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(I)legalidade da prisão do atirador, colecionador ou caçador (CAC)

Agenda 04/10/2021 às 11:45

A guia de tráfego de arma para locais autorizados não se confunde com licença de porte. O que a legislação permite compreender como trajeto entre esses locais?

As discussões acerca da possibilidade de o cidadão que é Atirador, Colecionador ou Caçador (CAC) transportar sua arma de fogo tem gerado enormes controvérsias.

O Governo Federal, através de decretos presidenciais, regulamentou a questão e complementou a Lei 10.826/2003.

Antes de adentrar no mérito da discussão principal, imperioso analisar o tipo penal do art. 14 da Lei 10.826/03. O bem jurídico tutelado é a segurança e a incolumidade pública. A doutrina e a jurisprudência entendem que se trata de um crime de perigo abstrato, ou seja, o legislador presume que a conduta é perigosa.

Veja-se o que diz o tipo penal:

Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime em tela, ou seja, não existe nenhuma especificidade ou característica especial do agente. Já o sujeito passivo é a coletividade, por conseguinte, a doutrina o classifica como crime vago.

No âmbito do Direito Penal, vige o princípio da legalidade, mormente quando se está diante de tipos penais incriminadores. Trata-se de uma função protetora do cidadão contra os poderes constituídos, defendendo os direitos individuais e a autonomia de vontade das pessoas que integram o Estado.

Dentro do Código Penal vigente, referido princípio está definido no artigo 1º, que estabelece que não há crime sem lei anterior que o defina e não há pena sem prévia cominação legal. Na Constituição brasileira, sua descrição está no artigo 5º, inciso II, e prevê que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; e, ainda, no inciso XXXIX, do mesmo artigo, que estabelece: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

Nessa mesma esteira, “o princípio da taxatividadeou da determinação é dirigido mais diretamente à pessoa do legislador, exigindo dos tipos penais clareza, não devendo deixar margem a dúvidas, de modo a permitir à população em geral o pleno entendimento do tipo criado”. (CUNHA, 2015, p. 85)

Em datas pretéritas, quando os decretosque complementavam a Lei 10.826/03 eram outros, os Tribunais Superiores já foram instados a se manifestarem acerca da hipótese específica em que o CAC foi abordado pela polícia transportando seu armamento. Veja-se um desses exemplos:

DIREITO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. PORTE DE ARMA DE USO PERMITIDO. 1. PRÁTICA ESPORTIVA DE TIRO. ATIRADOR DE QUE, MUNIDO DE REGISTRO DA ARMA E DE GUIA DE TRÁFEGO, TRANSPORTAVA-A MUNICIADA. DESRESPEITO AOS TERMOS DA AUTORIZAÇÃO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INVIABILIDADE. RECURSO DESPROVIDO.

1. A prática esportiva de tiro é atividade que conta com disciplina legal. Para o transporte da arma, nesse contexto, além do registro, é necessária a expedição de "guia de tráfego" (que não se confunde com "porte de arma"). Atendidos esses requisitos, e, respeitados os termos da autorização fornecida pelo Exército, é plenamente possível o traslado da arma para a realização de treinos e competições.

2. Na espécie, havendo notícia de que o recorrente transportaria a arma, registrada, ao arrepio dos termos de sua guia de tráfego, porquanto municiada, não há falar em trancamento da ação penal por atipicidade.3. Recurso desprovido.(RHC 34.579/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 24/04/2014, DJe 06/05/2014) (grifou-se)

Observem que a jurisprudência acima citada é de 2014. Ocorre que a legislação sofreu mudanças e evoluiu no assunto. Em 2017, uma portaria do exército autorizou o CAC a transportar uma arma municiada, ou seja, pronta para uso e defesa do atirador. A fundamentação e justificativa para tal mudança é simples: o CAC deveria proteger seu armamento de eventuais tentativas de subtração, haja vista que esse material é muito visado pelos marginais.

Portaria nº 28-COLOG, de 14/03/17, estabeleceu, no artigo 135, que os atiradores desportivos poderão eleger uma de suas armas de porte do acervo de tiro para ser transportada municiada entre o seu local de guarda e o local de treinamento ou competição e vice-e-versa.

Mais recentemente o Decreto 9.846/2019, o qual foi alterado pelo Decreto 10.629/2021, estabeleceu um novo e claro regramento. In verbis:

Art. 5º  Os clubes e as escolas de tiro e os colecionadores, os atiradores e os caçadores serão registrados no Comando do Exército.

§ 2º Fica garantido , no território nacional, o direito de transporte desmuniciado das armas dos clubes e das escolas de tiro e de seus integrantes e dos colecionadores, dos atiradores e dos caçadores, por meio da apresentação do Certificado de Registro de Colecionador, Atirador e Caçador ou do Certificado de Registro de Arma de Fogo válido, desde que a munição transportada seja acondicionada em recipiente próprio, separado das armas.         (Redação dada pelo Decreto nº 10.629, de 2021)  

§ 3º Os colecionadores, os atiradores e os caçadores poderão portar uma arma de fogo de porte municiada, alimentada e carregada, pertencente a seu acervo cadastrado no Sigma, no trajeto entre o local de guarda autorizado e os de treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição, caça ou abate, por meio da apresentação do Certificado de Registro de Arma de Fogo e da Guia de Tráfego válida, expedida pelo Comando do Exército.        (Redação dada pelo Decreto nº 10.629, de 2021)  

§ 6º Para fins do disposto no § 3º, considera-se trajeto qualquer itinerário realizado entre o local de guarda autorizado e os de treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição, caça ou abate, independentemente do horário, assegurado o direito de retorno ao local de guarda do acervo.        (Incluído pelo Decreto nº 10.629, de 2021)  (grifou-se)

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A legislação acima transcrita é de uma clareza solar. Uma lei clara é aquela cujo sentido é expresso pela letra do texto. Para saber se isso acontece, é necessário que ela seja interpretada. Convém destacar, ainda, que tal norma deve ser interpretada de forma sistémica, ou seja, considerada que ela (norma) não pode ser vista de forma isolada, pois o direito existe como sistema, ou seja de forma ordenada e com certa sincronia e lógica com as demais.

Como lecionava Ruy Barbosa, "fora da lei não há salvação". Os decretos acima mencionados são legais, legítimos e obedecem aos limites dos poderes do órgão do qual emanou. Por conseguinte, não há falar em qualquer motivo para a sua não aplicação.

Da análise da legislação vigente, infere-se que os Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) poderão transportar e portar uma arma de fogo (pronta para emprego) obedecendo as seguintes regras:

1)  que o armamento pertença a seu acervo cadastrado no Sigma;

2) esteja no trajeto entre o local de guarda autorizado e os de treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição, caça ou abate;

3) apresentação do Certificado de Registro de Arma de Fogo;

4) apresentação da Guia de Tráfego válida, expedida pelo Comando do Exército.

Para não deixar nenhuma dúvida quanto à questão do “trajeto” que essa arma pode ser transportada, o decreto foi expresso em anunciar que pode ser realizado em qualquer horário e em qualquer itinerário entre o local de guarda autorizado e os de treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição, caça ou abate. A priori, não caberia questionamento ao CAC acerca do trajeto que ele estivesse realizando, uma vez que o decreto foi amplo quanto a essa possibilidade.

A legislação ainda acrescentou expressamente que deve ser assegurado o direito de retorno ao local de guarda do acervo. Nesse ponto específico não foi feita menção ao trajeto, nem ao horário “permitido”. Portanto, deve se considerar que a informação prestada pelo CAC – a princípio – é verdadeira e, eventual dúvida, não pode ser interpretada em seu desfavor. 

Observem que em nenhum momento a legislação exigiu que o “trajeto” seja “o menor possível” e/ou que o CAC não possa interromper esse deslocamento por algum período ao longo do deslocamento. Por conseguinte, não seria razoável (sob o um aspecto subjetivo) nem legal (sob um aspecto formal) que o aplicador do direito (seja o policial que está fazendo a fiscalização ou seja o Magistrado que está diante de eventual processo criminal) faça essa interpretação restritiva, a qual irá ter como consequência a violação de um direito do atirador desportivo.

A título de exemplo, poder-se-ia pensar numa situação que o possuidor da arma está voltando de um treinamento ocorrido há dois dias em outra cidade. Caso ele seja abordado pelos agentes das forças de segurança, a sua conduta está perfeitamente amparada pela legislação, portanto, sob o manto da legislação vigente não haveria margem para questionamentos acerca do tempo que ele levou para retornar para o local de guarda do armamento.

Para que seja possível questionar esse deslocamento (ou trajeto) realizado pelo CAC, dever-se-ia estar diante de uma situação absolutamente esdrúxula e teratológica. Fora esses casos, haveria excesso de rigorismo na aplicação da lei e dos decretos em vigor.

Da necessidade de os agentes de segurança e os aplicadores do direito de conhecerem a legislação vigente.

Observa-se no dia a dia que há um desconhecimento da maior parte da população do regramento que envolve a matéria. No entanto, os policiais e os operadores do direito que atuam na área criminal (juízes, promotores de justiça e advogados) devem ter pleno conhecimento do assunto, sob pena de haver uma violação frontal dos direitos e garantias dos cidadãos, mormente, o direito à liberdade.

Tem-se presenciado nas mídias que cidadãos que são Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) estão sendo autuados em flagrante e/ou respondendo a processos criminais de forma absolutamente ilegal.

Da atuação da Autoridade Policial nos casos apresentados para sua análise técnico-jurídica.

Sabe-se que o delegado de polícia é um dos primeiros garantidores dos direitos dos cidadãos que têm suas liberdades cerceados em casos de situações flagranciais.

A Constituição da República de 1988 e a legislação infraconstitucional elencam as atribuições das Autoridades Policiais, dentre as quais podem ser citadas:

5) presidir a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade;

6) decidir sobre o indiciamento, desde que seja realizado por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias;

7) requisitar a realização de exames periciais, informações, cadastros, documentos e dados, bem como colher provas e praticar os demais atos necessários à adequada apuração de infração penal e do ato infracional, observados os limites legais;

8) decidir sobre a lavratura do auto de prisão em flagrante;

9) representar à autoridade judiciária para a decretação de medidas cautelares reais e pessoais;

10) presidir inquéritos policiais, a lavratura de autos de prisão em flagrante delito, de termos circunstanciados de ocorrência, de interrogatórios, de oitivas e demais atos e procedimentos de natureza investigativa, penal ou administrativa;

No caso da lavratura de uma prisão em flagrante ou instauração de um inquérito policial, é preciso reconhecer que o Delegado de Polícia detém “poder discricionário de decisões processuais”, à qual necessariamente cabe analisar em cada caso concreto se ocorreu ou não crime. 

Essa análise não é jamais reduzida à mera tipicidade formal, mas deve ser ampliada até a ilicitude e a culpabilidade. Não havendo violação da lei, mas sim norma permissiva da conduta (como é o caso do transporte de arma pelos CACs) não há crime e muito menos flagrante. 

Ao Delegado de Polícia não cabe uma análise parcial do fato a si submetido, mas uma análise do “fato por inteiro”, com aplicação da legislação específica sobre o assunto. Os decretos vigentes acerca do transporte e porte de arma de fogo pelos CACs devem ser aplicados e interpretados pelo operador do direito, observando – inclusive – qual é a intenção do legislador quando da modificação desse regramento (mens legis).

Se o Direito permite a conduta, não há delito, há conduta permitida pela ordem jurídica em seu conjunto. Não há espaço para a redução da atividade de uma autoridade, mormente quando em jogo o direito à liberdade do cidadão, à mera interpretação formal de tipos penais.

Para que a conduta seja considerada criminosa deve haver um “desvalor” presente. Se a ação é permitida pela lei, não há desvalor, não há desaprovação e, portanto, não há crime. Sem crime não pode jamais haver prisão (“nulla custodia sine crimen”).

Nesse contexto, se a dúvida surgida na interpretação do fato apresentado ao delegado de polícia e suas nuances (após exaurimento de todos os recursos informativos disponíveis) tem o condão de impedir a autuação em flagrante (com a imediata devolução da efêmera privação de liberdade gerada pela captura) ou lavrar a peça coercitiva, submetendo-o ao posterior crivo judicial?

No Estado Democrático de Direito não há dúvidas que a resposta para o questionamento acima deve ser a imediata restituição da liberdade do cidadão. No caso específico dos CACs que estejam observando os decretos regulamentadores da Lei 10.826/03, qualquer restrição da liberdade seria absolutamente ilegal, nem sequer a instauração de inquérito policial, haja vista que a conduta é expressamente permitida pela legislação.

O Supremo Tribunal Federal, sobre a pauta no Recurso em Sentido Estrito nº 81.305-4, já decidiu no sentido de exigir elementos concretos na formação da “fundada suspeita” quando da análise pela Autoridade Policial. In verbis

EMENTA: HABEAS CORPUS. TERMO CIRCUNSTANCIADO DE OCORRÊNCIA LAVRADO CONTRA O PACIENTE. RECUSA A SER SUBMETIDO A BUSCA PESSOAL. JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL RECONHECIDA POR TURMA RECURSAL DE JUIZADO ESPECIAL. Competência do STF para o feito já reconhecida por esta Turma no HC n.º 78.317. Termo que, sob pena de excesso de formalismo, não se pode ter por nulo por não registrar as declarações do paciente, nem conter sua assinatura, requisitos não exigidos em lei. A "fundada suspeita", prevista no art. 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um "blusão" suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder. Habeas corpus deferido para determinar-se o arquivamento do Termo. (grifou-se)

Nesse contexto, no momento de uma eventual abordagem de um CAC pelos agentes de segurança e/ou posterior análise pela Autoridade Policial, pelo Promotor de Justiça e pelo Magistrado, quando da apresentação da documentação exigida pela legislação e versão verossímil pelo cidadão, não há falar em conduta criminosa e nem lavratura de auto de prisão em flagrante ou processo criminal.


REFERÊNCIAS 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 25 set. 2021.

BRASIL. Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em 25 set. 2021.

BRASIL. Lei nº. 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.826.htm>. Acesso em 25 set. 2021.

BRUNO. Anibal. Direito Penal: Parte Geral. Tomo III. São Paulo: Forense, 1984. p. 229. 

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 24ª edição, Saraiva, 2017.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal : parte geral: arts. 1° ao 120°. 3. ed. Salvador: JusPODIVM, 2015.

DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULYM Jorge Assaf, Curso de Processo Penal, 5ª ed. São Paulo, Forense, 2009.

D'URSO, Luiz Eduardo Filizzola. Princípio da legalidade, o escudo do cidadão, 2019. Disponível em:https://www.migalhas.com.br/depeso/302660/principio-da-legalidade--o-escudo-do-cidadao. Acesso em 29 set. 2021.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Geral. 16. ed.: Rio de Janeiro: Forense, 2004. 

LOPES JUNIOR, A. Direito Processual Penal – 11. ed. – São Paulo: Saraiva, 2014.

NUCCI, G. de S. Manual de processo penal e execução penal. 4º. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

Sobre o autor
Diego Campos Salgado Braga

Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2005). Atualmente é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás e Professor Universitário. Tem experiência na área criminal, cívil, patrimônio público, proteção da criança e adolescente, idoso e meio ambiente. http://lattes.cnpq.br/2532194296651911

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Diego Campos Salgado. (I)legalidade da prisão do atirador, colecionador ou caçador (CAC). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6669, 4 out. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/93661. Acesso em: 21 nov. 2024.

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