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Uma abordagem sobre o regime de proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

Patentes x regime "sui generis"

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11/01/2007 às 00:00
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3 A INEFICÁCIA DO SISTEMA DE PATENTES PARA A PROTEÇÃO DO CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO À BIODIVERSIDADE

É importante esclarecer, de início, onde se situa o sistema de patentes, no intuito de que a sua abordagem em relação ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade seja mais clara e precisa e com o escopo de que não haja confusões com outros sistemas de proteção e com a terminologia utilizada.

A propriedade intelectual é o gênero, que diz respeito a toda propriedade que seja produto da inteligência humana, do qual são espécies a propriedade artística, científica e literária (direitos autorais, do autor em relação à sua obra), a propriedade intelectual referente a cultivares (direitos de melhoristas), e a propriedade industrial (direitos do inventor em relação à sua criação, que abrange as patentes, as marcas, os desenhos industriais, as indicações geográficas e a concorrência desleal).

Assim, a patente é um instrumento que protege os direitos de propriedade industrial de um indivíduo, ou seja, os direitos do inventor sobre sua criação nova, com utilidade industrial e com passo inventivo. Em última análise, a patente é um mecanismo de proteção dos direitos de propriedade intelectual sobre um bem.

Em síntese, patente, nos termos da lei brasileira, é o título de privilégio concedido ao inventor de algo novo e com utilidade industrial, que lhe garante o uso exclusivo por período determinado sobre o que foi criado (invenção) ou aperfeiçoado (modelo de utilidade).

Concede-se a patente de invenção, direito exclusivo de explorar o bem por prazo determinado, àquele solicitante que demonstrar que o produto ou processo apresentado é novo, possui atividade inventiva e é passível de aplicação industrial.

Nos Estados Unidos, as invenções devem ser novas, úteis e não óbvias para serem patenteadas. Na Europa, assim como no Brasil, além de novidade, exige-se aplicação industrial e passo inventivo. De qualquer forma, a novidade é uma condição universal.

Justifica-se a implantação do mencionado sistema como necessidade de proteção para incentivar a atividade inventiva, compensar os gastos investidos pelo inventor, reconhecer o direito do inventor sobre a criação e reconhecer a utilidade da invenção.

Ocorre que os países em desenvolvimento tendem a discordar deste entendimento, argumentando que os direitos de propriedade intelectual acabam excluindo-os do acesso a tecnologias de baixo custo, gerando em contrapartida lucros exorbitantes para quem detém o monopólio.

Tais direitos seriam mais uma proteção do investimento do capital do que um reconhecimento da criatividade, o que levaria, inevitavelmente, a uma apropriação monopolizada do conhecimento e dos produtos e processos dele derivados, com o intuito de auferir lucro mediante sua exploração.

Os conhecimentos tradicionais, diversamente, reconhecem o valor intrínseco da biodiversidade e desenvolvem-se mediante uma parceria com a natureza.

Como assevera Wandscheer (2004, p. 57),

A relação da patente com a finalidade econômica e de comercialização é grande. Isso faz com que os conhecimentos dos povos indígenas e das populações tradicionais encontrem restrições, por apresentarem aplicação diversa da lógica de maximização de capital e movimentação no mercado mundial.

Não bastasse a própria razão de ser do sistema de patentes não justificar a inclusão dos conhecimentos tradicionais no seu âmbito de proteção, em outros aspectos observa-se o descompasso entre este instituto e o objeto que ora se pretende tutelar.

Para a concessão do privilégio da patente a uma invenção, analisando sob a ótica da lei de propriedade industrial brasileira, é necessário o atendimento de três requisitos, quais sejam, novidade, atividade inventiva e aplicação industrial, nos termos do artigo 8º da Lei 9.279/96. Tais critérios dificilmente são observados pelos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

Segundo artigo 11 da Lei, a invenção é considerada nova quando não compreendida no estado da técnica, que nada mais é do que tudo aquilo que tenha se tornado acessível ao público antes da data de depósito do pedido de patente, por descrição escrita ou oral, por uso ou qualquer outro meio, no Brasil ou no exterior (artigo 11, parágrafo 1º, da Lei).

O conhecimento tradicional, a seu turno, como seu nome indica, não é necessariamente novo. Pode até sê-lo, mas em geral é ancestral e transmitido oralmente de geração em geração, não sendo a novidade o seu marco distintivo, mas sim o critério cultural.

Vale ressaltar que a novidade é um termo cuja aferição varia de legislação para legislação, sendo em muitos casos interpretado de forma extremamente desfavorável aos conhecimentos tradicionais. Em alguns países, as invenções não podem ser patenteadas se o conhecimento prévio, uso ou publicação existir em qualquer lugar do mundo. Em outras jurisdições, só o uso ou conhecimento estrangeiro não publicado não constituem critério anulador da novidade, logo, se o conhecimento tradicional não estiver documentado, e normalmente não está, pela sua própria natureza de transmissão oral, ele não será considerado como suficiente para anular uma patente de produto ou processo obtido a partir dele.

Este último procedimento é o utilizado pelo Escritório de Marcas e Patentes dos Estados Unidos, que, ao conceder patentes tomando-se por base referências nacionais considera estado da técnica o simples conhecimento ou utilização da invenção por terceiros, mas em relação a referenciais alienígenas, não entende como estado da técnica o conhecimento não documentado.

No Japão, exige-se que a divulgação anuladora da novidade deva ser aquela capaz de ensinar alguém a chegar a uma invenção. Assim, muitas patentes concedidas sobre produtos ou processos obtidos a partir de conhecimentos tradicionais associados são consideradas válidas porque estes normalmente não são divulgados em termos técnicos ou químicos, o que é considerado insuficiente para direcionar a atividade inventiva. Logo, mesmo que tais conhecimentos tenham servido como atalho para que um pesquisador ou uma empresa desenvolvessem um bem, eles não seriam tidos como aptos a anular a novidade e, consequentemente, seriam transformados em propriedade privada e exclusiva do solicitante da patente.

A Convenção sobre a Concessão de Patentes Européias, em seu artigo 54, considera que uma invenção é nova se "não fizer parte do estado da técnica", o qual "é constituído por tudo o que foi tornado acessível ao público antes da data do depósito do pedido de patente européia por uma descrição escrita ou oral, utilização ou qualquer outro meio".

Neste passo, é importante dizer que não é necessário que um produto ou processo seja obtido através de processo químico para que seja tomado como parte do estado da técnica. É claro que em algumas jurisdições uma simples modificação, sintetização ou purificação de uma substância são suficientes para convencer o escritório de patentes a conceder o monopólio sobre o produto ou processo, ou simplesmente o fato de ser o primeiro a descrever a suposta invenção na linguagem química já é o bastante para a obtenção da patente. Ocorre que para muitas populações locais e indígenas novidade alguma há em muitos produtos e processos patenteados, que em vários casos, há séculos são utilizados por essas populações.

O segundo requisito exigido para o patenteamento é a atividade inventiva, presente sempre quando não decorrer de maneira evidente ou óbvia do estado da técnica para um especialista no assunto (artigo 13 de Lei 9.279/96).

O conhecimento tradicional, por sua vez, normalmente está ligado a informações sobre processos e produtos naturais e no modo como eles são adquiridos, usados e repassados, o que já basta para afastar o requisito da atividade criativa humana, necessário para o patenteamento.

Muito provavelmente, os conhecimentos tradicionais se encaixariam no que a lei de propriedade industrial chama de descoberta e exclui da via do patenteamento (artigo 10, I, Lei 9.279/96). São conhecimentos que consistem na determinação de eventos existentes no mundo material, mas até então desconhecidos e que provocam mudanças no conjunto de informações atuais, ou que dizem respeito a métodos e técnicas de manejo, fabricação e etc.

Entretanto, é importante reconhecer que mesmo quando se trate de descobertas, não se pode ignorar o esforço intelectual destas populações, as quais, para desenvolverem um conhecimento tradicional, não prescindem de um procedimento de investigação, estudo, observação, análise e conclusão.

Além disso, não se pode deixar de considerar que muitos processos desenvolvidos por povos indígenas e comunidades locais podem ser tidos como invenção.

Por fim, o terceiro requisito, diz respeito à aplicação industrial. O produto ou processo patenteado deve ser apto a ser utilizado em qualquer ramo da atividade industrial ou da escala de produção (artigo 15 da Lei de Propriedade Industrial). Isto quer dizer que o bem para ser patenteado deve ter uso prático e ser suscetível de aplicação industrial.

Ocorre que muitos conhecimentos tradicionais não têm aplicação industrial direta, ainda que possam servir de base para o desenvolvimento de produtos e processos passíveis de aplicação na indústria.

Tais conhecimentos, normalmente, são aplicados diretamente na vida das comunidades detentoras, numa perspectiva alheia à maximização do capital e do lucro, e com vistas à sua própria sobrevivência. É comum que sejam os mesmos utilizados em rituais e cultos, face o simbolismo que possuem, ou que sejam aplicados diariamente no manejo da biodiversidade, na caça, pesca, alimentação e etc.

Além da visível incompatibilidade entre os requisitos exigidos para a concessão de patentes e os conhecimentos tradicionais, esses em outros aspectos não se coadunam com a lei de propriedade industrial, seja pela lógica em que se apóiam, conforme já demonstrado, seja também no que tange à autoria reconhecida pela lei de patentes, como no que se refere aos prazos fixados pela mesma lei.

O artigo 6º da lei garante ao autor de uma invenção o direito de obtenção da patente, garantindo-lhe a propriedade exclusiva sobre o bem patenteado se preenchidas as condições legais.

Já o parágrafo 2º do mesmo artigo permite que a patente seja requerida em nome próprio, pelos herdeiros ou sucessores do autor, pelo cessionário ou por aquele a quem a lei ou o contrato de trabalho ou de prestação de serviços determinar que pertença a titularidade.

Tem-se, à primeira vista, que tal direito de propriedade industrial é essencialmente individual, concedido em termos bem restritos apenas a quem comprove a titularidade sobre a criação ou no máximo aos herdeiros e sucessores do inventor, sem pretensões de ir além.

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Fora desta regra está o conhecimento tradicional associado, o qual é produzido e gerado de forma coletiva.

A Lei de Propriedade Industrial, no parágrafo 3º do artigo 6º, até admite a titularidade coletiva de uma patente, quando se tratar de invenção realizada conjuntamente por duas ou mais pessoas, mediante nomeação e qualificação das pessoas envolvidas no invento, para fins de ressalvar os respectivos direitos.

Ocorre que o coletivo a que se refere a lei diz respeito a sujeitos individuais que podem ser identificados. O conhecimento tradicional é detido pelas comunidades a partir de sua coletividade, que não pode ser fragmentada, sob pena de desnaturá-las. Logo, a lei de propriedade industrial não é suficiente para tutelar os conhecimentos tradicionais, fruto de atitude coletiva e de um aprimoramento da relação com a biodiversidade que vem sendo construído há várias gerações.

O prazo fixado pela lei para a vigência da patente é outra questão inaplicável aos conhecimentos tradicionais.

Reza o artigo 40 e seu parágrafo único que a patente de invenção vigorará pelo prazo de vinte anos contados a partir da data do depósito, prazo este que não poderá ser inferior a dez anos a partir da data da concessão, ressalvada a hipótese de o Instituto Nacional de Propriedade Industrial estar impossibilitado de proceder ao exame de mérito do pedido por pendência judicial ou por motivo de força maior.

Ou seja, o privilégio da patente obtido sobre produto ou processo criado é limitado no tempo. O inventor terá um prazo predeterminado na lei para gozar do benefício de explorar exclusivamente seu invento, lapso que, após expirado, fará com que o bem patenteado se projete no domínio público, podendo qualquer um utilizá-lo e explorá-lo sem que o detentor da patente possa se opor.

Dificilmente se terá notícia de quando determinado conhecimento tradicional surgiu. Embora tal conhecimento possa ser novo, pois a expressão tradicional não se refere à sua antiguidade, mas à forma como é gerado e transmitido, em geral ele vem sendo construído há várias gerações e é fruto do aprimoramento da convivência com a biodiversidade.

Nesse diapasão, os direitos de propriedade intelectual acabam não exercendo a função de proteção aos conhecimentos tradicionais associados, pois se baseiam numa concepção individualista e monopolista, excluindo, assim, todo conhecimento que é fruto da troca de idéias e do compartilhamento de experiências.

É oportuno dizer que em decorrência da não proteção exercida pelas patentes aos conhecimentos tradicionais, tornam-se comuns os casos de pirataria, consumados tanto quando há a usurpação das comunidades detentoras, como quando estas aprovam a utilização de seus conhecimentos.

A primeira situação se observa em virtude da facilidade que se tem para obter uma patente, o que provoca a apropriação indébita de muitos conhecimentos tradicionais. O volume de pedidos é tão grande que o exame da solicitação não é tão meticuloso quanto deveria ser.

Como para algumas leis os termos novidade e atividade inventiva são interpretados equivocadamente, bastando para que tais requisitos sejam constatados em um produto ou processo, que não tenham estes últimos sido documentados ou que se tenha aplicado para se chegar a eles um método em laboratório que apenas os descrevam em termos químicos ou que os isolem do meio natural, muitas patentes são concedidas indevidamente sobre "invenções", que nada mais são do que reformulações do conhecimento tradicional já existente.

A segunda situação ocorre quando o acesso ao conhecimento tradicional e seu patenteamento observa as normas da Convenção sobre a Diversidade Biológica, verificando-se o consentimento prévio fundamentado das comunidades e a assinatura de um contrato prevendo repartição de benefícios com a comercialização do produto ou processo. Ainda que se estejam respeitando preceitos fundamentais da CDB, o patenteamento não deixa de ser uma forma de pirataria.

Como exaustivamente visto, os conhecimentos tradicionais não preenchem os requisitos exigidos para se conceder uma patente, logo, ainda que as comunidades indígenas e locais concordem com o uso de seus conhecimentos e sejam recompensadas pela sua exploração, haveria a apropriação privada e exclusiva de bens que não são novos e que não traduzem passo inventivo, mas que são essencialmente coletivos e ancestrais.

Ademais, muitas comunidades ficariam excluídas do processo, mesmo compartilhando do mesmo conhecimento, simplesmente porque não firmaram contrato com o interessado no patenteamento, ou até mesmo porque outra comunidade o patenteou em primeiro lugar, o que fere a lógica da possibilidade do intercâmbio de informações.

Diante disso, discute-se a adoção do conceito de direitos intelectuais coletivos e a criação de um regime legal sui generis de proteção aos conhecimentos tradicionais coletivos, tendo em vista a inadequação do sistema de patentes atualmente em vigor, em virtude de seu caráter individualista, exclusivista e monopolista.

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Sobre a autora
Ynna Breves Maia

advogada em Manaus (AM), pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro Integrado de Educação Superior do Amazonas (CIESA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIA, Ynna Breves. Uma abordagem sobre o regime de proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.: Patentes x regime "sui generis". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1289, 11 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9377. Acesso em: 23 nov. 2024.

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