Dos aspectos de dúvidas na prisão flagrancial
FERNANDO CAPEZ ensina que:
“nesta fase vigora o princípio ‘in dúbio pro societate’, não podendo o delegado de polícia embrenhar-se em questões doutrinárias de alta indagação, sob pena de antecipar indevidamente a fase judicial de apresentação de provas; permanecendo a dúvida ou diante de fatos aparentemente criminosos, deverá ser formalizada a prisão em flagrante” (Curso de Processo Penal, 24ª edição, Saraiva, 2017, pag 328).
Noutro vértice, parca jurisprudência a respeito, parece caminhar em sentido oposto:
“Autuação em flagrante pressupõe certeza absoluta da materialidade e autoria e a mínima dúvida desautoriza a lavratura do respectivo auto (RT 728/541)”.
Diante do conflito de ideias, defendemos uma tese intermediária, senão vejamos:
- A dúvida deve ser valorada sob dois aspectos: séria e fundada (militando em favor do conduzido) ou simplesmente apresentada como mera tese - possibilidade de menor probabilidade de ocorrência - (inclinando-se em favor da sociedade).
- Se a dúvida for séria e fundada, a melhor postura seria a não decretação da prisão em flagrante, mediante elaboração de portaria inaugural, delineando a rota investigatória com as diligências a serem futuramente observadas.
- Se a dúvida representar apenas uma tese defensiva de pouca probabilidade à luz das circunstâncias fáticas, de bom alvitre a decretação da prisão em flagrante delito.
Destarte, a depender da sua classificação, a postura da autoridade policial deve ser diversa.
Não há uma regra matemática, tampouco artifício apto a escapar de uma análise casuística, tendo sempre como premissa as informações que são proporcionadas no momento da apresentação do caso.
A apuração do fato aparentemente criminoso por meio de portaria não desnatura a reta apuração do fato, desde que diligências complementares e possíveis sejam aptas a melhor delinear os fatos e proporcionar ao Delegado uma visão mais segura, ampla e adequada.
Os exemplos apresentados acima lá atrás proporcionam materializar as seguintes proposições:
- Exemplo 1: caso o conduzido, sem antecedentes criminais, alegue álibi e apresenta fontes de prova a serem disponibilizadas em momento posterior (como checagem de filmagens, audição de testemunha não presente ao plantão) é decisão razoável a apuração do fato mediante portaria.
- Exemplo 2: se todos negam os fatos e apresentam versões conflitantes, sendo todos não moradores no município onde ocorreu a abordagem, a solução mais prudente seria a autuação de todos, pois transportavam o objeto material.
- Exemplo 3: se o abordado, com péssima biografia criminal e comerciante de carros, com bom nível de esclarecimento intelectual, nega a adulteração dos caracteres do veículo, mas alega não possuir documentação do veículo e adquiriu de desconhecidos, reputamos a atitude mais prudente a autuação em flagrante pelo crime de receptação dolosa própria (pois conduzia coisa produto do crime de adulteração de sinal identificador de veículo automotor).
DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante o exposto, estabelecer, de modo apriorístico, o papel da dúvida no momento decisional da Autoridade Policial é manietar seu poder na interpretação do fato e da norma. Enfraquece seu perfil valorativo. É dizer: ao conferir a atribuição e análise casuística para melhor delinear os fatos, especificando a natureza e grau de dúvida haurida de sua avaliação, confere uma decisão mais justa e homenageia a formação jurídica da carreira de Delegado de Polícia. Por isto, o nível de cognição horizontal e vertical deve ser levado em conta, além de outras abordagens quanto às dúvidas e aplicação dos princípios do “in dubio societate” ou do “in dubio pro reo”.
Referências bibliográficas:
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 24ª edição, Saraiva, 2017.
DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULYM Jorge Assaf, Curso de Processo Penal, 5ª ed. São Paulo, Forense, 2009.
MACHADO, Leonardo Marcondes. Standard informativo da prisão em flagrante. Disponível em:<<https://www.conjur.com.br/2020-jul-28/academia-policia-standard-informativo-prisao-flagrante>>. 28 de julho de 2020.
LOPES JUNIOR, A. Direito Processual Penal – 11. ed. – São Paulo: Saraiva, 2014.
NUCCI, G. de S. Manual de processo penal e execução penal. 4º. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil, ed. Revista dos Tribunais, 1987.