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A voz de prisão em flagrante

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Agenda 10/02/2007 às 00:00

Sumário: 1. A "voz" no contexto da prisão em flagrante. 2. O procedimento policial classificado como ato complexo. 3. Conteúdo da voz de prisão em flagrante. 4. Soluções para eventuais divergências de decisões entre órgãos policiais. 5. Quando não cabe a voz de prisão em flagrante. 6. Situações particulares de cabimento.


1. A "voz" no contexto da prisão em flagrante.

A prisão em sentido amplo significa privação de liberdade de locomoção, mediante ato que impede o exercício do "direito de ir e vir" protegido pela Constituição Federal.1 Valorizando o direito individual, o mesmo texto constitucional caracterizou a prisão como medida excepcional, possível somente na situação de flagrante delito ou por ordem judicial, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar definidos em lei 2.

A classificação básica de prisão, no estudo do processo penal, compreende duas espécies: a prisão-pena e a prisão sem pena. A primeira, de finalidade estritamente repressiva, decorre de sentença condenatória que impõe privação de liberdade, com trânsito em julgado; a segunda, denominada provisória, possui natureza cautelar e é identificada como uma dentre cinco modalidades possíveis, quais sejam: prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão resultante de pronúncia, prisão resultante de sentença penal condenatória, ou prisão temporária.

Mas vamos nos aprofundar na análise da prisão, pois a classificação básica (com ou sem pena) ainda não se mostra suficiente para compor as variáveis da privação da liberdade de locomoção, revestida de legitimidade pelo ordenamento jurídico. Possível, em novo horizonte, identificar basicamente três significados jurídicos da palavra "prisão", acompanhando o raciocínio de Julio Fabbrini Mirabete: "... pode significar a pena privativa de liberdade (prisão simples para autor de contravenções; prisão para crimes militares, além de sinônimo de reclusão e detenção), o ato da captura (prisão em flagrante ou em cumprimento de mandado) e a custódia (recolhimento da pessoa ao cárcere)" 3.

Vistos esses conceitos e classificações acadêmicas do ato legal que impede o exercício do "direito de ir e vir", caminharemos para o tema principal desse estudo, inserido no contexto da prisão sem pena. A "voz de prisão em flagrante" constitui ato desenvolvido por policial ou por qualquer pessoa que surpreende ou presencia outrem em conduta legalmente definida como infração penal, ou na seqüência da referida conduta, em situação denominada estado de "flagrante delito". Nesse momento dá-se a prisão-captura (a "detenção") daquele que se tem como autor da infração, em ato preparatório da prisão-custódia (recolhimento ao cárcere). No instante da prisão, o sujeito ativo - o que tem a iniciativa da captura - profere algumas breves palavras, que dão publicidade à sua ação e, com isso, garante a ciência ao sujeito passivo (infrator) e de quem mais esteja presente, objetivamente sobre a privação de liberdade que está impondo como conseqüência de tal intervenção.

Conforme verificado, a prisão em flagrante foge à regra da "prisão somente mediante mandado judicial", já ressalvados os casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, e por isso o procedimento desperta atenção desde a sua gênese, com a "voz de prisão", que caracteriza a captura, até o recolhimento do conduzido ao cárcere (custódia), posto que inteiramente desenvolvido na esfera administrativa de atuação do Estado.

Nota-se que o controle judicial dá-se a posteriori, ainda que imediatamente após a custódia, oportunidade em que o Estado-juiz avalia se estão presentes as condições para a permanência da privação de liberdade sem pena, ou seja, da prisão provisória, amoldadas à lógica das duas clássicas expressões latinas: fumus boni juris (fumaça, evidências da realização do bom direito) e periculum in mora (perigo pela demora da prestação jurisdicional) que sustentam a continuidade de tal prisão ou a adoção de qualquer outra medida de natureza cautelar.

Certo que também se dá a voz de prisão no cumprimento de ordem escrita de autoridade judiciária competente, quando da realização de prisão-captura após o decreto de prisão preventiva, por exemplo, ou quando da localização de condenado foragido. Porém, desperta mesmo interesse a voz de prisão em flagrante delito em razão da iniciativa policial, ou até popular, capaz de imediatamente privar a liberdade alheia, trazendo grave restrição de direitos individuais que, somente após a lavratura do auto - se confirmada a voz de prisão pela autoridade policial competente -, será submetida à análise de autoridade judiciária.

Por fim, o Código de Processo Penal Militar (CPPM, Decreto-lei nº 1.002/69), que é a fonte mais próxima para suprir eventuais lacunas da norma processual penal comum, tratou especificamente do ato de captura, no contexto das disposições gerais sobre a prisão provisória, caracterizando a voz de prisão, conforme art. 230, ex vi:

"Art. 230. A captura se fará:

Caso de flagrante

a) em caso de flagrante, pela simples voz de prisão;

Caso de mandado

b) em caso de mandado, pela entrega ao capturando de uma das vias e conseqüente voz de prisão dada pelo executor, que se identificará".


2. O procedimento policial classificado como ato complexo.

De acordo com a análise de Tales Castelo Branco, a prisão em flagrante é ato estatal de força, classificado como uma modalidade de prisão cautelar de peculiar característica, sob o seguinte raciocínio: "É prisão porque restringe a liberdade humana; é penal porque foi realizada na área penal; é cautelar porque expressa uma precaução, uma cautela do Estado para evitar o perecimento de seus interesses; e é administrativa porque foi lavrada fora da esfera processual, estando, portanto, pelo menos no momento de sua realização, expressando o exercício da atividade administrativa do Estado."4.

De fato, deve-se estudar a prisão em flagrante como um procedimento de natureza policial, posto que não resultante de provimento jurisdicional, e que impõe relevante efeito jurídico apesar de seu desenvolvimento na esfera administrativa, conforme demonstrado. Assim, partindo-se da teoria dos atos administrativos, pode-se classificá-lo (o procedimento) como ato complexo quando engloba fases de atuação de distintos órgãos policiais, caracterizado pela convergência na formação da vontade em suas manifestações5.

A voz de prisão em flagrante é a primeira etapa do procedimento policial que trará conseqüências na atuação da Justiça Criminal; é marca inicial, portanto, do ciclo da persecução penal, em razão da constatação da prática de infração penal ainda revestida do caráter de flagrância. Importante observar que a privação da liberdade de locomoção do sujeito passivo - aquele que recebe a voz de prisão - já ocorre desde o momento dessa prisão-captura, ainda antes do seu recolhimento ao cárcere (prisão-custódia).

Via de regra o procedimento policial da prisão em flagrante desenvolve-se em dois momentos, ou etapas, conforme indicado: primeiro a constatação da prática de infração penal no estado de flagrante delito, oportunidade em que o responsável pela prisão-captura dá a voz de prisão, para então conduzir o preso, juntamente com as testemunhas e ofendido (logicamente, se pessoa física diversa de si próprio) até a presença da autoridade competente para a autuação, ou seja, para a lavratura do auto de prisão em flagrante. A etapa da formalização constituirá o segundo momento do procedimento, ocasião em que o presidente do auto confirmará a voz de prisão já proferida. A exceção fica por conta da hipótese prevista no art. 307 do CPP e, simetricamente, no art. 249 do CPPM (esfera penal militar) em que a própria autoridade que tem competência para autuar presencia, no exercício de suas funções, a prática de infração penal - que pode inclusive ser contra ela praticada -, circunstância que o habilita a dar a voz de prisão e, incontinente, presidir o auto de prisão sem a figura do condutor, em um procedimento caracterizado pela concentração de atos e pela declaração de vontade de apenas um órgão6.

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Em consonância com o entendimento indicado, sobre os dois momentos, ou etapas que podem ser desenvolvidas por órgãos distintos, o Des. Damião Cogan, em estudo sobre a prisão em flagrante de membros do Ministério Público e magistrados, enfatizou que "a prisão em flagrante e a lavratura do auto de prisão em flagrante delito são coisas diversas" e concluiu, com base na Leis Orgânicas dos respectivos órgãos, que em casos de crime inafiançável "a prisão poderá ocorrer por autoridade policial sendo, todavia, que a lavratura do auto de prisão em flagrante, que consiste na colheita da prova indiciária, portanto, investigação do delito, só pode ser realizada pelo presidente do Tribunal ou procurador geral de Justiça" 7. Nessa hipótese, a autoridade policial, civil ou militar, que realizou a prisão-captura, deverá encaminhar o detido, que possui prerrogativa de função, diretamente à presença da autoridade competente para a lavratura do auto de prisão em flagrante.


3. Conteúdo da voz de prisão em flagrante.

A voz de prisão integra a prática policial, mesmo sem uma fórmula definida em lei ou regulamentação específica para tal ato. Existem variações, mas os usos e costumes traduziram-na como imediata e objetiva expressão verbal dirigida àquele que está sendo preso, para cientificá-lo do motivo do cerceamento da liberdade e, também, para adiantar a garantia dos seus direitos individuais.

Em casos de prisão em flagrante já se ouviu muito (em filmes) algo próximo ao seguinte teor: "Você está sendo preso; tem o direito de permanecer calado. Tem o direito a um telefonema para avisar seus familiares e tem direito à presença de advogado..." Já se ouviu falar até mesmo que "o que disser a partir de agora poderá ser usado contra você mesmo...". Ainda, o clamor público - ou a simples falta de critério - já ensejou, não poucas vezes, o coroamento do ato com o uso de algemas sem que houvesse necessidade dessa medida, objetivando a condução exemplar do preso para ser autuado e devidamente trancafiado...

Cumpre-nos apresentar algumas considerações para justificar um posicionamento fundamentado sobre o assunto em questão. Primeiramente, é fato que o próprio Código de Processo Penal em vigor (CPP, Decreto-lei nº 3.689/41) não descreve o conteúdo da voz de prisão e, se o fizesse, a fórmula exata integraria o procedimento, com o devido registro no auto respectivo, sob pena de nulidade do ato, em razão do caráter excepcional de privação de liberdade a impor o cumprimento das formalidades que lhe são próprias8. Aliás, salvo a hipótese do fato praticado em presença da autoridade, ou contra esta, no exercício de suas funções, não é necessário constar a "voz de prisão" no auto de prisão em flagrante, por conseqüência da falta de imposição legal para tal registro9. Em segundo lugar, os direitos do preso em flagrante, de dignidade constitucional, são garantidos apropriadamente durante a lavratura do auto de prisão, por evidente questão de ordem prática, e não no ato da detenção, ressalvada a identificação do responsável por essa prisão-captura e o motivo da privação de liberdade, direitos que podem - e devem - ser garantidos de imediato.

Outrossim, durante a captura não faz sentido alertar o preso de que o que ele falar poderá ser usado contra si próprio ...; tal advertência, que mais parece uma ameaça, não seria capaz de inverter o ônus da prova, que sempre caberá a quem acusa como regra geral de direito a prestigiar o princípio básico do estado de inocência, apesar da momentânea convicção quanto à culpabilidade do detido, diante do quadro da flagrância de infração penal. Ainda, apresenta-se como grave erro generalizar a aplicação de algemas à ponto de desvirtuar o seu correto sentido de instrumento indispensável à contenção, no uso de força necessária - e por isso legítima -, para explicitá-la em funcionamento como símbolo de prisão, revestido de forte apelo visual.

Justifica-se a captura mediante voz de prisão em flagrante pela aparência inequívoca de tipicidade que preenche o quesito materialidade, caracterizada a autoria em razão da certeza visual da prática da conduta coibida10. Reagindo a tal percepção, aquele que surpreende a ação ou omissão prevista em norma penal deve, naturalmente, avisar o autor de que ele se encontra submetido à prisão, nesse mesmo momento, como conseqüência de sua conduta, e anunciar o motivo do obstáculo ao direito individual de locomoção que se lhe impõe, bastando a seguinte expressão verbal: "Você está sendo preso pela prática de infração penal". Deve o condutor, também, possibilitar sua própria identificação, seja pela exibição do nome sobreposto ao uniforme - obrigatória para o policial militar em serviço fardado - seja pelo fornecimento imediato do seu nome, quando questionado sobre sua identidade.

Desnecessária a exposição detalhada quanto à tipificação da infração durante a voz de prisão, mas, sim, preciso, o anúncio do motivo do cerceamento de liberdade pela inequívoca flagrância de ilícito penal, vez que a análise cuidadosa que levará à classificação da conduta será realizada com tempo e calma, posteriormente, para efeito da lavratura do auto pelo seu responsável. Além de acompanhar todo o trabalho de formalização do procedimento e ter assegurados oportunamente os seus direitos individuais, ainda o preso receberá, no prazo de vinte e quatro horas, a nota de culpa contendo em detalhes todas as informações a ele devidas.

Dessa forma, após a voz de prisão, além do que inicialmente se transmitiu ao preso, serão garantidos no tempo certo os seus direitos previstos no artigo 5º da Constituição Federal, resumidos como: comunicação imediata ao juiz competente e à sua família ou à pessoa por ele indicada sobre a prisão e o local onde se encontra (inciso LXII), a informação de que pode se manter em silêncio durante o interrogatório e a asseguração quanto à assistência da família e de advogado (inciso LXIII), obtenção da identificação dos responsáveis por sua prisão (todos, inclusive quanto ao responsável pela lavratura do auto) ou por seu interrogatório (inciso LXIV), o relaxamento da prisão pela autoridade judiciária, no caso de ilegalidade (inciso LXV), a liberdade provisória com ou sem fiança, nos casos admitidos em lei (inciso LXVI). Por esse motivo, uma vez efetuada a voz de prisão, deve ser realizada a condução imediata do preso, que permanecerá sob responsabilidade do condutor somente pelo tempo estritamente necessário à sua apresentação para a lavratura do auto de prisão em flagrante delito.


4. Soluções para eventuais divergências de decisões entre órgãos policiais.

A lei processual identifica a figura do "condutor", cuja versão apresentada sobre os fatos é registrada no primeiro momento da formalização da prisão em flagrante. Não resta dúvida de que se trata da pessoa que apresenta o preso ao órgão encarregado da lavratura do auto, seja ela o policial ou o particular que efetuou a captura ou, ainda, o policial que se encarregou de conduzir a ocorrência a pedido do particular que veio a prender o autor dos fatos11. Portanto, o condutor é quase sempre um policial, na condição de autor da voz de prisão, ou de encaminhador da ocorrência, se a prisão foi realizada por particular.

Quando um policial, ainda que de órgão distinto daquele competente para lavrar o auto, detém e dá a voz de prisão por sua própria iniciativa, age na obrigação legal de proceder à prisão-captura, convencido de que estão presentes as condições que assinalam e justificam a prisão em flagrante, eis que lhe é imposta tal conduta nos termos do art. 301 do CPP: "Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito". Portanto, enquanto ao particular é facultado efetuar a prisão-captura (a chamada "prisão facultativa"), ao policial é obrigatória tal providência (por isso denominada "prisão obrigatória"), sob pena de responsabilização, inclusive criminal se caraterizada a prevaricação12.

No caso concreto, quando um policial militar de qualquer nível hierárquico detém, dá a voz de prisão em flagrante e conduz alguém preso ao distrito policial, por sua iniciativa, apresentando-o ao delegado de polícia para a lavratura do auto, juntamente com testemunhas, exerce o poder de uma decisão legitimada pelo desempenho de sua própria autoridade policial, à luz do Direito Administrativo, como "law enforcement", alocução que inclui "todos os agentes da lei, quer nomeados, quer eleitos, que exerçam poderes policiais, especialmente poderes de prisão ou detenção" de acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a propósito do artigo 1º do Código de Conduta para os Encarregados da Aplicação da Lei13. Tal entendimento não afronta a posição já defendida por conceituados processualistas de que à luz da lei processual penal comum (CPP), ou seja, em sentido estrito, somente o delegado de polícia exerceria autoridade policial com competência para a lavratura do auto de prisão em flagrante, para a presidência do inquérito e para a concessão de fiança em alguns casos, dentre outras providências próprias de polícia judiciária, tratando-se evidentemente de atos policiais relacionados à apuração de infração penal de competência da Justiça Comum Estadual14.

Concluímos que a mesma manifestação do princípio da obrigatoriedade que determinou o proferimento da voz de prisão, na seqüência, impõe ao delegado a formalização do procedimento policial, desde que razoáveis os elementos apresentados, sem descarte, portanto, do seu juízo de admissibilidade, eis que o ato não será aperfeiçoado sem a lavratura do auto de prisão em flagrante, no que pode ser chamado de "confirmação da voz de prisão", expressão tradicionalmente utilizada nesse contexto. Convém lembrar que o delegado responsável é o de plantão do distrito da respectiva área de circunscrição, tendo por referência exatamente o local em que se deu a prisão-captura e não o local em que a infração penal foi praticada, circunstância que ressalta o mérito da iniciativa policial quanto à prisão e dá resposta à necessária agilização das providências decorrentes.

Obviamente, não seria razoável impor ao delegado que lavrasse, incontinenti, auto de prisão em qualquer situação a ele trazida como prisão em flagrante. O procedimento policial como um todo, sob o prisma de um ato complexo, teve o seu início com a privação de liberdade imposta pela voz de prisão (prisão-captura), mas o recolhimento do capturado ao cárcere (prisão-custódia) dar-se-á somente na segunda etapa, esta sob responsabilidade daquele a quem compete a formalização do ato. Surge, então, a hipótese de o delegado de polícia decidir que não é cabível a prisão em flagrante, apesar da iniciativa de policial integrante de outro órgão que decidiu pela voz de prisão. Imaginemos que o responsável pela lavratura do auto entenda que é o caso de abertura de inquérito policial, mas não de "flagrante", ou, mesmo, entenda que não cabe qualquer das duas providências ao reconhecer, por exemplo, falta de tipicidade na conduta do autor dos fatos. Vamos analisar quais seriam as possibilidades de solução de eventual divergência nas decisões.

De acordo com a nova redação do art. 304 do CPP, trazida pela Lei nº 11.113, de 13 de maio de 2005, conclui-se que o delegado ouve primeiro a versão do condutor, colhe a sua assinatura e passa recibo do preso, de modo que o policial condutor não precisará permanecer no distrito até o final de todos os registros, como vinha ocorrendo desde longa data, em virtude da então absoluta concentração de atos. Basta conferir o disposto na nova regra: "Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto" (art. 304 do CPP). Tem-se como cumprida a obrigação do policial que, por sua iniciativa, deu a voz de prisão, declarou sua versão dos fatos e entregou o preso mediante recibo; não se omitiu e dele nada mais se poderá exigir além de sua posterior colaboração com a Justiça Criminal na condição de testemunha, durante eventual ação penal. Não há que se falar, por outro lado, em abuso de autoridade por prisão-captura indevida em razão de não confirmação da medida, desde que existente razoável motivo para a voz de prisão na primeira e imediata avaliação do policial condutor, no ardor e urgência dos fatos, em contraponto ao inquestionável dever legal de agir.

Quando o delegado decidir por não lavrar o auto de prisão, em razão de sua pronta avaliação dos elementos disponíveis, mesmo antes de ouvir formalmente o condutor e, desta feita, recusar-se a passar recibo do preso, caberá ao policial que deu a voz de prisão avaliar serena e cuidadosamente os motivos da divergência de interpretação dos fatos e, sem estabelecer indesejável atrito - que somente traria prejuízo à almejada integração de esforços entre órgãos policiais -, adotar uma dentre duas opções. De acordo com sua análise, que deve ser despida de qualquer motivação de ordem pessoal para pautar-se pelo estrito profissionalismo, se convence de que é razoável a nova interpretação e alinha-se a essa vontade recém formada sob lógica argumentação, ou, então, ainda sob o prisma da legalidade, não conformado diante de manifesta irregularidade ou falta de razoabilidade na decisão do delegado, aciona os seus comandantes para que, em nível hierárquico superior, de ambos os policiais, possa ser estabelecido um ponto de convergência de decisões, em um esforço de harmonização de vontades. Observa-se, a propósito, que não há subordinação hierárquica ou funcional entre integrantes de duas instituições policiais diversas, o que não deve comprometer o mútuo respeito e o propósito de cooperação, que se espera prevalecer, em prol do bem comum.

Analisando a questão dos eventuais conflitos entre órgãos policiais, no desenvolvimento de atribuições próprias, Álvaro Lazzarini apontou a presente solução: "cabe ao superior hierárquico desses dois funcionários de mesmo nível a resolução do conflito e isso em decorrência da hierarquia" 15. Portanto, se mantido o impasse estabelecido, mesmo com a intervenção dos respectivos superiores de cada órgão policial, caberá ao superior hierárquico comum aos dois policiais a decisão final. Note-se que a recusa de adoção das medidas de polícia judiciária cabíveis pode caracterizar a prática de prevaricação, dentre outras condutas irregulares da autoridade que deveria agir após a iniciativa do policial condutor, conforme o caso.

Há quem defenda, na hipótese de recusa de lavratura do auto pelo delegado do local onde se deu a voz de prisão, o encaminhamento do preso à outra autoridade policial civil para que esta formalize o ato, em razão de que a jurisprudência indica que não se cogita de incompetência ratione loci, vez que autoridade policial não exerce jurisdição e, por conseqüência, não se reconhece causa de nulidade, nestes termos. Porém, classificamos como inadequada a postura de buscar a qualquer custo uma convergência de vontades, mediante acionamento de delegado - fora da circunscrição - que lavre o auto, vez que, na melhor das hipóteses, caracterizar-se-á alguma irregularidade funcional, ainda que não venha a comprometer a validade do ato, como visto.

Quanto ao encaminhamento de "representação" para providências contra o delegado que não formalizou a prisão em flagrante, apesar da existência de elementos inquestionáveis que justificavam a medida (lavratura do auto), entendemos que este é um direito de qualquer cidadão, previsto na Lei nº 4.898/65, que também pode ser identificado como "direito de petição"16 e não apenas prerrogativa do policial inconformado, lembrando da inexistência de subordinação hierárquica ou funcional entre os dois. Mas tal providência, posterior aos fatos, poderá servir para provocar algum esclarecimento ou eventual responsabilização quanto à conduta contestada, além de eventual reparação de danos, sem a capacidade, evidentemente, de reverter a não efetivação da prisão em flagrante.

Finalmente, convém lembrar que, não obstante a avaliação quanto ao cabimento ou não da prisão em flagrante, ao menos a abertura de inquérito deve ser providenciada pelo delegado responsável, quando o ofendido requer formalmente essa medida, exercendo direito subjetivo que poderá ser garantido inclusive mediante recurso encaminhado ao "chefe de Polícia", em caso de indeferimento do pleito17. Entende-se que tal recurso pode ser encaminhado ao Secretário da Segurança Pública, ao Delegado Geral de Polícia ou, mesmo, ao superior imediato da autoridade cuja decisão se recorre, em razão do sentido indefinido da expressão originalmente utilizada. Trata-se de prerrogativa do ofendido que confirma o caráter de obrigatoriedade da atuação policial não propriamente quanto à lavratura do auto de prisão em flagrante, mas, por certo, quanto à rigorosa apuração dos fatos apresentados ao órgão competente.

Sobre o autor
Adilson Luís Franco Nassaro

major da Polícia Militar de São Paulo, bacharel em Direito, pós-graduado em Direito Processual Penal na Escola Paulista da Magistratura, mestrando em História (UNESP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASSARO, Adilson Luís Franco. A voz de prisão em flagrante. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1319, 10 fev. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9483. Acesso em: 26 dez. 2024.

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