Nos últimos anos, tem-se observado reiterados questionamentos acerca da segurança da urna eletrônica, notadamente quanto à inviolabilidade do dispositivo e a certeza da proteção do exercício do voto, este, pilar central da democracia e pelo qual é preservada a garantia constitucional de que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, inserta expressamente no parágrafo único do artigo 1º. da Constituição Federal em vigor.
Essa temática ganhou força, ultimamente, a partir de suposições desprovidas de demonstração concreta e que têm reverberado junto ao coletivo, através de conceitos rápidos e julgamentos instantâneos que comprometem as estruturas institucionais.
Assim, tem-se instaurado um movimento nacional em prol do voto híbrido, vulgarmente chamado de voto impresso e auditável, com prelúdio na Lei 10.408/02 que determinava a impressão de votos em 3% das urnas de cada zona eleitoral, implementado nas eleições de 2002.
Em razão das incontáveis falhas ocorridas, dentre elas, eleitores deixando as cabines de votação sem confirmar a impressão dos votos, e mesários sem conseguir manusear a novidade do voto híbrido, a lei supracitada demonstrou inaptidão para o propósito a que fora criada, escolher um representante, sendo revogada pela Lei 10.740/03.
Em 2009, a Lei 12.034 ressuscitou a proposta do voto híbrido para 2% das urnas de cada zona eleitoral, com o mínimo de três urnas por município, mas fora objeto da ADI 4.543, que declarou sua inconstitucionalidade, por violação do sigilo do voto, previsto como cláusula pétrea, no artigo 14, caput, e artigo 60, §4º,II, da Constituição Federal.
Com a mini reforma eleitoral trazida pelo art.2º da Lei 13.165/2015, foi trazida novamente a previsão do voto híbrido para as eleições de 2018, com a inclusão do art. 59-A, parágrafo único na Lei 9.504/97, prevendo:
“No processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro de cada voto, que será depositado, de forma automática e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado.
Parágrafo único. O processo de votação não será concluído até que o eleitor confirme a correspondência entre o teor de seu voto e o registro impresso e exibido pela urna eletrônica.” (BRASIL, 1997, art. 59)
A referida alteração foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5889, que questionou a violação do sigilo do voto diante da possibilidade de falha no processo de impressão, expondo a risco o conhecimento dos votos já depositados, bem como limitação do exercício pelas pessoas com deficiência visual e analfabetas, pois não poderiam conferir o voto impresso sem o auxílio de terceiros, tendo sido julgada em 16/09/2020, procedente, declarando a inconstitucionalidade do art. 59-A e parágrafo único da Lei nº 9.504/97, incluído pela Lei nº 13.165/15.
Atualmente, seguindo o mesmo mote, agora com afinco de garantir a materialização do ideal frustrado nos dois últimos projetos legislativos, foi proposta a emenda constitucional 135/19 que possui a seguinte redação:
"O artigo 14 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte § 12:
Artigo 14 (…) §12. No processo de votação e apuração das eleições, dos plebiscitos e dos referendos, independentemente do meio empregado para o registro do voto, é obrigatória a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas, de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria". (BRASIL,2019, art.14)
A justificativa apresentada para este incessante anseio pela impressão do voto é o questionamento da integridade dos sistemas eleitorais, e o entendimento de que só existe auditoria através da conferência do voto registrado na urna, por meio de sua impressão.
Não se cogitando que a impressão pode gerar uma situação exatamente inversa a almejada, primeiro em razão da vasta área territorial do Brasil, em que a fiscalização de abusos é débil, haja vista a ausência de polícia federal nos municípios longínquos que já têm tradição negativa de compra e venda de votos.
Como bem asseverou a Ministra Cármen Lúcia em seu voto na ADI 5889:
“A necessidade de impressoras, softwares e equipamentos adicionais tornam os procedimentos mais complexos, vulneráveis e, conseguintemente, menos expeditos, sendo relevante reconhecer o considerável incremento nos pontos passíveis de panes no sistema. A possibilidade de fraudes, cópias e trocas de votos, decorrentes de votação impressa, aumenta, sendo mister ter urnas preparadas para a sua guarda, forma de transporte específico, garantia de sua integridade, tudo mais dificultado e sem garantia de eficiência do resultado incólume do sistema“ (ADI 5889, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 16/09/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-242 DIVULG 02-10-2020 PUBLIC 05-10-2020)
A proposta de emenda é fundamentada também nas decisões tomadas pela Corte Alemã e pela Corte da Índia, que entenderam pela inconstitucionalidade do voto eletrônico, argumentando que só o voto impresso ofereceria segurança para as eleições, contudo, ao absorver essa realidade, foi ignorado em absoluto as disparidades entre as referidas nações e o Brasil, e que nas citadas localidades não existe urna eletrônica, a votação é manual (BRASIL, PEC 135/19).
A PEC sustenta que somente o voto Impresso garante o princípio da publicidade, uma vez que o cidadão comum não precisaria de conhecimento técnico especializado para visualizar sua escolha, e argui ainda a violabilidade do RDV – Registro Digital do Voto, porque é controlado somente pela Secretaria de Tecnologia da Informação do TSE (STI/TSE), por isso vulnerável a ataques internos e externos (BRASIL, PEC 135/19).
Há um desprezo pelo fato da STI/TSE ser formada por servidores públicos com conhecimento comprovado através de concurso público, e submetidos ética e moralmente aos direitos e deveres constitucionais, possuindo fé pública, outorgada pelo Estado democrático de direito.
O parecer juntado pela secretaria de tecnologia e informática do Tribunal Superior Eleitoral, por ocasião do julgamento da ADI 5889, refuta de forma racional e precisa, os argumentos da PEC 135, quando aponta, por exemplo, os riscos de perda do voto impresso, a impossibilidade do eleitor ter certeza que o voto impresso é o mesmo recontado pela Junta Eleitoral, além da alta probabilidade do candidato perdedor se insurgir contra o resultado (BRASIL, ADI 5889).
Esses fatos supramencionados podem gerar uma pulverização de impugnações e recursos à votação e apuração, conturbando de tal forma a votação, que acaso seja concluída, poderá desembocar em anulação da eleição, tornando a recontagem de votos como regra, constituindo retrocesso ao sistema antigo de votação manual.
O mais interessante que todo esse cabedal de inconvenientes do voto híbrido está ancorado em uma fictícia possibilidade de auditoria não existente, mas que ocorrendo, certamente será a mais precária, pois já existem inúmeras formas fidedignas e mais certeiras de auditoria, como a coleta do voto através do Registro Digital de Voto (RDV), obtido em cada urna offline (desconectada da internet), a assinatura digital, a zerésima, a votação paralela e principalmente, o resultado impresso antecipadamente, antes da transmissão de dados para apuração, podendo ser conferido através dos Boletins de Urna fornecidos aos partidos políticos.
Somando-se a essas premissas, o legítimo argumento proferido pelo Ministro Barroso, em sessão temática no Plenário do Senado, no qual aponta que o voto impresso sairia da mesma urna eletrônica que está sob suspeita, induzindo, por sequência lógica, a dedução de que a fraude eletrônica se estenderá ao voto o impresso. (BRASIL, 2021)
De forma simplificada, o itinerário percorrido, concebe a impressão do voto digitado, como solução de comprovação de confiabilidade do sistema eleitoral que o registra, mas ignora o relevante fato de que se o sistema pode alterar os dados inseridos digitalmente, poderá alterar o que for impresso.
Por ilação, se questiona o real propósito dessa renovação do arcaico, de alto custo financeiro para o povo, e com possibilidade real de frustrar a realização da eleição, em razão dos tumultos que poderão ser gerados, sendo mais inteligível, em virtude dessa soberana desconfiança, o retorno ao declínio do voto manual, com todos os riscos que esse oferece, sendo mais inteligível um debate aprofundado sobre possibilidade de aprimoramento da urna e do sistema democrático no Brasil.
Percebe-se assim, um padrão comportamental de retrocesso a velhas experiências não validadas, o que traz sérios prejuízos para a estrutura democrática, com o evidente conflito estabelecido entre os poderes, por meio do menosprezo ao princípio republicano.
Conclui-se que essa busca incansável a padrões superados faz parte de uma crise democrática, que agora questiona a idoneidade de seu maior baluarte, o voto, em adendo a contestação da legitimidade das instituições e veículos que a sustentam, a fim de intuir dentro da massa popular o desejo suicida de autofagia dos seus próprios direitos. (Avritzer, p. 276)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. São Paulo: Editora 34, 2019.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº 135, de 2019. Acrescenta o § 12 ao art. 14, da Constituição Federal, dispondo que, na votação e apuração de eleições, plebiscitos e referendos, seja obrigatória a expedição de cédulas físicas, conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas em urnas indevassáveis, para fins de auditoria". Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2019a. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2220292. Acesso em: 16 de julho de 2021.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 5889 MC /DF. Relator: Gilmar Mendes. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754002534> , Acesso em: 16 de julho de 2021.
BRASIL. Manual de redação: Agência Senado, Jornal do Senado. Brasília: Senado Federal, 2021. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/06/entenda-a-polemica-em-torno-da-pec-do-voto-impresso>, Acesso em: 16 de julho de 2021.