CONCLUSÃO
É cristalina a relevância do conhecimento tradicional associado à biodiversidade, importante instrumento de conservação da natureza e incremento de espécies e ecossistemas, os quais, em grande parte, derivam da interação milenar com populações humanas, descartando-se o dogma conservador de que a ação antropogênica é necessariamente prejudicial.
O valor desse conhecimento se eleva quando se verifica que ele constitui importante insumo para as indústrias de cosméticos, remédios, agrotóxicos e sementes, que se utilizam do conhecimento secular detido pelas comunidades indígenas e locais sobre as propriedades de plantas e animais e sobre a biodiversidade em geral para a prevenção e cura de doenças, para o tratamento embelezador, para o desenvolvimento de técnicas de agricultura, caça e pesca, para a alimentação e rituais sagrados e encontram substâncias e desenvolvem processos potencialmente lucrativos sem o emprego de muito esforço criativo e sem a necessidade de se dispender altas quantias monetárias.
Por tudo isso, e ante a ausência de um sistema jurídico eficaz de proteção a esses conhecimentos tradicionais, cresce vertiginosamente os casos de pirataria, a qual ocorre quando o acesso às práticas, usos e inovações das comunidades indígenas e locais é ilegal e não observa os mecanismos do consentimento prévio fundamentado e da repartição de benefícios, bem como quando estes últimos são atendidos, mas se obtêm uma patente sobre o processo ou produto desenvolvido a partir dessas informações tradicionais.
Foi amplamente demonstrado que o sistema jurídico de reconhecimento de direitos de propriedade intelectual é insuficiente para albergar conhecimento tradicional, que pela sua própria natureza, dificilmente preenche os três requisitos para se obter uma patente, quais sejam, novidade, passo inventivo e aplicação industrial.
O conhecimento tradicional é construído sobre uma estrutura coletiva, onde se estimula o compartilhamento e a difusão de informações, base da criatividade dos povos detentores, os quais transmitem seus saberes oralmente para gerações indefinidas.
Não obstante esta evidente incompatibilidade, infere-se dos debates internacionais a tentativa de se instituir mecanismos como a demonstração da origem do conhecimento tradicional para se aferir se houve o consentimento prévio fundamentado e a repartição de benefícios, o que autorizaria a concessão de uma patente.
Ocorre que, ainda que haja o respeito a esses princípios estatuídos pela CDB, que se reportam ao assentimento das comunidades e à sua participação nos benefícios da utilização do conhecimento tradicional, não se coaduna com este último, diretrizes como a apropriação individual, exclusiva e limitada no tempo.
O Direito deve se atualizar e se desvincular de concepções reducionistas, acompanhando a dinâmica inovadora, social, cultural, ambiental e política em que atuam os povos indígenas e as comunidades locais e desenvolvendo novos institutos que sejam mais do que novas roupagens para mecanismos já existentes, mas que evoluam e garantam o necessário equilíbrio entre esses povos tradicionais e a sociedade envolvente.
É promissora a proposta de um regime jurídico sui generis, que incorpore os fatores culturais desses povos e admita a existência da pluralidade étnica, do elemento místico, da difusão de informações no espaço e no tempo, do valor intrínseco da biodiversidade intimamente ligada à sociodiversidade, e que simultaneamente repudie o monopólio e tudo aquilo que represente limitação às práticas, inovações e usos dessas sociedades multifacetadas.
Apenas com a admissão dessas características, quando o elemento social sobrepor-se ao fator meramente econômico e quando se tiver um propósito de se criar um regime elástico que acomode todas as peculiaridades envolvendo os povos indígenas e as comunidades locais é que se concretizará um regime jurídico de proteção verdadeiramente eficaz.
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