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Uma breve análise do Princípio do "nemo tenetur se detegere" no direito brasileiro.

Agenda 14/06/2021 às 11:36

Este trabalho inicialmente apresenta as nuances históricas do princípio do nemo tenetur se detegere para posteriormente definir e avaliar o papel deste princípio no ordenamento pátrio, desvelando seu conceito e real aplicabilidade em nosso sistema penal.

INTRODUÇÃO

O presente estudo objetiva analisar o princípio do nemo tenetur se detegere enquanto garantia constitucional e sua aplicabilidade no ordenamento jurídico Pátrio.

Nesse sentido, será estudado a constituição federal brasileira atual, legislação internacional, doutrina e jurisprudência. Dessa forma, será demonstrada a relevância deste princípio para o judiciário, bem como para o aplicador do direito e toda a coletividade. Embora o referido tema não seja novidade no mundo jurídico, se faz justo e necessário salientar sua importância nos dias atuais.

Origens históricas do Princípio do "nemo tenetur se detegere”:

O princípio do nemo tenetur se detegere não possui sua origem histórica bem definida em razão que para alguns doutrinadores este postulado já está positivado nas regras gerais do Direito. Entretanto, apesar das dificuldades encontradas pelas buscas de sua origem, é relevante fundamentar que, ao longo dos tempos, o princípio em análise assume diversos significados e desdobramentos.  A expressão latina nemo tenetur se detegere, quer dizer, literalmente, que ninguém é obrigado a se descobrir. Já pelo direito anglo-americano é conhecido pela expressão privilegie against self-incrimination.

Neste contexto, o princípio do nemo tenetur se detegere em um viés histórico pode ser observado como tendo seu nascedouro na época moderna, em razão das atrocidades ocorridas pela inquisição na época da idade média, conduzida pelo absolutismo e inspirada pela atuação da igreja que tinha  a confissão como rainha das provas, podendo ser obtida por quaisquer meio, inclusive a tortura. A cultura civilizatória foi tomando lugar contra as barbaridades do sistema inquisitivo, tendo o iluminismo. E como um dos marcos históricos conhecidos, destaca-se a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789 em seu artigo 9º mais especificamente, assim o investigado passa a ser sujeito de direitos e não mero objeto de um sistema acusatório, tendo a sua inocência presumida em virtude da necessidade  natural do ser humano de não se incriminar tendo garantido seu direito de defesa.

Diante do panorama exposto, conclui-se que ao longo da história o princípio em tela foi se justificando.

 

 

 

 

 

Princípio do "nemo tenetur se detegere” no ordenamento jurídico brasileiro.

 

No atual ordenamento jurídico brasileiro, o princípio do nemo tenetur  se detegere também conhecido  como princípio da não autoincriminação ou ainda não autoacusação (prerrogativa do silencio), está  previsto no pacto internacional dos direitos civis e políticos (art 14,3”g”), na convenção americana sobre direitos humanos (artigo 8 º,paragrafo 2 º,”g”), bem como no artigo  5º, inciso LXIII da CF/88, que se resume no sentido de que ninguém  é obrigado a produzir prova contra si mesmo, traduzido de acordo com o disposto em nossa carta magna no direito ao silêncio. Dessa forma, dispõe a constituição federal de 1988 art. 5º - LXIII “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.

O código de processo penal brasileiro em seu artigo 186 parágrafo único acompanha corretamente nossa Constituição Federal ao preceituar que deve a autoridade competente informar de forma clara ao acusado que este poderá permanecer em silêncio quando lhe for indagado e que seu silêncio não será interpretado como confissão aos fatos a ele imputados, não havendo portanto prejuízo a sua defesa.          

Nesse sentido, para melhor elucidar tais questões destaca-se a posição de Fabretti, Britto e Lima, em sua obra processo penal Brasileiro, 2014: “É uma pregorrativa ligada ao interesse do acusado, pois não existe prerrogativa de produção prova contra si mesmo.  O Silencio não é representação de culpa nem de presunção de inocência. Atende a proposta de evitar a autoincriminação, utilizando o silencio para evitar a culpabilidade”.

Dessa forma, é de suma importância relacionar que o direito do silêncio decorre do princípio nemo tenetur se detegere, que está embasado justamente na ideia de que o acusado possui direito a ficar calado e não pode sofrer qualquer prejuízo jurídico por não colaborar para sua autoincriminação.

O princípio aqui estudado trata-se de um direito fundamental com finalidade de proteção ao indivíduo contra excessos que possam vir a ser cometidos pelo Estado na persecução penal. Incluindo o anteparo contra violências físicas e bio psicológicas que possam vir a ser executadas com o intento de compelir o indivíduo a “colaborar” na investigação e apuração dos delitos, bem como contra métodos proibitivos de interrogatório, sugestão e dissimulação.

É importante consignar que o titular do direito de não produzir prova contra si mesmo abarca qualquer pessoa que seja imputado à prática de um ilícito penal, não sendo considerado sua condição de suspeito, indiciado, acusado, condenado, preso ou em liberdade.

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Por fim, nos esclarece Renato Brasileiro: “É irrelevante que já se trate de inquérito policial, ou administrativo processo criminal ou de comissão parlamentar de inquérito”. Assim, se houver possibilidade de autoincriminação, a pessoa pode fazer uso do princípio do nemo tenetur se detegere.

 

2 Algumas questões relevantes deste princípio:

Ainda em relação ao princípio do nemo tenetur se detegere, também se apresenta como desdobramento do mesmo o direito ao silêncio, o direito de ficar calado já estudado acima e o direito de não ser constrangido a confessar a prática de um ilícito, assim ninguém pode ser obrigado mesmo que culpado a confessar a prática de um ilícito penal. Nesse sentido, dispõe o artigo 14 parágrafo 3 º do pacto internacional dos direitos civis e políticos e a convenção americana de direitos humanos artigo 8 parágrafos 2 º g e parágrafo 3 º.

Outra questão importante em se tratando de desdobramento do referido princípio, é a inexigibilidade de dizer a verdade em razão de não existir crime de perjúrio no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, é relevante salientar que isto não legitima o direito a mentira pelo simples fato de um comportamento antiético e imoral não ser assegurado em um Estado democrático de direito. Desse modo, é importante destacar que diferente do acusado a testemunha possui como dever falar a verdade cabendo inclusive responsabilidade por falso testemunho, conforme artigo 342 do código penal. No entanto, embora como testemunha está desobrigada de falar a verdade em situações que a mesma possa revelar fatos que venham a autoincriminá-la.

Retomando o direito ao silêncio, ressalta-se que este não engloba direito de falsear a verdade com relação a identidade pessoal. Nesse sentido, dispõe a sumula 522 do Stj: “A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa.”

Por fim, é considerável avultar que em virtude do direito de não produzir prova contra si mesmo, doutrina e jurisprudência tem entendido que não pode ser exigido um comportamento ativo do acusado, como um fazer que possa resultar em auto-incriminação. Um exemplo disso é a produção de prova que tiver como pressuposto ação por parte do acusado, sendo necessário o consentimento para ser validada. Como por exemplo reprodução simulada dos fatos, exame grafotécnico, bafômetro, acareação. Nesse sentido, segue jurisprudência:

HABEAS CORPUS - JÚRI - RECONSTITUIÇÃO DO CRIME - CERCEAMENTO DE DEFESA - NÃO-INTIMAÇÃO DO DEFENSOR PARA A RECONSTITUIÇÃO DO DELITO - PACIENTE QUE SE RECUSA A PARTICIPAR DA REPRODUÇÃO SIMULADA DOS FATOS - VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO CONTRADITORIO - INOCORRENCIA - PRISÃO CAUTELAR - INSTITUTO COMPATIVEL COM O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO-CULPABILIDADE (CF, ART. 5., LVII) - CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISORIA - MERA FACULDADE JUDICIAL - ORDEM DENEGADA. - A RECONSTITUIÇÃO DO CRIME CONFIGURA ATO DE CARÁTER ESSENCIALMENTE PROBATÓRIO, POIS SE DESTINA - PELA REPRODUÇÃO SIMULADA DOS FATOS - A DEMONSTRAR O MODUS FACIENDI DE PRATICA DELITUOSA (CPP, ART. 7.). O SUPOSTO AUTOR DO ILICITO PENAL NÃO PODE SER COMPELIDO, SOB PENA DE CARACTERIZAÇÃO DE INJUSTO CONSTRANGIMENTO, A PARTICIPAR DA REPRODUÇÃO SIMULADA DO FATO DELITUOSO. O MAGISTERIO DOUTRINARIO, ATENTO AO PRINCÍPIO QUE CONCEDE A QUALQUER INDICIADO OU RÉU O PRIVILEGIO CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO, RESSALTA A CIRCUNSTANCIA DE QUE E ESSENCIALMENTE VOLUNTARIA A PARTICIPAÇÃO DO IMPUTADO NO ATO - PROVIDO DE INDISCUTIVEL EFICACIA PROBATORIA - CONCRETIZADOR DA REPRODUÇÃO SIMULADA DO FATO DELITUOSO. - A RECONSTITUIÇÃO DO CRIME, ESPECIALMENTE QUANDO REALIZADA NA FASE JUDICIAL DA PERSECUÇÃO PENAL, DEVE FIDELIDADE AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO CONTRADITORIO, ENSEJANDO AO RÉU, DESSE MODO, A POSSIBILIDADE DE A ELA ESTAR PRESENTE E DE, ASSIM, IMPEDIR EVENTUAIS ABUSOS, DESCARACTERIZADORES DA VERDADE REAL, PRATICADOS PELA AUTORIDADE PÚBLICA OU POR SEUS AGENTES. - NÃO GERA NULIDADE PROCESSUAL A REALIZAÇÃO DA RECONSTITUIÇÃO DA CENA DELITUOSA QUANDO, EMBORA AUSENTE O DEFENSOR TECNICO POR FALTA DE INTIMAÇÃO, DELA NÃO PARTICIPOU O PRÓPRIO ACUSADO QUE, AGINDO CONSCIENTEMENTE E COM PLENA LIBERDADE, RECUSOU-SE, NÃO OBSTANTE COMPARECENDO AO ATO, A COLABORAR COM AS AUTORIDADES PUBLICAS NA PRODUÇÃO DESSA PROVA. - A LEGITIMIDADE JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DAS NORMAS LEGAIS QUE DISCIPLINAM A PRISÃO PROVISORIA EM NOSSO SISTEMA NORMATIVO DERIVA DE REGRA INSCRITA NA PROPRIA CARTA FEDERAL, QUE ADMITE - NÃO OBSTANTE A EXCEPCIONALIDADE DE QUE SE REVESTE - O INSTITUTO DA TUTELA CAUTELAR PENAL (ART. 5., LXI). O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DE NÃO-CULPABILIDADE, QUE DECORRE DE NORMA CONSUBSTANCIADA NO ART. 5., LVII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA, NÃO IMPEDE A UTILIZAÇÃO, PELO PODER JUDICIARIO, DAS DIVERSAS MODALIDADES QUE A PRISÃO CAUTELAR ASSUME EM NOSSO SISTEMA DE DIREITO POSITIVO. - O RÉU PRONUNCIADO - AINDA QUE PRIMARIO E DE BONS ANTECEDENTES - NENHUM DIREITO TEM A OBTENÇÃO DA LIBERDADE PROVISORIA. A PRESERVAÇÃO DO STATUS LIBERTATIS DO ACUSADO TRADUZ, NESSE CONTEXTO, MERA FACULDADE RECONHECIDA AO JUIZ.
(HC 69.026, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 10/12/1991, DJ 04-09-1992 PP-14091 EMENT VOL-01674-04 PP-00734 RTJ VOL-00142-03 PP-00855) 

 

Considerações sobre o teste de alcoolemia- “bafômetro”

No que concerne este tema é relevante o entendimento que ao condutor de veículo automotor é cabível sua negativa em realizar o teste de bafômetro, pois o mesmo para ser prova lícita deve ter a autorização do condutor de veículo automotor, no entanto nada impede que medidas administrativas possam vir a ser tomadas, principalmente nos casos de condutor visivelmente alcoolizado, conforme dispõe o código de trânsito brasileiro em seus artigos 165 A e 277.

 

Conclusão:

Diante de todo exposto, o princípio do nemo tenetur se detegere é uma garantia constitucional de suma importância por preservar a liberdade individual, a dignidade da pessoa humana e relacionar-se também com outros princípios constitucionais principalmente o princípio da presunção de inocência (artigo 5 LVII) e o princípio da proporcionalidade (artigo 5 LIX). Devendo o princípio do nemo tenetur se detegere ser conhecido e respeitado por todo o sistema penal, judiciário, operadores do direito, enfim toda a sociedade.

 

 

REFERÊNCIAS

BRITO, Alexis; FABRETTI, Humberto; LIMA, Marco Antônio. Processo penal brasileiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

 

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 4. ed. Salvador: Juspodim, 2016.

 

CABRAL, Bruno Fontenele; CANGUSSU, Débora Dadiani Dantas. Reflexos e consequências jurídicas do princípio da não auto-incriminação. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 303624 out. 2011.

Disponível em:  <https://jus.com.br/artigos/20274>. Acesso em: 24 mar. 2020.

 

ORTEGA, Flávia. Princípio do nemo tenetur se detegere no direito brasileiro. Disponível em: <https://draflaviaortega.jusbrasil.com.br/noticias/332929543/principio-do-nemo-tenetur-se-detegere-no-direito-brasileiro>.  Acesso em: 20 mar. 2020.

DO VALE, Ionilton Pereira. Origens históricas do princípio do nemo tenetur se detegere.

Disponível em: <https://ioniltonpereira.jusbrasil.com.br/artigos/130573262/origens-historicas-do-principio-nemo-tenetur-se-detegere>. Acesso em: 20 mar. 2020.

 

BRAYNER, Rego Yan. O princípio do nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/34665/o-principio-do-nemo-tenetur-se-detegere-e-suas-decorrencias-no-processo-penal>. Acesso em: 19 mar. 2020.

 

MACHADO, Cypriano; BORGO, Nara. O princípio do nemo tenetur se detegere e a prova no processo penal.  Disponível em: <http://www.fdc.br/Revista/..%5CArquivos%5CRevista%5C37/01.pdf>. Acesso em: 19 mar. 2020.

 

BRASIL. Lei 2848, de 07 de dezembro de 1940. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.

Sobre a autora
Tábata Lucia Mamede Queiroz

Minha missão é desmistificar seus direitos. Pós graduada em Direito Público. Especialista em Direito Médico. Leitora assídua, fã de filmes e música!

Informações sobre o texto

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