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Uma abordagem sobre o regime de proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

Patentes x regime "sui generis"

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11/01/2007 às 00:00
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4 A PROTEÇÃO DO CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO À BIODIVERSIDADE POR UM REGIME SUI GENERIS

Atentos ao fato de que o direito de patentes é insuficiente para tutelar os conhecimentos tradicionais, porque exclui a participação das comunidades detentoras e apenas reconhece como conhecimento científico o conhecimento ocidental, elaborado em laboratório, alguns renomados militantes na área sustentam a adoção de um regime sui generis, que proteja os direitos intelectuais coletivos das comunidades guardiãs.

Aqui, não se fala mais em direitos de propriedade intelectual, e sim em direitos intelectuais coletivos.

Intelectual porque a criatividade das comunidades indígenas e locais contribui para a própria existência material dos recursos biológicos. Tem-se uma relação vinculada entre o componente tangível (territórios e recursos naturais) e o componente intangível (saberes das comunidades), em que aquele depende para sua sobrevivência da conservação do sistema cultural que assegura uma existência sustentável.

Por outro lado, o termo propriedade é extirpado do contexto de elaboração de um sistema efetivo de proteção, na medida em que o domínio exclusivo é uma realidade desconhecida das comunidades tradicionais, que convivem em um ambiente coletivo e que será transmitido para as futuras gerações. Território, conhecimento e inovação são indissociáveis, o que deixa evidente que a noção de propriedade intelectual não é suficientemente capaz de acompanhar as inovações coletivas amplamente compartilhadas responsáveis pela evolução da conservação da diversidade biológica.

A proposta, pioneiramente defendida por Vandana Shiva, da Índia, Tewolde Egziabher, da Etiópia, e Gurdial Singh Nijar, da Malásia, pretende eliminar o monopólio e propriedade exclusivos sobre os conhecimentos tradicionais, criando um sistema que reflita os valores das comunidades e a maneira como elas se relacionam com a biodiversidade.

O Community Intellectual Rights Act, proposta de lei da Malásia elaborada pela rede de organizações não-governamentais Third World Network, coordenada por um dos maiores especialistas no assunto, Gurdial Singh Nijar, apresenta como premissas para a estruturação do mencionado sistema: a atribuição da condição de guardiãs às comunidades por suas inovações; a eliminação de direitos exclusivos de monopólio; o livre intercâmbio e a transmissão de informações entre as comunidades; o reconhecimento da cultura e das práticas das comunidades detentoras; o consentimento das comunidades sobre o uso de seus conhecimentos; o pagamento às comunidades guardiãs de uma quantia sobre os lucros gerados com a utilização do conhecimento; e a inversão do ônus da prova em favor das comunidades indígenas e locais quanto à titularidade do conhecimento.

Esses elementos formarão a base de um regime sólido e justo, desde que se alicercem em alguns pressupostos fundamentais.

Antes de mais nada, é importante ter em mente que os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, como o próprio nome traduz, são indissociáveis do componente tangível.

Se não for propiciada proteção aos territórios onde tais populações vivem e assentam sua cultura e aos recursos naturais neles existentes não será possível proteger os conhecimentos tradicionais, pois sequer terão vida, já que não haverá espaço e material para que as práticas indígenas e de comunidades locais sejam aplicadas.

Outro fator essencial à construção de um regime de proteção é o reconhecimento do valor intrínseco dos conhecimentos gerados no seio das comunidades indígenas e locais.

O preparo de uma pomada, a descoberta de uma propriedade medicinal de uma planta, o desenvolvimento de uma técnica de manejo, por exemplo, não surgem visando sua inserção no mercado e comercialização, mas muito mais que um valor econômico, possuem um valor cultural e simbólico, que a tempo e hora serão repassados para que as gerações futuras os preservem e apliquem diretamente no seu cotidiano.

Vale ressaltar que em 2001, a proposta sugerida sobre a criação de um sistema próprio de proteção dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade foi trazida para o Brasil, nas discussões realizadas pelos índios e suas organizações, culminando na elaboração de um documento intitulado Carta de São Luís do Maranhão, fruto do seminário denominado A Sabedoria e a Ciência do Índio e a Propriedade Industrial, realizado pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

A Carta declara que o conhecimento é coletivo e não é uma mercadoria que se pode comercializar como qualquer objeto no mercado, estando intimamente ligado à identidade, leis, instituições, sistemas de valores e visão cosmológica dos povos indígenas.

No mesmo sentido, foi editado o Decreto n.º 4.339, de 22/08/2002, que institui princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional de Biodiversidade, e inclui, entre os seus objetivos específicos, o "estabelecimento e a implementação de um regime legal sui generis de proteção a direitos intelectuais coletivos relativos à biodiversidade de povos indígenas, quilombolas e outras comunidades locais, com a ampla participação destas comunidades e povos".

Para a edificação desse regime sui generis, alguns elementos são cruciais, os quais serão esboçados em linhas gerais a seguir:

4.1 TITULARIDADE COLETIVA DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVERSIDADE E PERMISSÃO DO LIVRE INTERCÂMBIO DE INFORMAÇÕES

O ponto fundamental de um regime jurídico sui generis é o reconhecimento das comunidades indígenas e locais como sujeitos coletivos dos direitos intelectuais sobre seus conhecimentos, práticas e inovações.

À amplitude do termo direito intelectual coletivo deve se dar a máxima extensão para abarcar não só aqueles conhecimentos pertencentes a uma dada comunidade como também aqueles conhecimentos de titularidade de vários povos, os quais, muitas vezes, podem inclusive morar em países diferentes. Tal situação se dá porque muitos povos da mesma etnia ou descendentes de uma mesma comunidade podem habitar regiões e países diferentes e porque pode ocorrer a hipótese de o conhecimento ser gerado sobre um recurso natural cuja área de incidência pode variar, estando presente em vários territórios e sendo pertencente a várias comunidades diferentes.

O parágrafo único do artigo 9º da Medida Provisória 2.186-16 admite essa titularidade coletiva ao estatuir que qualquer conhecimento tradicional associado será pertencente à toda comunidade, ainda que apenas um indivíduo detenha esse conhecimento.

Reconhecer essa titularidade coletiva significa, outrossim, consentir com o livre intercâmbio e difusão de informações, tradição de muitas comunidades.

Em decorrência disso, seriam nulas e não produziriam efeitos jurídicos as patentes e outros direitos de propriedade intelectual sobre processos ou produtos resultantes da utilização de conhecimentos de comunidades indígenas ou locais, por importarem em monopólio indevido de algo essencialmente coletivo.

Diga-se de passagem que a proibição da utilização do sistema patentário não impede que as comunidades detentoras possam negociar seus saberes tradicionais. Poderão optar por transacionar seus conhecimentos, desde que não fiquem estipulados direitos exclusivos sobre eles. A qualquer tempo poderão as comunidades negociar com outros interessados, pois o monopólio é característica que não se coaduna com o regime sui generis.

A partir daí surge a dúvida sobre com quem negociar um conhecimento tradicional, ou quem dará o consentimento prévio para o seu acesso.

4.2 RECONHECIMENTO DO PLURALISMO JURÍDICO

O respeito ao direito costumeiro, aos sistemas de representação e à forma de organização social dos povos indígenas e locais é outro pilar da construção do regime sui generis de proteção.

Se não for reconhecido que existem várias ordens jurídicas, umas sobrepostas sobre as outras, e não um Direito estatal único, o sistema será extremamente prejudicial aos povos indígenas e locais que se regem por um direito costumeiro próprio, o qual reflete sua cultura, tradição e seus anseios.

Nesta esteira, urge reconhecer as formas de representação e negociação de cada comunidade. Há casos em que prevalece a autoridade do membro mais velho da comunidade, ou do cacique ou chefe, que pode chegar ao posto de comando por ser o melhor guerreiro, por ter mais experiência, por ter maiores habilidades etc., ou a direção da comunidade cabe a um grupo de mulheres.

Enfim, o direito costumeiro e todas as formas de representação devem ser aceitos pelos interessados em acessar os conhecimentos tradicionais associados, havendo sempre que possível na negociação a presença de antropólogos e outros estudiosos que poderão auxiliar no entendimento entre as partes.

4.3 ATRIBUIÇÃO ÀS POPULAÇÕES INDÍGENAS E LOCAIS DE DIREITOS DE NATUREZA MORAL E PATRIMONIAL

Os direitos morais constituem o vínculo entre os povos indígenas e locais e suas práticas, inovações e conhecimentos. Tais direitos permitem que os povos detentores tenham sempre reconhecido um conhecimento como de sua titularidade e garantem, ainda, o controle sobre o seu destino e utilização, com todas as conseqüências daí derivadas.

Estes direitos morais são inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis. Assim, mesmo que um dado conhecimento tradicional tenha sido negociado, a título gratuito ou oneroso, e esteja sendo utilizado por terceiros, o direito moral não resta prejudicado e continua pertencente àquela comunidade detentora, que tem o pleno direito de exercê-lo a qualquer tempo, tendo em vista a natureza difusa do conhecimento tradicional que se espraia no espaço, sendo compartilhado por vários povos, e se perpetua no tempo, sendo transmitido a várias gerações.

Os detentores de conhecimentos tradicionais ainda possuem direitos patrimoniais sobre estes últimos, que se traduzem na possibilidade de autorização da sua utilização por terceiros.

Ou seja, não obstante não sejam os conhecimentos tradicionais patenteáveis, nada impede que possam ser negociados. Ocorre que não haverá exclusividade na utilização dos processos e produtos obtidos através dos saberes tradicionais, que a qualquer tempo poderão ser negociados com outros interessados, pois não sairão da esfera de titularidade das comunidades indígenas e locais devido ao seu caráter intergeracional.

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4.4 CONSENTIMENTO PRÉVIO FUNDAMENTADO

É essencial para que se construa um regime de proteção adequado aos povos indígenas e comunidades locais que estes estejam envolvidos e participem da defesa de seus direitos intelectuais sobre seus conhecimentos, práticas e inovações. Seria um contra-senso tirar do seu âmbito de disponibilidade o poder de decidir sobre o destino de seus conhecimentos.

Assim, surge o consentimento prévio fundamentado no contexto da Convenção sobre Diversidade Biológica, um mecanismo de consulta às populações detentoras sobre o acesso aos seus conhecimentos tradicionais.

O artigo 15 (5) da CDB estabelece que "o acesso aos recursos genéticos deve estar sujeito ao consentimento prévio fundamentado da Parte Contratante provedora desses recursos, a menos que de outra forma determinado por essa Parte". Embora a dita regra não aborde especificamente as comunidades indígenas e locais, uma leitura do artigo 8 (j) demonstra que o instituto do consentimento prévio fundamentado a elas deve ser aplicado, na medida em que incentiva a ampla aplicação dos conhecimentos, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com sua aprovação e participação.

Consentimento, porque os povos detentores de conhecimentos devem estar de acordo com o seu acesso e/ou utilização para pesquisas científicas ou comerciais. Sem esta concordância é caso típico de pirataria, ou seja, apropriação indébita. Dentro deste consentimento deve-se incluir o direito dos povos detentores de negarem o acesso aos conhecimentos tradicionais, quando entenderem que a atividade traz riscos ambientais, culturais ou econômicos à comunidade, ou quando não sentirem que os benefícios serão satisfatórios.

Fundamentado, porque todas as partes devem estar cientes dos fatores envolvidos no acesso, isto quer dizer que os povos detentores devem ser esclarecidos sobre os riscos e benefícios do acesso, bem como de seu intento, entre outros aspectos, e os interessados na utilização dos conhecimentos devem tomar conhecimento das práticas culturais dos povos detentores, a saber, sua forma de organização política, seus representantes, suas tradições.

A dificuldade porventura existente em relação ao mecanismo ora tratado seria a identificação do titular da competência para dar o consentimento prévio informado, uma vez que as formas de representação variam de uma comunidade para outra e em razão de muitas comunidades possuírem o mesmo conhecimento.

Uma saída para o impasse é estudar de forma detalhada a organização política da comunidade para descobrir a quem cabe falar em nome da coletividade e verificar se todos os indivíduos foram informados sobre o pretendido acesso aos conhecimentos, uma vez que qualquer negociação levada a efeito só pode se regrar pelas normas internas da comunidade. No caso do conhecimento ser do domínio de várias comunidades, o ideal seria que todas as comunidades fossem identificadas para que houvesse legítimo consentimento para o acesso e justa repartição de benefícios. Levanta-se a hipótese de constituição de uma agência nacional que intermediaria a negociação identificando e abordando o maior número possível de comunidades detentoras daquele conhecimento. O Estado pode participar deste processo, assegurando que o consentimento de povos indígenas e comunidades locais seja livre e consciente.

4.5 REPARTIÇÃO JUSTA E EQÜITATIVA DE BENEFÍCIOS.

A repartição justa e eqüitativa de benefícios é um dos objetivos da Convenção sobre Diversidade Biológica.

Trata-se da possibilidade das comunidades detentoras de conhecimentos tradicionais participarem dos resultados da pesquisa, que poderá derivar em perspectiva de uso comercial. Porém, mesmo que não se realize a comercialização do produto ou processo desenvolvido, as comunidades detentoras que concederam seus conhecimentos, ainda assim, farão jus à participação de benefícios, os quais não são necessariamente econômicos, podendo consistir em informação útil à comunidade sobre o resultado da pesquisa, por exemplo.

Caso seja possível identificar qual a comunidade detentora do conhecimento tradicional a ser acessado, a negociação se reportará diretamente a esta comunidade.

Ocorre que nem sempre é possível precisar qual comunidade deverá participar da repartição de benefícios, em virtude da natureza difusa da titularidade dos conhecimentos tradicionais.

Nesta última hipótese, do conhecimento ser compartilhado por vários povos, estuda-se a conveniência da instituição de fundos de repartição de benefícios, que arrecadariam os recursos e os aplicariam em projetos destinados a conservação da diversidade biológica nos territórios ocupados pelas populações indígenas e locais, bem como em projetos destinados ao incremento dos aspectos econômicos, culturais e sociais dos povos detentores daquele conhecimento tradicional acessado.

4.6 BANCOS DE DADOS DE CONHECIMENTO TRADICIONAL.

Um instrumento que ainda se discute sua viabilidade é o registro dos conhecimentos tradicionais em bancos de dados, sendo inclusive citado no artigo 8º, parágrafo 2º da Medida Provisória n.º 2.186-16/2001.

Seria um registro gratuito, facultativo e meramente declaratório, não sendo condição para o exercício dos direitos intelectuais sobre os conhecimentos tradicionais.

Tais bancos de dados poderiam evitar a concessão de patentes inapropriadas, pois ajudariam no exame da novidade e atividade inventiva. Porém, o alcance dos referidos bancos de dados não seria tão satisfatório, tendo em vista que a forma como o conhecimento estivesse descrito no registro nem sempre seria capaz de constituir um conhecimento prévio que anulasse a novidade, já que para muitos escritórios de patentes a descrição do conhecimento deve ser capacitadora, ou seja, formulada em termos técnicos. Se, porventura, um antropólogo sem conhecimento de química viesse a descrever um conhecimento, provavelmente o examinador não tomaria aquele conhecimento tradicional como apto a revogar uma patente.

Outro ponto relevante é a possibilidade do banco de dados se tornar acessível ao público. Neste caso, a pirataria seria facilitada, já que o simples acesso aos registros dispensaria o acesso aos conhecimentos por meio das comunidades e consequentemente não haveria o consentimento prévio fundamentado e a repartição de benefícios.

Tal banco de dados poderia ser útil quando da necessidade de se identificar as comunidades detentoras de um determinado conhecimento tradicional que seja compartilhado e que se pretenda acessar. Neste caso, a identificação é necessária para se obter o consentimento prévio fundamentado e promover equitativamente a repartição de benefícios entre todas as comunidades co-detentoras.

Assim, deve-se ter cautelas na instituição dos bancos de dados para que eles não atuem de forma contrária aos interesses dos povos detentores de conhecimento tradicional associado. De qualquer forma, eles deverão sempre ter natureza declaratória de modo que o exercício dos direitos intelectuais sobre o conhecimento não dependa de prévio registro.

Enfim, estes são os principais elementos para a edificação de um regime sui generis de tutela aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, cujo espectro deve ser amplo e alcançar todas as peculiaridades inerentes às comunidades indígenas e locais para que seja verdadeiramente protetor e reconhecedor desses saberes coletivos.

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Sobre a autora
Ynna Breves Maia

advogada em Manaus (AM), pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro Integrado de Educação Superior do Amazonas (CIESA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIA, Ynna Breves. Uma abordagem sobre o regime de proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.: Patentes x regime "sui generis". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1289, 11 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9377. Acesso em: 4 mai. 2024.

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