4. Irretroatividade da Lei
Erigida a garantia fundamental, a irretroatividade da lei é outro importante tema que atua no domínio da sanção por improbidade. A se admitir o caráter penal da sanção, estará imunizada de qualquer espécie de incidência nova.
A jurisprudência é firme neste sentido, seguindo o RMS 6182 – STJ:
"I- o Ministério Público Federal ajuizou, com base em dados da CPMI do Orçamento, ação ordinária de improbidade administrativa (lei n. 8.429/92, arts. 12, I, e 9., VIII) contra o impetrante, apontado como integrante da denominada "máfia do orçamento" na câmara dos deputados. dias depois, aforou ação cautelar incidental, instando no seqüestro ‘in limine’ de bens do impetrante "constantes de sua declaração apresentada a Secretaria da Receita Federal". Pediu, mais, nomeação de depósito. O juiz monocrático foi mais longe: decretou o seqüestro dos bens arrolados, bem como seus "respectivos frutos e rendimentos constantes da declaração de renda (bens), pessoa física, exercício (de) 1993, ano-base (de) 1992, ate julgamento final do processo" . O impetrante, não concordando, interpôs agravo de instrumento contra a decisão inquinada de ilegal e abusiva. A seguir, ajuizou mandado de segurança para imprimir efeito suspensivo ao recurso interposto. O Tribunal Regional Federal denegou o "writ". O sucumbente, não se dando por derrotado, recorreu ordinariamente. Sustentou que a lei n. 8.429/89 cuida mesmo de "seqüestro" e não de "arresto", como entendeu o acórdão atacado. Por outro lado, a lei em foco tem natureza penal, não podendo, assim, retroagir . Só os bens adquiridos após sua promulgação e que seriam susceptíveis de medida constritiva. Ademais, a decisão monocrática foi ultra petita, pois o Ministério Público pediu a indisponibilidade de todos os bens, bem como de seus frutos e rendimentos". (destacamos).
E mais, Recurso Especial 196932/SP – STJ, consagra tal orientação, ampliando seus limites para afirmar quer bens adquiridos antes do atos de improbidade não podem ser atingidos:
"Tem o Ministério Público legitimidade para propor ação civil pública visando ao ressarcimento de dano ao erário. A Lei nº 8.429/92, que tem caráter geral, não pode ser aplicada retroativamente para alcançar bens adquiridos antes de sua vigência, e a indisponibilidade dos bens só pode atingir os bens adquiridos após o ato tido como criminoso ". (destacamos)
Conclui-se, assim, pelo transbordamento dos argumentos acima citados, que a lei não retroagirá para prejudicar o réu, somente lhe sendo lícito atingir os fatos futuros.
5. Condenação por Atos de Improbidade Administrativa
A condenação por improbidade é penal ainda quando mesmo proferida em sede de jurisdição civil.
Ressalte-se que as normas penais são aquelas prescritivas de sanções, sejam estas de quaisquer espécies (privativas de liberdade, restritivas de direitos, prestações pecuniárias ou patrimoniais). Ou seja, descrevem uma conduta, e a esta conduta determina a imposição de uma pena ao agente que a comete.
Nesta esteira é brilhante o voto proferido pelo Ministro César Asfor Rocha, seguido pelos Ministros Barros Monteiro, Francisco Peçanha Martins, Vicente Leal, José Delgado, Fernando Gonçalves e Humberto Gomes de Barros, todos do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do HC 22432:
"A Lei nº 8.429/92 prescreve, no seu art. 12, um largo elenco de sanções de sumíssima gravidade, sendo de destacar a perda da função pública e suspensão dos direitos políticos por um lapso de 8 a 10 anos (art. 12, I); a primeira sanção (perda de função pública) é a mais exacerbada do Direito Administrativo Disciplinar e a outra (suspensão dos direitos políticos) é a mais rude exclusão da cidadania.
"A meu ver, a Lei nº 8.429/92 veicula inegáveis efeitos sancionatórios, alguns deles, como a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, somente impingíveis por ato de jurisdição penal, o que faz legítima, ao que entendo, a aplicação da mesma lógica sistêmica que se usa nessa forma jurisdicional especializada (penal), onde não se duvida da plena fruição do foro especial por prerrogativa de função.
"De menor relevo, ao que posso ver, que a Lei nº 8.429/92 denomine de civis as sanções de que cogita, pois a natureza das sanções consistentes na perda da função pública e na suspensão dos direitos políticos, por mais que se diga ao contrário, extrapolam abertamente os domínios do Direito Civil e se situam, também sem dúvida, nos domínios do Direito Penal (sancionatório)" (grifamos)..
Em semelhante posicionamento já se manifestaram os Ministros do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, Ellen Gracie e Gilmar Ferreira Mendes, em seus respectivos votos, no julgamento da ADI – 2797.
Com efeito, afigura-se certo que referida lei, como amplamente defendido em doutrina e jurisprudência, para ser aplicada deve ter a técnica da subsunção do fato tido como típico à hipótese legalmente prevista de forma abstrata (técnica das normas prescritivas).
Esta é a técnica utilizada no Direito Penal. E açambarcada pela lei de improbidade administrativa.
Sobre tal tópico são estas as lições de Zaffaroni e Pierangeli 13:
"a lei penal em sentido estrito é a que associa a uma conduta uma pena: lei penal em sentido amplo é a que abarca todos os preceitos jurídicos que precisam as condições e os limites do funcionamento desta relação".
Posicionamento que é também defendido nas nossas Cortes, valendo mencionar o Recurso Especial 721190/CE sendo relator o eminente Ministro Luiz Fux:
"é uníssona a doutrina no sentido de que, quanto aos aspectos sancionatórios da lei de improbidade, impõe-se exegese idêntica a que se empreende com relação às figuras típicas penais...".
Por questão de bom direito citemos ainda o Recurso Especial número 513576/MG que teve como relator o Ministro Francisco Falcão:
"reconhecida a ocorrência de fato que tipifica improbidade administrativa, cumpre ao juiz aplicar a correspondente sanção".
Fica claro que para haver a devida punição de caráter penal, como se denota das lições expostas, ao agente do ilícito é preciso que haja uma conduta (omissiva ou comissiva), um fato típico (disposto taxativamente na lei), o nexo de causalidade ligando aquela e a este e, por fim, que aja (dolosa ou culposamente) de modo a provocar ofensa ao bem jurídico tutelado (seja provocando resultados danosos, seja a mera conduta de ofender tais bens).
Por tudo, característica eminentemente penal da lei, não se vislumbrando sequer a possibilidade de caracterização semelhante em qualquer outro ramo específico de nosso ordenamento jurídico.
Vale ressaltar que impossível se torna, seja no processo judicialiforme, seja no processo administrativo, a utilização dos denominados "conceitos jurídicos indeterminados" ou "cláusulas gerais", como instrumento definidor de tipos. A imprecisão desses conceitos e a ambigüidade dessas cláusulas impedem que a ação delitiva, no seu núcleo, seja por eles definidas. Insiste-se em dizer, seja no processo judicial, seja no processo administrativo.
Quanto à labilidade de sua aplicação, vale a pena ouvir a lição de Emerson Garcia e de Rogério Pacheco Alves 14:
"Os conceitos indeterminados normalmente se apresentam na imprecisão conceitual lingüística, na incerteza derivada da necessidade de avaliação da situação concreta subjacente à norma, na necessidade de realização de uma ponderação valorativa de interesses ou na exigência de realização de um juízo de prognose".
É bem verdade que o legislador penal, por inúmeras vezes, valeu-se da linguagem imprecisa e ambígua, ensejando juízos valorativos, nos tipos penais, como, por exemplo, "inexperiência", "futilidade", "torpeza", etc.
Induvidosamente, a imprecisão conceitual nunca habita o núcleo da ação delitiva. Ninguém pode ser condenado ou absolvido pela sua "futilidade" ou sua "torpeza", mas, sim, porque matou por motivo fútil ou torpe. A condenação está fincada no verbo "matar", que leva o juízo ao plano concreto, deslocando para o plano cultural apenas a valoração da conduta, que por motivo torpe, quer por motivo fútil.
Se as sanções por improbidade administrativa têm a mesma natureza jurídica das sanções penais, torna-se impossível definir a ilicitude, que a antecede por meio de conceitos jurídicos indeterminados ou por cláusulas gerais. Repita-se, quer o tema seja empostado judicialmente, quer administrativamente.
6. Dolo na Conduta
Outro aspecto de relevo é a necessidade de dolo na conduta.
De acordo com a quase pacífica doutrina, apesar do artigo 10 da lei em análise (que prevê uma forma culposa do ilícito de improbidade administrativa), somente pode ser punido o agente quando atua dolosamente, ou seja, com o intuito deliberado de agir no alcance dos resultados previstos em sua consciência.
Exegese idêntica é feita no Direito penal, senão vejamos:
Código Penal
Art. 18...
Parágrafo único. Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente 15.
Ou seja, somente aquele que age deliberadamente para a conclusão da finalidade da conduta e, com isto, pratica fato típico, é que pode ser punido.
Com isto não se admite a punição a título de culpa, em todos os seus desdobramentos, quais sejam: negligência, imperícia e imprudência. Todavia, como dantes ressalvado, se a lei prever expressamente a punição a título de culpa, plausível será sua averiguação no campo fático. E assim ocorre.
Apenas o do artigo 10, Lei 8.429/92 prevê uma forma culposa de atuação do agente, quando referida atuação cause prejuízo ao erário público.
Entretanto, há defensores da inconstitucionalidade da referida excepcionalidade do art.10 da lei. Alegam que ninguém é desonesto ou atua de má-fé culposamente, por falta de cuidado. Só age assim aquele que dirige sua conduta nesta finalidade. Abarcam o entendimento de que deve ser punido o agente ímprobo, jamais o inábil 16.
Conforme exposto por Lisboa, conquanto alguns propugnam pela declaração da inconstitucionalidade, outros buscam dar máxima eficiência à lei, relatando que onde se lê culpa, que seja esta interpretada por culpa grave ou gravíssima, equiparável ao dolo, ou seja, de todo razoável a feitura de uma interpretação conforme a Constituição para, equiparando a culpa ao dolo, nesse particular, evitar o reconhecimento da inconstitucionalidade do referido dispositivo legal.
Por todo o abordado, estando em consonância as características da Lei de Improbidade Administrativa com as do próprio Código Penal, vemos razões para equivaler as sanções por improbidade às penais.
7. Penas Restritivas de Direitos
Afora as penas de cunho patrimonial, temos que a maioria das sanções adotadas para o ilícito em voga restringem direitos dos cidadãos. Direitos do mais amplo grau de proteção constitucional.
São elas restrições: a) à cidadania, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, exposto no artigo 1º da Constituição Federal de 1988 (com a suspensão dos direitos políticos); b) direitos sociais (trabalho – com a perda da função pública); c) livre concorrência (proibição de contratar com o poder público) e; d) isonomia (vedado o recebimento de incentivos fiscais ou creditícios).
Como visto, atingem determinados bens que comprometem, inclusive, a própria dignidade da pessoa humana e, ante isso, não podem, tais sanções, ficar ao livre alvedrio do direito civil. Atingem bens maiores dos seres humanos, princípios e valores resguardados constitucional e legalmente aos quais não pode ser dado o mero caráter patrimonialista desejado por muitos.
Seguindo esta esteira, remetemos à nossa doutrina para a conceituação das penas restritivas de direitos. Assim, imprescindíveis são as abordagens de René Ariel Dotti 17:
"A natureza jurídica das penas restritivas de direitos, portanto, é a de sanções autônomas, porquanto possível sua aplicação isolada e, ainda, de substitutivas porque nascem da permuta".
Segue, ainda, especificamente acerca da perda da função pública:
"Trata-se de uma sanção que deve ser imposta em circunstâncias especiais atendendo-se à qualificação jurídica e social da lesão" 18.
Nos dizeres de Flávio Augusto Monteiro de Barros 19, as penas restritivas de direitos podem ser definidas como "a sanção imposta em substituição à pena privativa de liberdade, consistente na supressão ou diminuição de um ou mais direitos do condenado".
Averigua-se nítido o caráter das sanções por ato de improbidade administrativa. Quando a Carta Magna menciona que serão tolhidos direitos daqueles que forem condenados revela-nos o seu caráter de pena, da espécie restritiva de direito.
A própria Carta Suprema é expressa ao mencionar, no seu rol, exemplificativo, de direitos e garantias fundamentais, parte tocante ao direito penal, que:
Art. 5º...
XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
b) perda de bens;
c) multa;
d) prestação social alternativa;
e) suspensão ou interdição de direitos.
(grifamos)
Forçoso concluir que as penas previstas para a improbidade administrativa, por restringirem direitos (poderíamos até cogitar do caráter penal da imposição de multa, pois há previsão neste sentido) delineiam o contorno sancionatório-penal do sublime instituto ora em análise.
8. Princípio da Proporcionalidade
No direito penal o agente que comete ilícito deve ser punido proporcionalmente ao fato. Para tanto a lei outorga ao magistrado parâmetros punitivos, isto é, penas máxima e mínima, bem como a plausibilidade de multa em alguns casos (desde que expressamente previsto).
Para tanto o julgador vale-se, fundamentalmente, da culpabilidade do agente e demais circunstâncias judiciais, além das eventuais existências de causas agravantes/atenuantes e de aumento/diminuição da pena.
Exegese idêntica vem sendo admitida em nossos tribunais, sob o nome de proporcionalidade.
Assim é que, apesar da lei apontar todas as sanções, não necessariamente elas deverão ser aplicadas concomitantemente. Ou seja, poderá o julgador aplicar somente uma, ou algumas delas, pautando, conquanto, na culpabilidade do agente.
Trazemos à colação alguns julgados para ilustramos essa abordagem.
Recurso Especial nº 513576/MG, cujo relator foi o Ministro Francisco Falcão:
"Reconhecida a ocorrência de fato que tipifica improbidade administrativa, cumpre ao juiz aplicar a correspondente sanção. Para tal efeito, não está obrigado a aplicar cumulativamente todas as penas previstas no art. 12. da Lei 8.429/92, podendo, mediante adequada fundamentação, fixá-las e dosá-las segundo a natureza, a gravidade e as conseqüências da infração, individualizando-as, se for o caso, sob os princípios de direito penal. O que não se compatibiliza com o direito é simplesmente dispensar a aplicação da pena em caso de reconhecida ocorrência da infração".
Ainda, há o Recurso Especial nº 505068, de relato do Ministro Luiz Fux, cuja ementa e acórdão parcial são nos seguintes termos:
"ADMINISTRATIVO. LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. DISCRICIONARIEDADE DO JULGADOR NA APLICAÇÃO DAS PENALIDADES. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA Nº 07/STJ.
As sanções do art. 12, da Lei nº 8.429/92 não são necessariamente cumulativas, cabendo ao magistrado a sua dosimetria; alias, como deixa claro o Parágrafo Único do mesmo dispositivo. No campo sancionatório, a interpretação deve conduzir à dosimetria relacionada à exemplariedade e à correlação da sanção, critérios que compõem a razoabilidade da punição, sempre prestigiada pela jurisprudência do E. STJ".
No mesmo sentido ainda o Recurso Especial nº 794.155-SP, sendo relator Ministro Castro Meira e Recurso Especial nº 300.184-SP.
Há mesmo quem sustente, inclusive, a atipicidade do fato tendo em vista a pequena potencialidade ofensiva do ato ímprobo. Exemplificando o caso em nossa jurisprudência é de bom tom trazer parte do acórdão proferido no julgamento do Recurso Especial de número 714935/PR, cujo relator foi o Ministro Castro Meira:
"In casu, face a inexistência de lesividade ao erário público, bem como pela natureza de ‘pequeno potencial ofensivo’ do ato impugnado, incabível a incidência de qualquer das penalidades descritas no art. 12, inciso III, da Lei de Improbidade Administrativa".
Portanto, contornos essencialmente penais foram dados à lei em voga, não restando, a nós, menor dúvida quanto a está característica, mas adentramos ainda em outros aspectos a seguir.