- I -
Como deixamos explícito em nossos comentários à Lei de Improbidade Administrativa [01], a grande falha foi que a mesma deixou de definir o conteúdo jurídico do que venha a ser ato ímprobo. Preferiu o legislador delegar para o intérprete a competência de definir a prática do ato de improbidade administrativa, como se fosse ilícito tal expediente, pois apenas são elencados os três tipos, nos artigos 9º (enriquecimento ilícito), 10 (prejuízo ao erário) e 11 (violação aos princípios da Administração Pública).
Tal equívoco, como dito, é resultado da falta de uma definição jurídica do ato de improbidade administrativa, apresentando-se, portanto, como norma de conteúdo incompleto.
A Lei em questão se assemelha com a norma penal em branco, por possuir conteúdo incompleto, e cujo "aperfeiçoamento" fica na responsabilidade de quem interpreta a Lei nº 8.429/92.
O dever de identificar com clareza e precisão os elementos definidores do ato de improbidade administrativa competia à Lei nº 8.429/92, cujo Legislador preferiu se omitir sobre tal questão, fixando apenas os seus três tipos legais já declinados.
A acusação, desatenta, desatrelada de um mínimo de plausibilidade jurídica é possibilitada pelo caráter aberto da norma sub oculis.
Tal qual o ato de tipificação penal, era dever indelegável da Lei nº 8.429/92 identificar com clareza e precisão os elementos definidores da conduta da improbidade administrativa, para após fixar os seus tipos.
A definição de improbidade administrativa não pode ser um "cheque em branco", pois a segurança jurídica que permeia um Estado Democrático de Direito como o nosso não permite essa indefinição jurídica.
A norma em branco é aplicada ao Direito Administrativo, pois o princípio da tipicidade retira a subjetividade do intérprete, inclusive em decorrência ao princípio da legalidade.
Não resta dúvida que o princípio da reserva legal (art. 5º, II, da CF) impede que a Administração Pública se utilize de uma norma incompleta para punir. É necessário, nesses casos a integração de outra norma legal, para evitar sanções injustas.
Nesse sentido, Fábio Medina Osório, [02] com acerto, deixou explícita a obrigatoriedade de se observar o respeito ao princípio da tipicidade, formal e material no Direito Administrativo, "de modo a não ser possível que o legislador outorgue, de forma total e completa, a competência tipificante à autoridade administrativa, pois assim estaria esvaziando o princípio da legalidade."
Portanto, essa falha legislativa permite ao autor da ação de improbidade administrativa, de maneira ilegal, que estabeleça o espectro da Lei nº 8.429/92, manejando indevidamente inúmeras lides.
Uma das situações jurídicas mais freqüentes é aquela que vem elencada no tipo aberto do artigo 11, da Lei nº 8.429/92, onde a pseudo violação a princípios da boa administração pública exige a presença do elemento subjetivo do tipo, o dolo, para sua configuração.
Sem o dolo, representado pela devassidão ou pela imoralidade do agente público não há a subsunção no artigo 11 da referida lei, pois faltará o respectivo elemento conectante da improbidade administrativa. Sem o dolo não se configura a prática do ato de improbidade administrativa, porquanto a lei em tela estabelece duas sanções para o agente público devasso, não para o inábil.
Um dos casos típicos do manejo indevido de ação de improbidade administrativa é aquele que é direcionado contra o ato administrativo que defere o termo de permissão de uso de bem público, por prazo indeterminado, de forma precária, onerosa ou não.
- II -
Por ser precária, a permissão de uso de bem público é um ato unilateral da Administração Pública, firmado através de termo e não de contrato administrativo, apesar de ser regido pelas normas de direito público.
A licitação, segundo a dicção do art. 37, inc. XXI c/c com o art. 22, inc. XXVII, ambos da CF, não é direcionada para os atos precários, celebrados através de termo, sem as garantias do contrato administrativo, onde o contratado possui não só deveres, como também direitos.
Com o advento da Lei nº 8.666/93, situações precárias como a enfrentada no presente estudo deixaram de causar dúvidas ao intérprete, pois, conforme o parágrafo único do artigo 2º, somente as Permissões voltadas para a prática de serviços públicos com estipulações de obrigações recíprocas é que devem ser precedidas de licitação: "Art. 2º - As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei. Parágrafo Único – Para os fins desta Lei, considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada." (g.n.)
O contrato de permissão (cessão) de uso de bens públicos difere do da concessão de serviços públicos, porquanto nesse tipo de avença, o domínio dos bens é cedido no interesse coletivo para a exploração precária do particular.
Sobre o tema, José Afonso da Silva, [03] em seu "Comentário Contextual à Constituição" assim aduna: "A autorização é ato administrativo unilateral, discricionário e precário; não se destina apenas à execução do serviço público, pois há autorização administrativa ao particular também para a prática de utilização de bens públicos. Também se admite permissão administrativa para o uso de bens públicos, nesse caso ela ainda pode ser conceituada como ato negocial, discricionário e precário...".
Em igual sentido, Hely Lopes Meirelles, [04] corrobora o que foi dito: "Permissão de uso é ato negocial unilateral, discricionário e precário através do qual a Administração faculta ao particular a utilização individual de determinado bem público. Como ato negocial, pode ser com ou sem condições, gratuito ou remunerado, por tempo certo ou indeterminado, conforme estabelecido no termo próprio, mas sempre modificável e revogável unilateralmente pela Administração, quando o interesse público o exigir, dados sua natureza precária e o poder discricionário do permitente para consentir e retirar o uso especial do bem público."
Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto: "O regime permissional, menos rígido, tem sido caracterizado na doutrina tradicional como vínculo produzido por simples manifestação de vontade unilateral da Administração, através de um ato administrativo, discricionário e precário, que seria, por isso revogável a qualquer tempo." (Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 264).
A autorização ou permissão, no magistério de Maria Sylvia Zanella Di Pietro [05] "é o ato unilateral e discricionário pelo qual o Poder Público faculta ao particular o uso privativo de bem público, a título precário."
A não menos ilustre Odete Medauar, ratificando o que foi dito pela refinada doutrina já declinada, deixou grafado em seu magistral "Direito Administrativo Moderno", a desnecessidade do certame licitatório para o deferimento da autorização de permissão de uso de bem público: "a) Autorização de uso – é o ato administrativo discricionário e precário, pelo qual a Administração consente que um particular utilize privativamente um bem público. Pode incidir sobre qualquer tipo de bem. De regra, o prazo de uso é curto; poucas e simples são suas normas disciplinadoras: independe de autorização legislativa e licitação; pode ser revogada a qualquer tempo." [06]
A precariedade, é verificada pela possibilidade de desfazimento do ato de permissão de uso de bem público a qualquer momento. É o que a doutrina chama de permissões condicionadas. [07]
Nesse sentido o STJ [08] também estabeleceu que o ato administrativo de permissão de uso de imóvel municipal por particular possui natureza precária e discricionária, podendo ser cancelada a qualquer momento: "Processual Civil. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança. Ato Administrativo. Permissão de uso de imóvel municipal por particular. Natureza precária e discricionária. Possibilidade de cancelamento. Previsão contratual. Ausência de direito líquido e certo. 1. A autorização de uso de imóvel municipal por particular é ato unilateral da Administração Pública, de natureza discricionária, precária, através do qual esta consente na prática de determinada atividade individual incidente sobre um bem público. Trata-se, portanto, de ato revogável, sumariamente, a qualquer tempo, e sem ônus para o Poder Público. 2. Como a Administração Pública Municipal não mais consente a permanência da impetrante no local, a autorização perdeu sua eficácia. Logo, não há direito líquido e certo a ser tutelado na hipótese dos autos. 3. Comprovação nos autos da existência de previsão contratual no tocante ao cancelamento da permissão debatida. 4. Recurso não provido."
Somente a permissão de serviços públicos, a teor do artigo 175, da CF, é que deverá ser precedida da competente licitação, visto que este Comando Maior é taxativo em estabelecer tal cânone legal.
Para a situação legal aqui verificada, onde a permissão de uso de bem público foi firmada sem prazo estabelecido, a eminente Maria Sylvia Zanella Di Pietro, [09] em obra específica sobre o tema, seguindo o entendimento dos demais doutrinadores, não tem dúvida em afirmar que a permissão de uso não possui natureza contratual, ficando excluída da necessidade de ser precedida do certame licitatório: "O intuito da permissão, na doutrina brasileira, tem sido definido como ato unilateral e não como contrato. No entanto, a Constituição Federal, ao tratar da concessão e da permissão do serviço público, referiu-se a ambos como contrato (art. 175, parágrafo único, inc. I) e foi expresso na exigência de licitação (caput do mesmo dispositivo). Também o art. 124, da Lei nº 8.666, introduzido pela Lei nº 8.883, refere-se à permissão de serviço público como contrato. Assim sendo, não há dúvida de que a permissão de serviço público está sujeita aos ditames da Lei nº 8.666. Já a permissão de uso constitui, em regra, ato unilateral e, como tal, não se enquadra na exigência do art. 2º, que, ao mencionar as várias modalidades (obras, compras, alienações, concessões, permissões e locações), acrescenta a expressão ‘quando contratados com terceiros’. Além disso, o § 2º, do mesmo dispositivo define o contrato, para os fins da lei, como ‘todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada.’ A permissão de uso, quando dada precariamente (como é de sua natureza), ou seja, sem prazo estabelecido, não cria obrigações para a Administração Pública, que concede a permissão e a retira discricionariamente, independentemente do consentimento do permissionário, segundo razões exclusivamente de interesse público. Nesses casos, a permissão não tem natureza contratual e, portanto, não está sujeito à licitação..." (aspas no original).
Para que a "permissão de uso" tenha natureza contratual, sujeita a licitação, segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, [10] é necessário que a mesma tenha prazo estabelecido, gerando para o particular o direito de receber indenização em caso de revogação, situação jurídica diversa da lide em questão: "No entanto, existem verdadeiras concessões de uso que são disfarçadas sob a denominação de permissão de uso, tendo a natureza contratual; isto ocorre especialmente quando ela é concedida com prazo estabelecido, gerando para o particular direito a indenização em caso de revogação da permissão antes do prazo estabelecido. Neste caso, a permissão de uso está sujeita a licitação."
Destarte, a permissão de uso de bem público, estabelecida de forma precária e sem prazo de duração, fica excluída da Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações), ou de qualquer outro processo de seleção, tendo em vista que a sua natureza jurídica não comporta a competição, eis que se atrela a discricionariedade da Administração Pública na destinação da utilização de determinado bem público, além da sua própria precariedade.
Dessa forma, tese contrária à presente de que tanto a permissão de uso, como a de serviço público, constituem-se verdadeiras concessões "com nítida característica contratual", não corresponde a realidade jurídica, porquanto o ato administrativo precário de termo de permissão de uso, além de unilateral e sem prazo de validade, não se configura como um contrato administrativo na acepção da palavra.
Ou melhor, para que haja uma relação contratual, são necessárias cláusulas essenciais do contrato de concessão, segundo a expressa determinação do art. 23, da Lei nº 8.987/95 (Lei de Concessão de Serviço Público), quais sejam: "Art. 23 – São cláusulas essenciais do contrato de concessão as relativas: I – ao objeto, à área e ao prazo de concessão; II – ao modo, forma e condições de prestação do serviço; III – aos critérios, indicadores, fórmulas e parâmetros definidores da qualidade do serviço; IV – ao preço do serviço e aos critérios e procedimentos para o reajuste e a revisão das tarifas; V – aos direitos, garantias e obrigações do poder concedente e do concessionário, inclusive os relacionados às previsíveis necessidades de futura alteração e expansão do serviço e conseqüente modernização, aperfeiçoamento e ampliação dos equipamentos e instalações; VI – aos direitos e deveres dos usuários para obtenção e utilização do serviço; VII – à forma de fiscalização das instalações, dos métodos e práticas de execução do serviço, bem como a indicação dos órgãos competentes para exerce-la; VIII – às penalidades contratuais e administrativas a que se sujeita a concessionária e a sua forma de aplicação; IX – aos casos de extinção da concessão; X – aos bens reversíveis; XI – aos critérios para o cálculo e a forma de pagamento das indenizações devidas às concessionárias, quando for o caso; XII – às condições para a prorrogação do contrato; XIII – à obrigatoriedade, forma e periodicidade da prestação de contas da concessionária ao poder concedente. XIV – à exigência da publicação de demonstrações financeiras periódicas da concessionária; e XV- ao foro e ao modo amigável de solução das divergências contratuais. Parágrafo Único – Os contratos relativos à concessão de serviço público precedido de obra pública deverão, adicionalmente: I – estipular o cronograma físico-financeiro de execução das obras vinculadas à concessão; e II – exigir garantia do fiel cumprimento, pela concessionária, das obrigações relativas às obras vinculadas à concessão."
Destarte, após o cotejo da doutrina já declinada, conjugada com os julgados do Poder Judiciário, se pode afirmar, com toda certeza, que o termo de permissão de uso de bem público, a título precário, não necessita de licitação para ser firmado, não sendo ilegal o ato administrativo que autoriza diretamente tal avença, em proeminência do interesse público.
- III -
Seguindo as lições de Ivan Barbosa Rigolin, [11] se conclui que o direito administrativo brasileiro contempla cinco espécies de concessões, a saber: a) concessão de serviço público; b) concessão de direito real de uso de bem público; c) concessão administrativa de uso de bem público, d) concessão de obra pública e, e) concessão de serviço público precedido de obra pública.
A concessão de serviço público, pode ser definida como o instituto de direito administrativo, materializado através da celebração de contrato administrativo, que seguirá as determinações da Lei nº 8.987/95, onde o Poder Público concede ao particular a execução de serviço público ou de obra pública, ou lhe cede o uso de bem público, para que o explore por conta e risco.
A concessão de serviço público (art. 175, parágrafo único, I, da CF) diferencia-se da permissão de uso de bem público, pelo fato deste último instituto de direito público possuir como característica a precariedade e, via de conseqüência, não necessita do processo licitatório para ser firmado. Já na concessão, o contrato administrativo estabelecerá seu prazo de validade, além de ser exigência legal a sua formalização ser precedida do certame licitatório.
Já a concessão de direito real de uso de bem público, sem prazo determinado, é estabelecida por um termo entre o poder público e o particular, de forma graciosa ou remunerada, sem a obrigatoriedade de licitação, onde é cedido determinado bem, em prol do interesse público.
Ivan Barbosa Rigolin, [12] com acerto assim se posiciona sobre o tema: "concessão de direito real de uso de bem público. Ainda que aparente ser uma modalidade de concessão, em verdade nada tem como esse instituto, pois que se trata de uma efetiva transferência da propriedade, ou da titularidade, de imóvel, fundada no art. 7º, do Decreto-lei Federal nº 271, de 28 de fevereiro de 1967, ainda em pleno vigor."
Todavia, se a referida cessão de direito real de uso de bem público estabelecer prazo de validade, ser-lhe-á retirada a precariedade da mesma, passando este instituto a guardar correlação direta com as regras legais da concessão de serviço.
Nessas circunstâncias, a cessão/permissão de uso de bem público, concedido em proveito do particular, deixará de ter o caráter precário e discricionário, em favor do interesse da comunidade, para dar lugar a uma verdadeira concessão de serviços públicos.
Essa característica é fundamental para distinguir um instituto jurídico do outro.
Assim, não se tratando de concessão de serviço, não há a necessidade de incluí-la na regra Constitucional da obrigatoriedade da licitação (CF, art. 175, parágrafo único, inc. I), de modo que a lei local determinará quais são as regras jurídicas aplicáveis ao caso concreto.
A "teor do art. 7º, do Decreto-Lei nº 271/67, com seus parágrafos, a concessão do direito real de uso pode ser contratada para os fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra ou outro fim de interesse social, que naturalmente deverá estar especificado e fundamentado a cada caso concreto." [13]