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A incompatibilidade da dignidade afetiva e o direito à sucessão.

Uma abordagem do reconhecimento da paternidade extemporânea

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Agenda 09/12/2006 às 00:00

CONCLUSÃO

O dinamismo social implica em freqüentes e corriqueiras adaptações do ordenamento jurídico aos fatos da vida. No entanto, tais alterações, devido à grande velocidade em que elas ocorrem, não são automáticas. Cabe, assim, aos operadores do Direito acomodar esses novos valores sociais reais, à norma em abstrato.

O sistema jurídico como um todo tem a função de possibilitar sejam reconhecidos fatos em contextos sociais, contextos nos quais ocorrem as relações entre as pessoas, seres humanos fundamentalmente organizados para viverem uns em meios a outros.

Dessa forma, o direito de família, por tratar diretamente com os autores dos fatos sociais, tem se voltado inteiramente para um subjetivismo integrador das atividades sentimentais, emocionais e porque não volitivas dessas relações. Tal fato somente pôde ocorrer após a constitucionalização do direito de família.

Neste sentido, formando-se uma família que respeite a dignidade de seus membros, a igualdade nas relações entre eles, a liberdade necessária ao crescimento individual e a prevalência das relações de afeto entre todos, ao operador jurídico resta acatar e reconhecer os fatos humanos.

Considerando o panorama da problemática trazida à análise e nas apresentadas linhas acima, relativamente ao reconhecimento da paternidade biológica extemporânea ou tardia, concebendo esta nos casos em que já houve a construção da personalidade e dos valores humanos em pessoa inserida em autêntica família, onde lhe constem as figuras da formação familiar clássica, tais como mãe, pai, irmãos, avós, etc.,

Ainda, atendendo ao fato de que o filho biológico se mostra, na maioria das vezes, avesso à substituição das antigas figuras construídas pelo afeto, pelas pessoas agora reconhecidas judicialmente, o que acarreta evidente bloqueio de construção de qualquer sentimento afetivo por parte do reconhecido, tendo em vista os próprios valores sociais e cristãos da família; a incompreensão dos motivos que resultaram no reconhecimento tardio da filiação. E o mesmo se dá em relação ao pai ou mãe reconhecidos, vez que não houve convivência entre esses sujeitos.

Acabamos por concluir os seguintes pontos:

a) pela manutenção da filiação sócio-afetiva e a desconsideração da filiação genética para fins jurídicos

A noção de afeto, como um elemento concreto a ser considerado nas relações de família, foi ingressando gradativamente no jurídico, assim como outras tantas: liberdade, igualdade, solidariedade. Isto se deve às transformações pelas quais ela passou, especialmente quanto ao deslocamento do centro de preocupações: da instituição família para aqueles que a compõem.

A partir do momento em que o sujeito passou a ocupar uma posição central, era esperado que novos elementos ingressassem na esfera jurídica. E foi o que se observou com relação ao afeto.

A vontade de estar de permanecer junto a outra pessoa revelou-se um elemento de grande importância tanto na constituição de uma família, assim como em sua dissolução. As pessoas passaram a se preocupar mais com o que sentiam do que com a adequação de seus atos ao modelo jurídico.

Ademais, o Direito não deve decidir de que forma a família deverá ser constituída ou quais serão suas motivações juridicamente relevantes. Em se tratando de relações familiares, seu campo de atuação deve se limitar ao controle da observação dos princípios orientadores, deixando às pessoas a liberdade quanto à formação e modo de condução das relações.

O modelo tradicional e o modelo científico partem de um equívoco de base: a família atual não é mais, exclusivamente biológica. A origem biológica era indispensável à família patriarcal, para cumprir suas funções tradicionais. Após o advento constitucional superou-se todas essas amarras, dando-se um salto na proteção do ser humano e de sua dignidade.

O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue. Como visto, a história do direito civil e do direito de família e à filiação confunde-se com o destino do patrimônio familiar, visceralmente ligado à consangüinidade legítima.

A restauração da primazia da pessoa humana, em detrimento do caráter biológico ou patrimonial nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais.

A família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas da humanidade, a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais.

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Aí observamos, na história do direito de família, na medida da redução da patrimonialização, a progressiva valorização do indivíduo como ser humano sujeito das relações existenciais, que acaba por autorizar, baseado nos princípio da dignidade da pessoa humana e dos demais princípios constitucionais, a manutenção do status de filho criado por família não biológica, desconsiderando por completo o vínculo genético. Somente as informações genéticas, para fins de saúde e preservação da vida humana, seriam consideradas e preservadas.

b) pela possibilidade da filiação sócio-afetiva participar da sucessão como herdeiro legítimo e sua conseqüente exclusão da sucessão por filiação biológica

Como examinado, o desenvolvimento científico, que tende a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência, a construção permanente dos laços afetivos. A identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo.

Dessa maneira, entendemos que desde a infância até o final da vida do filho, estará sendo atendido o conteúdo do art. 227 da CF, o qual prega o dever da família assegurar-lhe "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à personalização, à cultura, à dignidade, ao respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária", além de colocá-la "à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família.

Destarte, estando atendidos os valores humanos abstratos, pela inserção e vivência em determinada família, mesmo a não biológica, e, novamente baseado no princípio da dignidade das pessoas humana e os demais princípios constitucionais, entendemos deva ser autorizada a manutenção do status de legitimidade ao filho criado por família não biológica, e plenamente possível a legitimação para a sucessão dos bens de sua família, visto a convivência e eventual colaboração da construção do patrimônio familiar. Ao revés, cremos estar impossibilitada a sucessão genética, tendo em vista não fazer parte do conceito de família, constando-se alheio sentimental e materialmente ao conceito de família, caso do reconhecimento extemporâneo da filiação.

Por fim, cabe destacar, mais uma vez que a ausência de regulamentação não pode ser argumento para não proteção da família. A falta de previsão legislativa para uma gama de relações não implica em impossibilidade de tutela, que pode ser prestada através dos diversos mecanismos existentes, fundamentados, dentre outros, na vida digna do ser humano, com amplamente debatido acima.

c) a responsabilização dos bens da paternidade biológica por danos causados pelo abandono afetivo

Temos que tribunais estão reticente no reconhecimento de danos morais, tendo como causa o afeto, o sentimento não dispensado nas relações familiares, como demonstra o julgado abaixo:

AÇÃO. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. PAI. FILHO. ABANDONO AFETIVO. A Turma, por maioria, conheceu do recurso e deu-lhe provimento para afastar a possibilidade de indenização nos casos de abandono afetivo, como dano passível de indenização. Entendeu que escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar ou a manter um relacionamento afetivo, que nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada. Um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que, tardiamente, pelo amor paterno. O deferimento do pedido não atenderia, ainda, o objetivo de reparação financeira, porquanto o amparo, nesse sentido, já é providenciado com a pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil. REsp 757.411-MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005.

Porém, entendemos ser totalmente cabível no âmbito do direito de família e autorizado no atual ordenamento jurídico pátrio, a concessão de pagamento de pecúnia, em casos que claramente esteja comprovada e não ter sido suprida a necessidade afetiva do autor, por qualquer outra forma.

A Constituição prega fundamentalmente o dever da família, e aqui perfeitamente ela considerada entre genitor(a) e filho, mesmo não vivendo sob o mesmo teto, assegurar-lhe "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à personalização, à cultura, à dignidade, ao respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária", além de colocá-la "à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família.

Ainda e mais uma vez, deverão propiciar o atendimento do princípio da dignidade da pessoa humana, assegurando-lhe o melhor desenvolvimento da personalidade possível.

Logo, advogamos a idéia de que embora a Lei Maior faça referência expressa à violação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, não o vemos como ordenações taxativas. O que interessa é a circunstância de haver um princípio geral que estabeleça a reparabilidade do dano moral, independentemente do prejuízo material. Tal entendimento pode ser melhor analisado na obra de Eduardo A. Sambrizzi (Daños en el derecho de família. Buenos Aires: La Ley, s.d.).

Desta forma, a incidência desse princípio abrange todas as possibilidades de lesão ao livre desenvolvimento da pessoa em suas relações sociais, incluindo aquelas de cunho mais marcadamente patrimonial, mas que também podem trazer efeitos destrutivos à dignidade, como cremos no caso de reconhecimento de paternidade extemporânea.

Conclusivamente, nesses casos entendemos deva ser ignorada a parte sucessória do direito de família, visto que, embora biologicamente descendente, o filho reconhecido está alheio ao conceito de família, o que implica na transmutação da reparabilidade do dano sofrido para o direito das obrigações, tendo tal transcendência, como pano de fundo, o sentimento de afeto.


REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Douglas Policarpo

advogado, especialista em Direito Empresarial e mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino (ITE), bolsista do CAPES

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLICARPO, Douglas. A incompatibilidade da dignidade afetiva e o direito à sucessão.: Uma abordagem do reconhecimento da paternidade extemporânea. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1256, 9 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9257. Acesso em: 22 nov. 2024.

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