doutrina de Júlio Fabbrini Mirabete, extraída da obra Código de Processo Penal interpretado, 8ª Ed., São Paulo, 2001). Neste mesmo óculo:

“a decisão sobre a lavratura do auto de prisão em flagrante é de exclusividade da autoridade policial. Vale dizer, que se a autoridade, após uma análise dos elementos existentes contra o conduzido, entender que a captura não se deu em estado de flagrância ou que o fato é penalmente atípico ou, também, que inexistem fundadas suspeitas contra o preso, não será confirmada a prisão, e, consequentemente, será o preso colocado em liberdade. Não pode, outrossim, nessa ordem de ideias, ser a autoridade obrigada a lavrar o auto de prisão em flagrante por quem quer que seja” (DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULYM Jorge Assaf, Curso de Processo Penal, 5ª ed. São Paulo, Forense, 2009, p. 190).

A esse propósito, caminha firme a jurisprudência:

“compete privativamente ao Delegado de Polícia discernir, entre todas as versões que lhe forem oferecidas por testemunhas ou envolvidos em ocorrências em conflito, qual a mais verossímil e então decidir contra quem adotar as providências de instauração de inquérito ou autuação em flagrante” (TACRIM, Rel. Carvalho Neto, JUTACRIM 91/920). “a determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em ato automático, a ser praticado diante de simples notícia de infração penal, visto que no sistema processual vigente tem o poder de decidir sobre a oportunidade ou não daquela peça (RT 679/351);  “a autoridade policial goza de poder discricionário ao avaliar se efetivamente está diante de notícia procedente, ainda que em tese e que avaliados perfunctoriamente os dados de que dispõe, não operando como mero agente de protocolo, que ordena sem avaliação alguma, flagrantes ou boletins de ocorrência indiscriminadamente” (RJTACrim, 39/341).

No entanto, se diante da audição de todos os envolvidos, ainda persistir dúvida da autoridade policial, não elidindo a prática do delito, tampouco o confirmando, qual a postura a ser adotada pelo Delegado de Polícia?

Apresentaremos algumas situações exemplificativas para melhor compreensão:

As três situações apresentadas fomentam dúvidas: teria a vítima se enganado, mesmo que de boa-fé (falsa memória)? Seria justo autuar em flagrante um caronista que nada tem relação com drogas apreendidas? Como afirmar que um sitiante rústico que tem uma motocicleta baixada pelo DETRAN (sucata) apenas para trafegar na zona rural tinha ciência do ilícito de seu comportamento?

Para responder com saciedade, devem ser sopesados alguns pontos.

O primeiro ponto a ser observado é o critério de julgamento ou nível de cognição a ser enfrentado pelo Delegado de Polícia.


Dos níveis de cognição horizontal e vertical em prisão flagrancial

Kazuo Watanabe leciona que a cognição é prevalentemente um ato de inteligência, consistente em considerar, analisar e valorar as alegações e as provas produzidas pelas partes, vale dizer, as questões de fato e as de direito que são deduzidas no processo e cujo resultado é o alicerce, o fundamento do judicium do julgamento do objeto litigioso do processo[1] [1] Da cognição no processo civil, ed. Revista dos Tribunais, 1987, p.41.

A cognição pode ser vertical ou horizontal:  no primeiro caso (cognição vertical) versará sobre o grau de profundidade da análise da matéria probatória e de elementos informativos postas em sede flagrancial; será horizontal (cognição horizontal) quando se referir às matérias legais, constitucionais, convencionais e de critérios axiológicos de justiça que poderão ser valoradas na decisão em sede flagrancial.

Defendemos que do ponto de vista de cognição horizontal, compete ao Delegado de Polícia a análise de todos os substratos do conceito de crime (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), com todos os efeitos correlatos (erro de tipo, crime impossível, erro de proibição etc). Mas isso é objeto de análise peculiar, que foge aos objetivos deste trabalho.

Interessa-nos, nesses apontamentos, o aspecto vertical da cognição para, enfim, sanar os consectários da manutenção da dúvida quando ainda presente mesmo que esgotadas todas as oitivas e objetos apresentados no momento do ato decisório da suposta situação flagrancial.

Advogamos que o nível de cognição a ser alçado pelo Delegado de Polícia neste momento não é exauriente e sim de cognição sumária. Ou seja, não deve o Delegado de Polícia, neste átimo, debruçar-se de forma muito acurada na análise do enredo apresentado e elementos informativos correlatos a ponto de exigir-se um juízo de certeza.

O standard probatório e/ou de elemento informativo nessa etapa tem patamar vinculado à finalidade informativa, isto é, a função é proporcionar decisão jurídica ancorada num juízo de alta probabilidade (mais que simples possibilidade e menor que juízo de certeza). O acertamento do caso penal, nesta etapa preambular finca-se nessa baliza.

Em outras palavras, compete ao Delegado de Polícia, neste caso, não um juízo de inevitável certeza, mas de alta probabilidade (elementos carreados todos no mesmo sentido) de que houve a prática de fato típico, ilícito e culpável não afetado por causa extintiva de punibilidade.

O delegado de polícia catarinense, Leonardo Marcondes Machado, sobre standard probatório e/ou de elemento informativo na prisão flagrancial invoca que:

“Em que pese a enorme dificuldade, inclusive metodológica xx, na construção de standards probatórios (ou informativos) racionais e operativos, esse é um desafio que deve ser enfrentado pela dogmática processual penal brasileira nos projetos de reforma da justiça criminal. Particularmente, por uma teoria crítica, que busque não apenas denunciar abusos, mas criar caminhos possíveis à redução do autoritarismo crescente nas diversas instâncias do sistema penal.

A superação desse vácuo legislativo, que não é exclusividade nacional,xxi no sentido de prever regras com diferentes graus de suficiência probatória (ou informativa) para cada tipo de decisão tomada ao longo da persecução penal,xxii demanda, no entanto, uma epistemologia garantistaxxiii exigente, fundada na presunção de inocência,xxiv como estratégia político-criminal de redução de danos (ou melhor: de dores).xxv

Assim, no caso específico do procedimento flagrancial, a superação do espaço de indeterminação normativa e arbitrariedade concreta decorrente do sistema de “fundada suspeita”, figura como importante mecanismo para a diminuição de injustiças criminais, especialmente a prisão indevida de pessoas inocentes.

Muito embora não seja possível abolir por completo a seletividade estrutural dos processos de criminalização, o estabelecimento de um standard objetivo e elevado para a comprovação da proposição fática atinente à prisão em flagrante, compatível com os gravosos efeitos (ou consequências) dessa tomada de decisão pela autoridade policial, serviria à mitigação dos abusos penais com maior tutela das garantias individuais” (MARCONDES, 2020, p. 1).

Sobre os autores
Tristão Antônio Borborema de Carvalho

Delegado de Polícia no estado do Paraná desde o ano 2008. Ex-Delegado de Polícia Civil do estado de São Paulo (aprovado em primeiro lugar). Professor concursado de Direito Penal da Academia de Polícia Civil do estado de São Paulo: ACADEPOL. Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Especialista em Gestão em Segurança Pública pela Escola Superior de Polícia Civil do Paraná.

Joaquim Leitão Júnior

Delegado de Polícia no Estado de Mato Grosso. Atualmente lotado no Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (GAECO). Mentor da KDJ Mentoria para Concursos Públicos. Professor de cursos preparatórios para concursos públicos. Ex-Diretor Adjunto da Academia da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso. Ex-Assessor Institucional da Polícia Civil de Mato Grosso. Ex-assessor do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Palestrante. Pós-graduado em Ciências Penais pela rede de ensino Luiz Flávio Gomes (LFG) em parceria com Universidade de Santa Catarina (UNISUL). Pós-graduado em Gestão Municipal pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT e pela Universidade Aberta do Brasil. Curso de Extensão pela Universidade de São Paulo (USP) de Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Colunista do site Justiça e Polícia, coautor de obras jurídicas e autor de artigos jurídicos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Tristão Antônio Borborema; LEITÃO JÚNIOR, Joaquim. O nível de cognição do delegado de polícia relativo à profundidade de análise nas deliberações em situações flagranciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6542, 30 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90725. Acesso em: 22 dez. 2024.

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