Resumo: Demonstraremos no presente artigo sobre a proteção constitucional ao consumidor no meio de consumo, tendo em vista que longo dos séculos, houve um crescimento exponencial da população nas grandes cidades e que por consequência, aumentou a procura por bens e serviços, atribuindo às indústrias, em criar e desenvolver métodos de produção em massa aos consumidores. Iremos fazer uma comparação histórica entre a legislação dos Estados Unidos e do Brasil, visto que o Código de Defesa do Consumidor foi criado tardiamente. Além disso, trataremos dos grandes impactos trazidos pela pandemia da covid-19, principalmente na contratação de pacotes de turismo e eventos, pois, com o advindo da Lei 14.046/2020, houve uma mitigação à proteção e defesa do consumidor, limitando e reduzindo direitos de reembolso, o que por consequência, leva ao nosso pensamento crítico e analítico de sua inconstitucionalidade por violação a Constituição Federal de 1988. Por fim, apresentaremos o entendimento dos tribunais de justiça espelhados pelo país sobre o tema e quais foram suas soluções jurídicas.
Palavras chave: Direito; Constitucional; Consumidor; Inconstitucionalidade.
1. INTRODUÇÃO
No início era o Verbo[1], desde o começo dos tempos, o mundo foi formado com um proposito e uma finalidade, a criação. Nele estava a vida e esta era a luz dos homens. Porém, com o tempo, a escuridão tomou a terra com o mais terrível mal, a ignorância.
E conforme o tempo passou, existiu a necessidade de inovar e criar métodos para o desenvolvimento humano. Durante o avanço da expertise humana, surgiu a possibilidade os homens em determinar a sua fibra moral na sociedade, assim, nessa época, começou a expansão criativa e intelectual das civilizações.
Remontando os séculos XVIII, XIX, antes de existirem indústrias de massa, a “produção era manual, artesanal, mecânica, circunscrita ao núcleo familiar ou a um pequeno número de pessoas”[2], porém, com o crescimento populacional nas grandes cidades pelo mundo e o estopim da revolução industrial na Inglaterra, por consequência, houve um aumento na procura por bens e serviços, assim, os empresários enxergaram uma possibilidade de expandir às demandas industriais para atender várias pessoas.
Este modelo de indústria de massa cresceu durante o século XX, especialmente com a era Fordismo, criado pelo Henry Ford (1863-1947) que teve por objetivo a sistematização da produção em massa, reduzindo o tempo de produção e custo dos veículos. Em contrapartida, o Toyotismo desenvolveu o Sistema Toyota de Produção, qualificando e realizando uma educação profissional aos seus funcionários para analisar a necessidade do mercado e realizar a produção dos veículos de acordo com a demanda, diminuindo, assim, os desperdícios da empresa.
Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1916) a produção em massa sofreu enormes incrementos e se solidificou na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) com o surgimento das diversas tecnologias de ponta, do aperfeiçoamento das telecomunicações e do fortalecimento da informática.
Diante exposto, iremos demostrar a seguir, como realizou-se o desenvolvimento da tutela legislativa para a proteção dos consumidores.
2. TUTELA CONSTITUCIONAL DOS CONSUMIDORES
A consolidação dos direitos em prol à proteção aos consumidores dentro do ordenamento brasileiro, em nossa percepção, foi realizada de forma tardia, apresentando-se, inicialmente apenas em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, como um direito fundamental, no art. 5, XXXII[3] e em sua preservação na ordem econômica, nos termos do Art. 170, V[4].
Logo após, no art. 48, das disposições transitórias[5] da Magna Carta, por meio do Congresso Nacional, foi determinado que os representantes da República Federativa do Brasil desenvolvessem em 120 dias após a promulgação da Constituição, o Código de Defesa do Consumidor.
Apenas em 11 de setembro de 1990[6] houve a publicação do Código de Defesa do Consumidor. Diante da nossa percepção de morosidade para sua criação, o Dr. Rizzatto Nunes recorda que passamos “praticamente o século XX inteiro aplicado às relações de consumo o Código Civil de 1916.”[7]
Realizando um comparativo com os Estados Unidos, por exemplo, os consumidores obtiveram sua proteção em 1890, com a criação da Lei Sherman ou mundialmente conhecida como Lei Antitruste, formulada pelo Senador John Sherman (1823-1900), a fim de evitar os monopólios, garantindo a manutenção do livre mercado e a regulação das empresas corporativas, promovendo uma concorrência leal em benefício dos consumidores.
A ampliação da defesa aos consumidores norte-americanos pela Lei Antitruste ocorreu apenas em 1962, quando o ex-Presidente John Fitzgerald Kennedy (1917-1963) encaminhou uma nota especial ao Congresso dos Estados Unidos informando e pontuando direitos básicos sobre a proteção e interesses dos consumidores (Special Message to the Congress on Protecting Consumer Interest), como à saúde, à informação, à segurança, à escolha e de serem ouvidos:
“Consumidores, por definição, somos todos nós. Os consumidores são o maior grupo econômico na econômica, afetando e sendo afetado por quase todas as decisões econômica, públicas e privadas [...]. Mas são o único grupo importante na economia não eficazmente organizado e cujos posicionamentos quase nunca são ouvidos.”[8]
Devemos relembrar ainda, que a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, em sua 29ª Sessão, realizada em 1973, em Genebra/Suíça, reconheceu que os consumidores possuem direitos básicos, como à segurança, à integridade física, à intimidade, à honra, à informação e o respeito à dignidade humana dos consumidores.
Foi apenas em 1985 que a Assembleia Geral das Nações Unidas criou a Resolução 39/248, que deliberou sobre diretrizes e normas consumeristas em âmbito internacional, que os países, principalmente os subdesenvolvidos deveriam seguir, para implantar políticas de defesa aos consumidores.
Assim, devemos relembrar as origens da sociedade de produção em massa para entender o porquê possuímos legislação que protege os consumidores. De acordo com o Dr. Humberto Theodoro Júnior, a “função principal do Código é reequilibrar as forças dos sujeitos da relação consumerista, diminuir a vulnerabilidade do consumidor e limitar as práticas nocivas de mercado.”[9]
3. INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 14.046/2020
Houve certo tempo em que pensamos estar livres de novas doenças e vírus, visto, que nossa atual sociedade atingiu grandes níveis de consciência, cuidado e higienização por todo mundo. Por outro lado, como é de extrema notoriedade, os números da pandemia de covid-19 aumentam a cada dia.
Conforme entendimento do escritor, diplomata e político francês, François-René de Chateaubriand (1768-1848) “os momentos de crise suscitam um redobrar de vida nos homens”[10], e desta forma, o Governo do Estado de São Paulo, por meio do Decreto n° 64.879 de 20/03/2020[11], foi o primeiro Estado do Brasil a reconhecer o estado de calamidade pública em decorrência da covid-19.
Logo após, o Governo Federal iniciou a emissão de medidas provisórias para diminuir os danos financeiros no mercado, dentre eles, especificadamente sobre este artigo, a Medida Provisória n° 948 de 08/04/2020[12], que foi convertida em Lei Federal n° 14.046 de 24/08/2020[13], que dispõe sobre medidas emergenciais para atenuar os efeitos da covid-19 no setor de turismo e de cultura, do qual destacaremos os principais artigos, in verbis:
Art. 2º Na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, até 31 de dezembro de 2021, em decorrência da pandemia da covid-19, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não será obrigado a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegure:
I - A remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou
II - A disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas.
§ 1º As operações de que trata o caput deste artigo ocorrerão sem custo adicional, taxa ou multa ao consumidor, em qualquer data a partir de 1º de janeiro de 2020, e estender-se-ão pelo prazo de 120 (cento e vinte) dias, contado da comunicação do adiamento ou do cancelamento dos serviços, ou 30 (trinta) dias antes da realização do evento, o que ocorrer antes.
§ 3º O fornecedor fica desobrigado de qualquer forma de ressarcimento se o consumidor não fizer a solicitação no prazo estipulado no § 1º ou não estiver enquadrado em uma das hipóteses previstas no § 2º deste artigo.
§ 4º O crédito a que se refere o inciso II do caput poderá ser utilizado pelo consumidor até 31 de dezembro de 2022.
§ 6º O prestador de serviço ou a sociedade empresária deverá restituir o valor recebido ao consumidor até 31 de dezembro de 2022, somente na hipótese de ficar impossibilitado de oferecer a remarcação dos serviços ou a disponibilização de crédito referidas nos incisos I e II do caput.
Além disso, conforme estabelecido no art. 3, da respectiva lei, in verbis:
Art. 3º O disposto no art. 2º desta Lei aplica-se a:
I - prestadores de serviços turísticos e sociedades empresárias a que se refere o art. 21 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008 ; e
II - Cinemas, teatros e plataformas digitais de vendas de ingressos pela internet.
Vejamos um caso concreto, que está em curso no Tribunal do Estado de São Paulo. Um consumidor entra em contato com uma agência de turismo, antes da pandemia de covid-19 para comprar ingressos dos parques temáticos da Disney, em Orlando/EUA. Realizado o pagamento, os vouchers foram entregues via e-mail ao consumidor. Tempo depois, chegou a notícia das medidas emergenciais para combate do vírus, ocasionando o fechamento e cancelamento dos voos nos aeroportos pelo Brasil[14]. Após longos meses com tentativas de remarcações, administrativamente, requereu a carta de crédito, conforme estipulado pela Lei Federal n° 14.046 de 24/08/2020, mas que só poderia utiliza-la perante serviços oferecidos em Orlando/EUA. Ocorre, que o consumidor desistiu de viajar para os Estados Unidos, para preservar a saúde de sua família, mas a empresa não irá fazer de reembolso, pois “cumpriu” com a concessão da carta de crédito.
Ora, resta-se nítido que a Lei 14.046 de 24/08/2020 cria um cenário extremamente desfavorável ao consumidor, no que tange, a redução de direitos constitucionais, favorecendo os fornecedores, mesmo que haja autonomia da vontade em desistir da compra realizada. De acordo com o entendimento do Dr. Sérgio Cavalieri Filho, sobre o fornecedor:
“Todo aquele que se disponha a exercer alguma atividade no mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens e serviços fornecidos, independentemente de culpa. Esse dever é imanente ao dever de obediência às normas técnicas e de segurança, bem como aos critérios de lealdade, que perante os bens e serviços ofertados, quer perante os destinatários dessas ofertas. A responsabilidade decorre do simples fato de dispor-se alguém a realizar atividade de produzir, estocar, distribuir e comercializar produtos ou executar determinados serviços. O fornecedor passa a ser o garante dos produtos e serviços que oferece no mercado, respondendo pela qualidade e segurança dos mesmos.” [15] (grifo nosso).
Importa dizer, inicialmente, que a proteção ao consumidor foi eleita pela nossa Constituição como direito fundamental, tratando-se de cláusula pétrea. É certo que nenhum direito é absoluto, mas ao mesmo tempo deve ser harmonizado com as demais legislações e garantias previstas na Constituição Federal, porém, a Lei Federal n° 14.046 de 24/08/2020, além de ser inconstitucional desde sua origem, mitiga os direitos dos consumidores para garantir os interesses econômicos de empresas, violando o princípio da segurança jurídica. De acordo com o Juiz do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Dr. Rafael Tocantins Maltez:
“O Código de Defesa do Consumidor é um microssistema e não, propriamente um ‘código’. Funciona como lei especial, de conteúdo principiológico constitucional. As outras leis, sejam elas anteriores ou posteriores, aplica-se de forma subsidiária e não podem contrariar a principiologia do Código de Defesa do Consumidor, sob pena de inconstitucionalidade.”[16] (grifo nosso).
Ou seja, A Lei Federal n° 14.046 de 24/08/2020 em nosso entendimento, apresenta-se como uma forma de diminuição da eficácia da normal constitucional, “retrocedendo na tutela dos direitos fundamentais, violando o princípio da proibição ao retrocesso.”[17]
Devemos nos recordar que os direitos básicos do consumidor, nos termos do art. 6, VI[18], do CDC, há previsão expressa da reparação integral de qualquer dano (material ou moral) de forma objetiva, ou seja, a redução de seus direitos, a fim que o fornecedor não reembolse por conta da pandemia de covid-19, viola preceitos constitucionais.
Além disso, o consumidor é considerado como hipossuficiente técnico nas relações de consumo, conforme art. 6, VIII[19], do CDC, pois, os consumidores não possuem uma participação no ciclo de produção, agenciamento ou intermediação de bens e serviços.
“Livre mercado composto de consumidores e fornecedores tem, na ponta do consumo, o elemento fraco de sua formação, pois o consumidor é reconhecidamente vulnerável como receptor dos modelos de produção unilateralmente definidos e impostos pelo fornecedor. A questão não é, pois – como às vezes a doutrina apresenta -, de ordem econômica ou financeira, mas técnica: o consumidor é mero expectador no espetáculo da produção.”[20] (grifo nosso).
Atualmente, os tribunais estão começando a se deparar com os respectivos questionamentos sobre o tema e reconhecendo a mitigação dos direitos do consumidor em um âmbito constitucional:
AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL CUMULADA COM DEVOLUÇÃO DE VALORES E INDENIZATÓRIA - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS - TURISMO - CRUZEIRO MARÍTIMO INTERNACIONAL - CONTRATAÇÃO - MARÇO DE 2019 - EMBARQUE - 14.4.2020 (CAPE TOWN, ÁFRICA DO SUL) - DESEMBARQUE - 13.5.2020 (VENEZA, ITÁLIA) - RÉ - CANCELAMENTO - CRISE SANITÁRIA MUNDIAL - PANDEMIA DA COVID-19 - OFERTA DE CARTA DE CRÉDITO PARA FUTURO CRUZEIRO COM EMBARQUE ATÉ 31.12.2021 - CONDUTA - EMBASAMENTO - MEDIDA PROVISÓRIA Nº 948 DE 8.4.2020, CONVERTIDA NA LEI 10.046, DE 24.8.2020 - RÉ - AFIRMAÇÃO - IMPOSSIBILIDADE DE NEGATIVA DE VIGÊNCIA AO ART. 2º, § 6º, DA CITADA LEI - INADMISSIBILIDADE - MEDIDA PROVISÓRIA - PERMISSÃO DA DEVOLUÇÃO DOS VALORES MEDIANTE "ACORDO A SER FORMALIZADO COM O CONSUMIDOR" (ART. 2º, iii) - INCISO - EXCLUSÃO DA LEI 10.046 - RESPEITO AO PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE, MORMENTE PORQUE O TEXTO DA MEDIDA PROVISÓRIA FOI ALTERADO - IMPLICAÇÃO QUE REDUZIRIA AINDA MAIS DIREITOS DOS CONSUMIDORES - PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO CONSUMIDOR - IMPOSSIBILIDADE DE LIMITAÇÃO POR LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL EDITADA POSTERIORMENTE À OCORRÊNCIA DOS FATOS - AUTORES - VALORES PAGOS - RESTITUIÇÃO INTEGRAL - PERTINÊNCIA - QUANTIA RETIDA PELA AGÊNCIA DE VIAGENS - RÉ - EXIGÊNCIA EM AÇÃO PRÓPRIA - SENTENÇA - MANUTENÇÃO, POR OUTROS FUNDAMENTOS. AUTORES - APELO - INSURGÊNCIA - IMPOSIÇÃO DA RECIPROCIDADE SUCUMBENCIAL - INADMISSIBILIDADE - DECAIMENTO DE DOIS DOS TRÊS PEDIDOS DEDUZIDOS - INAPLICABILIDADE DO ART. 86, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC - PREVALÊNCIA DO CAPUT - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - ARBITRAMENTO - PERCENTUAL - INCIDÊNCIA SOBRE O PROVEITO ECONÔMICO NÃO OBTIDO (INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E RESSARCIMENTO DE PACOTE ADICIONAL) - INTELIGÊNCIA DO ART. 85, § 2º, DO CPC. APELO DA RÉ NÃO PROVIDO E DOS AUTORES PARCIALMENTE PROVIDO.[21]
RESCISÃO CONTRATUAL - Prestação de serviço – Pacote de viagens – Cancelamento em virtude da pandemia de COVID 19 – Contratação de pacotes de passagem, hospedagem e traslado para dezessete pessoas – Pretensão de rescisão contratual com restituição dos valores pagos – Sentença de procedência – Aplicação da lei 14.034/20 que regula aviação civil – Caso no qual se deve aplicar a lei 14.046/20, que rege atividade turística em geral – Ausência de previsão legal de restituição dos valores pagos caso oferecida opção de remarcação ou carta de crédito pela redação conferida pela Medida Provisória de nº 1.036/21 – Lei que mitiga a incidência do CDC – Relativização da lei infraconstitucional verificada onerosidade excessiva imposta à consumidora – Reembolso que deve ser providenciado ante a impossibilidade de aproveitamento dos créditos fornecidos pela consumidora – Data limite para reembolso que deve ser o estipulado em lei específica, no caso 31 de dezembro de 2022 – Forma de preservar o equilíbrio contratual ante os efeitos da pandemia - Sentença retocada neste aspecto – Recurso parcialmente provido.[22] (grifo nosso).
E por outro lado, há necessidade de observar corretamente o contrato celebrado com a empresa, tendo em vista que as cláusulas de restituição em caso fortuito ou força maior devem ser observadas, conforme entendimento do TJCE:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO ORDINÁRIA. RESCISÃO DE CONTRATO DE VIAGEM DE NAVIO EM RAZÃO DA PANDEMIA DO COVID-19. TUTELA DE URGÊNCIA DEFERIDA PARA AFASTAR A INCIDÊNCIA DA CLÁUSULA QUE PREVÊ MULTA DE 100% CASO O HÓSPEDE NÃO COMPAREÇA AO EMBARQUE. DECISÃO QUE ASSEGURA O RESULTADO PRÁTICO DO PROCESSO. MANUTENÇÃO. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. A questão posta em análise cinge-se em verificar se estão presentes os requisitos legais para a concessão da tutela de urgência deferida pelo juízo de primeiro grau no sentido de determinar que a parte agravante se abstenha de aplicar a cláusula 10.3 do contrato firmado entre as partes, relativa à cobrança de multa de 100% (cem) por cento do valor contratado. 2. De acordo com o art. 2º da Lei 14.046/2020: "Na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, até 31 de dezembro de 2021, em decorrência da pandemia da covid-19, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não será obrigado a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegure: I - a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou II - a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas." 3. Contudo, antes da publicação da referida Lei, ou seja, antes mesmo do avanço da pandemia do covid-19, a cláusula 13.3 do contrato celebrado entre os litigantes já estabelecia que, na hipótese de caso fortuito ou força maior, a empresa poderia cancelar o contrato, assegurando ao hóspede as seguintes opções: o reembolso integral de todo valor pago; ou reserva em outro Cruzeiro de nível equivalente, se disponível; ou reserva em outro Cruzeiro de nível inferior, se disponível, com reembolso da diferença de preço. 4. No caso em apreço, os recorridos não compareceram ao embarque, por receio do avanço da pandemia, após a viagem foi cancelada. Assim sendo, mostra-se adequada a decisão que, a título de tutela de urgência, afastou a cláusula 10.3 o contrato que prevê a incidência de multa de 100% do valor pago quando o hóspede não se apresenta no prazo para embarque ou não embarca por qualquer motivo. 5. A medida de urgência concedida tem como objetivo assegurar o resultado prático do processo, caso a ação seja julgada procedente, pois impede a aplicação imediata da cláusula 10.3 em desfavor da parte recorrida, implicando na perda de todos os valores pagos à empresa. Dessa forma, mostra-se mais adequado, na fase em que o processo se encontra, manter a decisão impugnada. 6. Ressalte-se que eventuais danos decorrentes dos fatos narrados na inicial deverão ser analisados pelo juízo de primeiro grau na sentença, assim como a forma que se dará o ressarcimento dos valores pagos pelos recorridos. A questão julgada, neste momento, limita-se à análise da tutela de urgência concedida para assegurar o resultado prático do processo. 7. Agravo de instrumento conhecido e não provido. [23]
Expostos tais preceitos, podemos perceber que a Lei 14.046/2020 definitivamente apresenta pontos inconstitucionais, tendo em vista que reduz direitos básicos dos consumidores brasileiros, porém, mesmo que seja reconhecido judicialmente o direito de restituição, tal devolução deverá ser feita até 31 de dezembro de 2022.
4. CONCLUSÃO
Diante do apresentado, podemos perceber que a Lei 14.046/2020 definitivamente diminui os direitos dos consumidores no setor de turismo e shows realizados pelo Brasil, mas, por outro lado, quando observamos o sistema valorativo da Constituição Federal, bem como, o caráter de direitos fundamentais atribuído aos consumidores (art.5, XXXII, CF), concluímos que as legislações anteriores e posteriores que vierem, ao nosso ver, nunca poderão reduzir tais direitos, mas tão somente acrescer, sob pena de inconstitucionalidade.