5. Quando não cabe a voz de prisão em flagrante.
Dá-se a voz de prisão em flagrante durante a captura como preparação à prisão-custódia (recolhimento ao cárcere) que será conseqüência imediata, em regra, da constatação da prática de infração penal em seu estado de flagrância. Não é o propósito deste estudo analisar as modalidades de flagrante (em sentido próprio, impróprio, presumido, dentre outras classificações possíveis) e todas as suas particularidades, tema já amplamente explorado por renomados juristas, mas sim enfocar a voz de prisão no contexto do procedimento policial adequado à obrigatória atuação, uma vez superada a avaliação preliminar quanto à caracterização do estado de flagrante delito.
No âmbito do flagrante, a prisão é o próprio objetivo da "voz". Destarte, por raciocínio de exclusão, sempre que não for caracterizado o estado de flagrância também não caberá a voz de prisão (em flagrante). Note-se, ainda, que em algumas situações, apesar do estado de flagrância, não é cabível a prisão e, assim, por coerência, também não será cabível o proferimento da voz de prisão.
De fato, não será imposta a prisão em flagrante em casos de imunidade diplomática ou parlamentar (nesta última, ressalvados os crimes inafiançáveis, de acordo com o parágrafo 2º, do art. 53, da Constituição Federal) ou ainda, em casos de prática de infrações penais de menor potencial ofensivo, com o encaminhamento imediato do autor ao Juizado, após lavratura de termo circunstanciado, ou firmado o compromisso de seu comparecimento em juízo (parágrafo único, do art. 69, da Lei nº 9.099/95) 18. A propósito desse sistema, infere-se que a lei prevê que, em casos de infração de menor potencial ofensivo, quando desnecessária a prisão-captura, toda a atividade policial é desenvolvida pela mesma autoridade policial que primeiro tomar conhecimento da ocorrência (caput, do mesmo art. 69, da Lei nº 9.099/95) 19, com o objetivo de dar celeridade à prestação jurisdicional.
Também não será proferida voz de prisão à autoridades com prerrogativa de função que impeçam sua prisão em flagrante, salvo nos crimes inafiançáveis, como os magistrados e integrantes do Ministério Público 20, cuja apuração conseqüente competirá à órgãos distintos dos órgãos policiais comuns.
Portanto, não se impõe a prisão-captura em situações específicas previstas em lei, tornando-se inviável a voz de prisão nesses casos, apesar da constatação de situação de flagrante. Mantém-se, todavia, os registros policiais cabíveis e, para esse fim, a retenção do autor apenas pelo tempo estritamente necessário, sob pena de responsabilização por abuso de autoridade na conduta de atentado à liberdade de locomoção 21 ou, ainda, de atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional, nos termos do art. 3º, letras "a" e "j", da lei 4.898/65.
6. Situações particulares de cabimento.
É possível dar voz de prisão em flagrante em caso de contravenção penal? Quando em situação especial, sim. Tourinho Filho observa que: "É certo que o art. 301 fala em ‘flagrante delito’, parecendo, assim, estar excluída a hipótese de ‘flagrante contravenção’, pois contravenção não é delito. Todavia, no artigo imediato, o legislador, ao estabelecer os casos de flagrância, usa a expressão ‘infração penal’, que, realmente, compreende o delito e a contravenção" 22. Não obstante, pela previsão da lei 9.099/95, toda contravenção foi considerada infração penal de menor potencial ofensivo 23 e, portanto, conforme visto, o autor do fato não será preso desde que, pelo menos, assuma o compromisso de comparecer em juízo, após a lavratura do termo circunstanciado; tal disposição legal significa que, ao contrário, se não houver a mínima participação e colaboração para com a Justiça, não será garantido o benefício (ausência de prisão em flagrante) e, então, a autoridade policial agirá como se estivesse frente à infração penal fora do contexto da lei 6.099/95. Note-se que se o ofendido for identificado e individualizado, será indispensável o seu interesse quanto às medidas de persecução penal, eis que, mesmo tratando-se de ação publica, ela estará condicionada à representação.
É possível dar voz de prisão em flagrante em caso de crime de iniciativa privada? Sim, desde que a vítima solicite a prisão-captura ou revele interesse na futura apresentação de queixa e, ainda, desde que, em caso de infração penal de menor potencial ofensivo, o autor do fato não faça jus ao benefício legal que o impeça de ser preso em flagrante, nos termos do parágrafo primeiro, do art. 69, da Lei 9.099/95. Ocorreu em 13 de abril de 2005, em pleno Estádio do Morumbi, em São Paulo, a voz de prisão em flagrante proferida ao jogador argentino Leandro Desábato, do time Quilmes, pela prática de injúria qualificada (parágrafo 3º, do art. 140, do Código Penal) 24, qual seja, por ter dirigido expressões verbais injuriosas, durante partida de futebol, com a utilização de elementos referentes à raça, cor e etnia, ao jogador Grafite, do time São Paulo, fato testemunhado por um número incalculável de telespectadores. Conforme registrou a imprensa, com ampla divulgação 25, o ofendido foi consultado a respeito de uma possível queixa contra o agressor e manifestou interesse na persecução penal, o que tornou possível a ação policial imediata, com a voz de prisão e condução ao 34º Distrito Policial para a lavratura do auto de prisão em flagrante delito, observando-se que a pena prevista para a conduta é de reclusão, de 1(um) a 3 (três) anos, e multa, e, portanto, a infração não é considerada de menor potencial ofensivo em razão da pena máxima à ela atribuída.
É possível dar voz de prisão em caso de apresentação espontânea? Em que pese a posição de respeitáveis doutrinadores indicando absoluta impossibilidade de prisão 26, acompanhamos o raciocínio oposto, no sentido de que, apesar de ter sido capitulada separadamente no CPP como modalidade distinta da prisão em flagrante, quando o infrator utiliza-se da apresentação espontânea apenas e notoriamente para escapar da prisão, pode ser ele autuado em flagrante delito, observando que não há como traçar regras matemáticas para tal avaliação, na esfera da atuação policial. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci defende que a apresentação pode não descaracterizar o flagrante delito e algumas situações geram o clamor público e o periculum in mora instala-se, destacando: "não se pode utilizar o artifício da apresentação espontânea unicamente para afastar o dever da autoridade policial de dar voz de prisão em flagrante, com a lavratura do auto, a quem efetivamente merece. Imagine-se o indivíduo que mata, cruelmente várias pessoas e, logo em seguida, com a roupa manchada de sangue e o revólver na mão, adentra uma delegacia, apresentando-se" 27.
Finalmente, resta abordar a situação de voz de prisão em flagrante sem testemunhas, salientando que, à evidência, somente pode proceder a prisão-captura (em flagrante) aquele que presenciou fatos que justificam a medida. A obrigação de prender em flagrante, com o proferimento da "voz" para efeito de condução, não está vinculada a existência de testemunhas da infração penal em estado de flagrância, ou de testemunhas da realização da prisão-captura. A ausência de testemunha, nesses termos, não seria capaz de impedir a lavratura do auto de prisão em flagrante delito, mesmo porque outras provas podem ser reunidas e a própria versão do condutor não deixa de constituir testemunho. Entretanto, nesse caso, será necessária assinatura de duas testemunhas da "apresentação do preso", junto com o condutor, ao responsável pela lavratura do auto 28. Por extensão, se o policial que vai conduzir as partes não é o autor da voz de prisão, ou seja, não presenciou os fatos, deverá reunir duas testemunhas da apresentação do preso (a si), quando ausentes testemunhas diversas daquela que realizou a prisão-captura.
Notas
1 Inciso XV,
do art. 5º da CF: “é livre a locomoção no território
nacional em tempo de paz...”
2 Inciso LXI,
do art. 5º da CF: “ninguém será preso senão em flagrante
delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária
competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente
militar, definidos em lei.”
3Processo penal. 13.
ed. São Paulo : Atlas, 2002. p. 359.
4 Castelo Branco, Tales. Da Prisão em Flagrante. São Paulo : Saraiva, 1988, p. 31.
5 Maria Sylvia
Zanella Di Pietro, ao analisar os atos administrativos quanto à formação
da vontade, identifica o ato complexo como uma das possíveis espécies
de ato administrativo: “Atos complexos são os que resultam da manifestação
de dois ou mais órgãos, sejam eles singulares ou colegiados, cuja
vontade se funde para formar um ato único. As vontades são homogêneas;
resultam de vários órgãos de uma mesma entidade ou de entidades públicas
distintas, que se unem em uma só vontade para formar o ato; há identidade
de conteúdo e de fins” (Direito administrativo. 15.
ed. São Paulo : Atlas, 2002, p. 215).
6 Art. 307 do Código de Processo Penal (CPP): “Quando o fato for praticado em presença da autoridade, ou contra esta, no exercício de suas funções, constarão do auto a narração deste fato, a voz de prisão, as declarações que fizer o preso e os depoimentos das testemunhas, sendo tudo assinado pela autoridade, pelo preso e pelas testemunhas e remetido imediatamente ao juiz a quem couber tomar conhecimento do fato delituoso, se não o for a autoridade que houver presidido o auto”. Art. 249 do CPPM: “Quando o fato for praticado em presença da autoridade, ou contra ela, no exercício de suas funções, deverá ela própria prender em flagrante o infrator, mencionando a circunstância”.
7Da prisão em flagrante de membros do Ministério Público e magistrados. Artigo publicado no Caderno Jurídico, São Paulo, março/abril de 2003.
8 Quanto às formalidades da autuação, adverte Guilherme de Souza Nucci: “sendo a prisão em flagrante uma exceção à regra da necessidade de existência de ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária, é preciso respeitar, fielmente, os requisitos formais para a lavratura do auto, que está substituindo o mandado de prisão expedido pelo juiz” (Código de processo penal comentado. São Paulo : RT, 2002., p. 533).
9 Mirabete considerou desnecessário constá-la nos autos, inclusive na hipótese de fato praticado em presença da autoridade, ou contra esta, no exercício de suas funções, apesar da previsão do art. 307 do CPP, citando julgado (STJ: RT 668/340), com seguinte argumentação: “O reconhecimento de nulidade por essa omissão resultaria na consagração do formalismo puro, inexistente em nosso direito processual penal, em detrimento da realidade factual referente aos atos concretos e coercitivos típicos dessa custódia” (Processo penal. 13. ed. São Paulo : Atlas, 2002. p. 371).
10 Magalhães Noronha destaca a definição concisa de flagrante, de autoria do Des. Rafael Magalhães: “a certeza visual do crime” (Curso de direito processual penal. 22. ed. São Paulo : Saraiva, 1994, p. 162). Todavia, cumpre-nos observar que, além do crime, a contravenção penal também enseja prisão em flagrante, pelo mesmo critério e definição concisa da “certeza visual” de sua prática.
11 Nesse sentido, Grinover, Scarance Fernandes e Gomes Filho in ”As nulidades no processo penal. 7. ed. São Paulo : RT, 2001, p. 286.
12 O crime de prevaricação está descrito no art. 319 do Código Penal: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato ou ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa”.
13 O significado da expressão “law enforcement” é destacado por Álvaro Lazzarini in artigo: Poder de Polícia e Direitos Humanos, revista A Força Policial, nº 30, São Paulo, 2001, p. 16.
14 Sobre o tema, Damásio de Jesus concluiu que: “O conceito processual penal de autoridade policial é, portanto, mais restrito do que o do Direito Administrativo” (Lei dos juizados especiais criminais anotada. 7. ed. São Paulo : Saraiva, 2002, p. 44).
15 Estudos de direito administrativo. 2. ed. São Paulo : RT, 1999, p. 62.
16 O Inciso XXXIV, do art. 5º da CF estabelece: “são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder ... “
17 o par. 2º, do art. 5º, do CPP, estabelece que: “Do despacho que indeferir o requerimento de abertura de inquérito caberá recurso para o chefe de Polícia”.
18 “O benefício de responder ao processo em liberdade, mesmo no caso de flagrante, é o incentivo que a lei oferece para o comparecimento do autuado ao Juizado” (GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Juizados Especiais Criminais, Comentários à lei 9.099, de 26.09.1995. São Paulo : RT, 1996, p. 101).
19 O “caput” do art. 69, da Lei 9.099/95 estabelece que: “A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários”. Tratando do conceito de autoridade policial, Damásio de Jesus conclui que: “O policial militar, ao tomar conhecimento da prática de uma contravenção penal ou de crime de menor potencial ofensivo, poderá registrar a ocorrência de modo detalhado, com a indicação e qualificação das testemunhas, e conduzir o suspeito diretamente ao Juizado Especial Criminal” (Lei dos juizados especiais criminais anotada. 7. ed. São Paulo : Saraiva, 2002, p. 48).
20 Lei Complementar nº 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura), art. 33, e Lei nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), art. 40.
21 “Com efeito, todo cidadão tem o direito de locomover-se, transportando-se para onde deseje, sem limitações, ressalvados os casos expressos em lei ou por imperiosas necessidades ditadas pelo Estado. Tal liberdade não pode ser total, pois necessárias são certas restrições, não só face à liberdade dos demais indivíduos, como à do Estado” (PASSOS DE FREITAS, Gilberto, e PASSOS DE FREITAS, Vladimir. Abuso de Autoridade. 5. Ed. São Paulo : RT, 1993, p. 24).
22Processo penal. 19. ed. São Paulo : Saraiva, 1997. v. 3, p. 431.
23 Art. 61, da lei 9.099/95: “Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial”.
24 Parágrafo 3º, do art. 140, do CP: “Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Pena – reclusão, de 1(um) a 3 (três) anos, e multa”.
25 Revista “ISTO É”, número 1853, de 20/04/2005, pg. 36/39.
26 Dentre outros, Paulo Lúcio Nogueira registrou que aquele que se apresenta espontaneamente para comunicar a prática de algum crime “não pode ser autuado em flagrante por não estarem presentes os requisitos do flagrante e haver disposição legal a respeito, conforme tem entendido copiosa jurisprudência” (Curso completo de processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p 221).
27Código de processo penal comentado. São Paulo : RT, 2002, p. 531.
28 O par. 2º, do art. 304 do CPP estabelece que a falta de testemunhas da infração não impede o auto de prisão em flagrante, mas, nesse caso, devem assinar, com o condutor, pelo menos duas pessoas que tenham testemunhado a apresentação do preso à autoridade policial.
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