Sumário: 1. Introdução; 2. Evolução histórica do crime de estupro; 2.1. A mulher como vítima do crime de estupro; 2.2. Impactos na sociedade; 2.3. Violência e suas classificações; 2.3.1. Violência sexual contra a mulher e suas consequências psicológicas; 3. Ação penal; 3.1. Princípios a serem observados; 3.2.1. Princípio da obrigatoriedade; 3.2.2. Princípio da oficialidade; 3.2.3. Princípio da indisponibilidade; 3.2.4. Princípio da indivisibilidade; 3.2.5. Princípio da intranscendência; 3.2. Diferença entre ação penal pública incondicionada e a ação penal pública condicionada à representação; 3.3. A ação penal pública incondicionada e o direito de escolha da mulher; 3.4. Ação penal pública incondicionada e a atuação do Ministério Público no processo de crime de estupro contra a mulher; 3.4.1. A atuação do Ministério Público nos crimes de ação penal pública condicionada a representação; 4. Vitimologia; 4.1. A vitimização e as suas classificações 4.2.1. Vitimização secundária; 4.2.2. Vitimização secundária nos casos de estupro contra a mulher; 5. Da assistência à mulher vítima de estupro; 6. O princípio da dignidade da pessoa humana à luz da Constituição Federal; 6.1. Da dignidade sexual da mulher; 7. Conclusão; Referências.
1. INTRODUÇÃO
A questão acerca da possível vitimização secundária nos crimes de estupro contra a mulher que pode ser gerada através da ação penal pública incondicionada. Trazida em face da alteração do artigo 225 do Código Penal.
A importância desse trabalho perante a problemática causada pela vontade da vítima de representar ou não diante de um caso de estupro é ímpar, pois as consequências geradas pela persecução criminal na vida da mulher podem ser irreparáveis.
O crime de estupro, classificado como violência sexual, encontra-se elencado no artigo 213 do Código Penal. Em parte da história os abusos que as mulheres sofriam, sejam físicos, morais ou psicológicos chegaram a ser considerados atos normais pela sociedade. Só então com os avanços tecnológicos e culturais, alguns atos passaram a fazer parte do rol de crimes contra a dignidade e liberdade sexual pelo sistema jurídico brasileiro. Ao se destacar a mulher como vítima do crime de estupro, cabe ressaltar a marca histórica presente, e a reprodução de julgamentos que ela carrega por tal ato. Visto que mesmo em posição de ofendida, é responsabilizada por "permitir", ou até mesmo "provocar" a ocorrência do crime.
Assim, a vitimologia, pauta os seus estudos em observar o comportamento da vítima, do crime e do criminoso, além de analisar as consequências que crime causa sobre aquele que sofreu o dano. Com isso, cabe destacar ainda que a vitimologia apresenta os graus de vitimização que ofendido pode sofrer. Como a vitimização primária, que é o primeiro contato que a vítima tem com o criminoso, ou seja, no momento em que se afirma ter, os seus bens jurídicos, sofrido danos pelo delinquente. A vitimização secundária, ou chamada por demais doutrinadores de revitimização, ocorre quando o indivíduo além de sofrer diretamente o crime, passa por humilhações, momentos nefastos e de desonra, provocados, não só pelas autoridades competentes na apuração do caso, como também pelo processo judicial, que acaba expondo a vítima e o fato ocorrido. Nesse sentido, destacar-se ainda a vitimização terciária, que entende-se ser causada pelas pessoas mais próximas, pelo meio social em que vive, motivada pelo ato de omissão ou degradação da sociedade e familiares da vítima, visto que está intrínseca a revitimização.
Por estar correlacionada também à violência sexual e consequentemente ao crime de estupro, essa será uma discussão importante e destacada ao longo do trabalho, principalmente por ter uma possível ligação com a ação penal do crime de estupro.
O fato é que a ação penal neste delito passou a ser pública incondicionada, logo não importa a vontade do ofendido. O Ministério Público, sendo o titular da ação penal, tem exclusividade para sua propositura e a vítima, deverá comparecer em todas as fases do processo. Renovando as dores e relatando diversas vezes o caso.
As assistências às vítimas neste tipo delito, que será observada ao decorrer do trabalho, são bem salientadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, estão presentes, no Código Penal, em portarias do Ministério da Saúde, em resoluções do Conselho Nacional de Justiça e leis que são criadas com está finalidade que é amparar, acolher, direcionar aquele que sofreu a violência sexual, em muitas se destaca a vítima mulher.
A análise do presente estudo traz como problemática o questionamento sobre os principais impactos da alteração da ação penal pública, prevista no artigo 225 do Código Penal, conforme a Lei n° 13.718/18 e sobre a possível revitimização provocada na vida da mulher. Ademais, o objetivo geral é apresentar as consequências elementares motivadas pela mudança da ação penal pública condicionada à representação, para a ação penal pública incondicionada no crime de estupro, bem como a possibilidade da existência da vitimização secundária.
Os objetivos específicos, portanto, são: contextualizar o crime de estupro contra a mulher e a ação penal pública incondicionada com o antigo desejo da vítima em representar ou não contra seu ofensor, classificar vitimização e violência e apresentar os impactos causados não só na sociedade, como também na vida pessoal da ofendida.
Para a construção do conteúdo deste trabalho, foi utilizada a metodologia de pesquisa bibliográfica, no que tange a combinação de fontes e levantamento de informações sobre o tema abordado.
Destarte, é nessa divergência que recai a escolha do tema, uma vez que é de total importância a discussão. Destacando, inclusive, o papel fundamental que o Ministério Público tem no Estado Democrático de Direito, sendo o custos legis, deve-se destacar, por conseguinte que além de ser um órgão acusador, ele é, acima de tudo, um ente de proteção.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CRIME DE ESTUPRO
Ao estudar a origem do crime de estupro poderemos entender mais a fundo as suas consequências na sociedade, sobretudo, para aquele indivíduo que sofreu os danos do crime e neste caso trataremos da vítima mulher.
Segundo o sociólogo Gilberto Freyre, vivemos em uma sociedade que foi formada ao longo da história por uma espécie patriarcalismo, que por sua vez, refere-se ao domínio da figura masculina em detrimento da figura feminina. No contexto sexual a mulher era vista como um mero objeto de satisfação do desejo do homem. Não havia ali qualquer forma de equidade e seu poder de escolha era omisso.
Com isso, a violência sexual contra a mulher era algo visto como normal no meio social. Os senhores de engenho tinham total dominância sobre suas escravas, e assim sucedia nas demais culturas.
Nesse sentido, foi preciso um novo olhar diante de tais atrocidades, o que passou a acontecer em algumas culturas como no Egito e na Grécia. A mudança em relação ao tratamento do Estado nesses casos de abusos sexuais tornou-se crucial para a formulação das leis nos tempos atuais.
O crime de estupro passou a ser punido severamente, mas ainda assim a vítima nunca deixou de sofrer, sobretudo pela sociedade e Estado, as consequências dessa violência.
Segundo ELUF (1999), apud Antônio de Pádua Serafim, Daniel Martins de Barros e Sérgio Paulo Rigonatti (2006, p. 85), no Egito aplicava-se a pena de mutilação aos estupradores. Na Grécia, nos seus primórdios, havia a pena de multa para o estupro; posteriormente foi instituída a pena de morte.
Com isso, entende-se que o crime de estupro é um crime que provoca repulsa na sociedade e por sua vez, encontra-se no rol de crimes hediondos Lei n° 8.072/1990. Provoca sequelas, não só físicas e morais, mas psicológicas no sujeito passivo.
Nesse sentido, no atual Código Penal brasileiro esse crime está previsto no art. 213 e foi inserido no título VI, capítulo I, dos Crimes contra a Dignidade e a Liberdade Sexual.
Estupro Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena - Reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. § 1° Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou maior de 14 (catorze) anos: Pena - Reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos § 2° Se da conduta resulta morte: Pena - Reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos
Desse modo, pode-se analisar que para a configuração do crime não é necessário a conjunção carnal, e sim, o mero constrangimento da vítima, ou seja, uma grave ameaça a praticar um ato libidinoso resultaria no crime de estupro.
2.1. A MULHER COMO VÍTIMA DO CRIME DE ESTUPRO
Segundo Pimentel (1999), citado por Antônio de Pádua Serafim, Daniel Martins de Barros e Sérgio Paulo Rigonatti (2006), o estupro é notado ao longo da história como uma das mais graves violências. Pois, quando o livre-arbítrio da vítima é excluído, ele se configura. A mulher por muito tempo foi considerada culpada pelo crime de estupro, seja pelas suas vestes, atitudes, olhar, dentre outros. Então, a partir disso surge a violência de gênero.
Essa imputação por provocar o agressor a cometer o ato, pode-se dizer que são marcas da história de uma sociedade que além de inferiorizar a figura feminina, mantinha um padrão de regras que elas deveriam cumprir para não serem "estigmatizadas", não só pela comunidade em que estava inserida, como também pelas autoridades competentes na apuração e investigação do caso.
Ao longo da história a mulher foi culpabilidade pelo crime de estupro que ocorresse consigo, acusada de provocar o agressor, fazendo com que despertasse o desejo sexual.
Embora, tenham ocorrido avanços tecnológicos e socioculturais é possível observar que tais pensamentos perduram atualmente. Observa-se ainda que apesar dos direitos adquiridos, uma mulher vítima do crime de estupro irá carregar as mazelas por toda a sua vida.
2.2. IMPACTOS NA SOCIEDADE
A sociedade ao longo de sua história e evolução, julgou a mulher e a culpabilizou pela violência sexual que tivera ocorrido consigo. Trata-se de um mal que está intrínseco. Visto que o indivíduo mesmo ao praticar o ato, muitas vezes não passa a ser responsabilizado, pois quando se trata de um crime de estupro o meio social tenta justificar o ocorrido pelo comportamento da vítima.
Com a influência midiática, a vítima tornou-se uma espécie de provocadora do crime, isso passou a refletir não só na sociedade, como também no processo penal. Quando é questionada pelas autoridades com tais perguntas: "qual a roupa que você estava vestindo?", " o que você fazia sozinha naquele lugar?", "tem o costume de sair à noite?".
Logo, os impactos que sofre uma sociedade por esse tipo de conduta que se pode observar sendo disseminada de todas as partes, é ter um meio social doente e que se não cessada ou diminuída pode levar a perdurar por outras gerações. Umas das consequências presentes é a "cultura do estupro", termo utilizado para definir determinados atos de violência contra a mulher, principalmente a violência sexual que as pessoas tentam normalizar com justificativas.
No entanto, o crime de estupro, e se tratando especificamente da vítima mulher obteve uma notoriedade no ambiente jurídico. No que pode-se observar a elaboração de normas que versam sobre a proteção da mulher e a criminalização de algumas condutas que, por ora, eram tidas como atos comuns perante a sociedade.
Para, Anderson Burke:
Os ordenamentos jurídicos pelo mundo, tal como o brasileiro, avançaram e reconhecem os direitos das vítimas de crimes, assim como positivaram instrumentos e institutos jurídicos para se tutelar referidos direitos. O paradigma atual está na mudança de cultura jurídica em promover a vítima, aprimoramento nos institutos existentes e criação de novos mecanismos que confiram protagonismo aos ofendidos no cenário penal (2019, p.28)
As mudanças ocorridas na legislação brasileira, embora tenham favorecido de alguma forma, e conforme o autor Anderson Burke afirma, ainda não são suficientes para a resolução da maioria dos casos, uma vez observada a instabilidade dos institutos jurídicos ao decorrer de um processo, sobretudo, dos crimes sexuais e aqui referindo-se ao crime de estupro, conforme o artigo 213 do Código Penal.
Destarte, visto que ao tentar resolver esses casos o Estado acaba, em diversas vezes, gerando a própria revitimização do ofendido.
2.3. VIOLÊNCIA E SUAS CLASSIFICAÇÕES
A violência pode ser considerada uma sequência de atos que provocam danos à alguém, sejam eles físicos, morais, psicológicos ou sexuais. Nesse sentido, é possível analisar que o conceito de violência é muito amplo e a partir que de cada cultura e na história da humanidade ele pode diferenciar. Embora, algumas ações tenham sido consideradas normais em parte da história, nota-se que atualmente muitas delas estão classificadas como crime. Assim era o crime de estupro, como foi observado na evolução histórica.
Ao se tratar dos diferentes modelos de violência pode-se destacar a violência física.
De acordo com Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, a violência física, também conhecida como vis corporalis, pode ser praticada de diversas formas, bem como tapas, socos, facadas, queimaduras, empurrões, dentre outros. Produzidos mediante força física, esses danos podem ou não deixar marcas visíveis. (SANCHES E BATISTA,2015)
Assim, reduzir a capacidade de defesa da vítima é um dos principais objetivos do agressor. A violência física pode causar lesões de natureza leve, grave ou gravíssima de acordo com o art.129 do Código Penal.
Art.129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - Detenção. de três meses a um ano.
Intrínseca aos crimes contra a honra do Código Penal, a violência moral é praticada por meio da difamação, injúria ou calúnia. Previstos nos arts. 138, 139 e 140 do Código Penal.
Calúnia Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena - Detenção de seis meses a dois aos, e multa.
Difamação Art. 139 - Difamar alguém imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação: Pena - Detenção, de três meses a um ano, e multa.
Injúria Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - Detenção, de um a seis meses, ou multa.
Para André Zacarias (2015), violência moral ofende a honra do sujeito, sendo assim existem a honra objetiva e subjetiva, a primeira está relacionada aos atributos morais, intelectuais e físicos. A segunda, à estima própria.
Assim, ofender a reputação de alguém é tão deplorável quanto agredi-la fisicamente. E ambos causam danos psicológicos, mas ao se tratar das mulheres como vítimas de tais violências, pode-se dizer que o dano é ainda mais grave, uma vez constatada a sobrecarga histórica presente na sociedade.
Com isso, a violência psicológica pode se tornar em diversos momentos até mais grave que a violência física, visto que a nocividade causada é irreparável.
Segundo Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (2015), a violência psicológica configura a vis compulsiva. No entanto, é a partir de um comportamento opressor que o agente comete este tipo de violência, fazendo com que a vítima sinta-se humilhada, rejeitada e discriminada e o agente sente prazer ao inferiorizá-la e amedrontá-la.
Seguindo essa linha de raciocínio, é possível ainda destacar a violência sexual que no entanto se mostra tão grave quanto qualquer outra. Essa pode ser cometida mediante violência física ou não, muitas vezes é uma violência silenciosa, pois as vítimas tendem a não relatar os fatos, seja por medo das consequências sociais ou até mesmo da própria persecução criminal.
Destarte, é perceptível que na legislação existem leis, portaria e decretos com o objetivo de amparar as vítimas que sofrem ou sofreram algum tipo de violência, especialmente a violência sexual que carrega todos os males das demais. No entanto, a Portaria 485/2014 do Mistério da Saúde prevê que a vítima de violência sexual deve ter um apoio e acolhimento com base no princípio da dignidade da pessoa humana. Afirmando a humanização no atendimento desses casos.
2.3.1. Violência sexual contra a mulher e suas consequências psicológicas
Conforme a Lei n° 11.340/2006, Lei Maria da Penha, em seu art. 7°, inciso III. Entende-se por violência sexual:
III - A violência sexual, entendida como qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimonio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
Como se vê, o dispositivo acima transcrito afirma que a violência sexual pode ser cometida mediante outros tipos de violência, trazendo uma sobrecarga, física, moral e psicológica. Chega a ser tão dolorosa quanto qualquer outra. A mulher que sofre sobre esse mal passa por consequências irreparáveis.
Para Antônio de Pádua Serafim, Daniel Martins de Barros e Sérgio Paulo Rigonatti:
O estupro, enquanto violência sexual, física e psicológica praticada dentro e/ou fora do ambiente doméstico familiar, é matéria de tamanha relevância que tem recebido tratamento especial não só nas conferências de direitos humanos, como também dentro dos próprios Instrumentos internacionais de Direitos Humanos (RIGONATTI,2006, p. 88).
Embora o ordenamento jurídico brasileiro seja dotado de normas, leis, resoluções, dentre outros tipos de legislações que tentem coibir, senão diminuir esses tipos delituosos, bem como prestar uma assistência adequada à vítima de violência sexual. Pode-se verificar que há muitas lacunas e falhas na execução de tais instrumentos.
Segundo dados do Atlas da violência produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), e pelo Instituto de Pesquisa Econômica e aplicada (Ipea, 2016):
Em termos psicológicos violência sexual pode resultar em diversos transtornos, tais como depressão, fobias, ansiedade, uso de drogas ilícitas, tentativas de suicídio e síndrome de estresse pós-traumático.Os danos psicológicos podem ser tão ou mais graves que os danos físicos, Em alguns casos, a ausência de marcas físicas da violência sofrida impede o reconhecimento da agressão, colocando em dúvida a palavra da vítima.
Ao se deparar com uma sociedade e uma persecução criminal que ao invés de acolher a mulher, a julga e discrimina por tal fato. É uma sociedade e estado que ainda precisam de reparações. E as consequências psicológicas geradas nessa vítima é ter que além de conviver com todo o trauma já causado pela violência, ela tenta também ceifar essas dores com o suicídio.
3. AÇÃO PENAL
O professor e jurista Aury Lopes Jr., argumenta que a ação penal pode ser entendida como um direito de invocar o Estado-Juiz para aplicar a lei penal a um determinado caso.
Ainda Aury Lopes Jr.:
Concebemos a ação como um poder político constitucional de acudir aos tribunais para formular a pretensão acusatória. É um direito (potestativo) constitucionalmente assegurado de invocar e postular a satisfação da pretensão acusatória. Mais específico, o art. 129, I, da Constituição assegura o poder exclusivo do Ministério Público de exercer a ação penal (melhor, a acusação pública).(LOPES2019,p.222)
O autor André Zacarias preleciona que:
Concluído o inquérito policial instaurado de oficio ou em decorrência de notitia criminis, ou com a apresentação de elementos suficientes, pode ser instaurada a ação penal, em razão da titularidade da atuação, nosso Código Penal, num critério subjetivo, divide as ações condenatórias em ação penal pública e ação penal privada (ZACARIAS,2015, p. 85).
Nesse sentido, a ação penal será privada quando instaurada mediante queixa crime e será pública nos casos de denúncia. Além disso, a propositura para as ações penais públicas será de legitimidade do Ministério Público (MP), que representado pelos Promotores e Procuradores de Justiça.
3.1. PRINCÍPIOS A SEREM OBSERVADOS
A ação penal pública, seja ela incondicionada ou condicionada à representação do ofendido ou de requisição do Ministério Público, é regida pelos seguintes princípios: a obrigatoriedade, a oficialidade, a indisponibilidade, a indivisibilidade e a intranscendência.
3.1.1. Princípio da obrigatoriedade
Segundo Aury Lopes Jr. relata abaixo que:
A ação penal de iniciativa pública está regida pelo princípio da obrigatoriedade, no sentido de que o Ministério Público tem o dever de oferecer a denúncia sempre que presentes as condições da ação anteriormente apontadas (prática de fato aparentemente criminoso. (LOPES, 2019, p.238).
Caso existam elementos suficientes que indiquem o a ocorrência de um pretenso ato criminoso, o Ministério Público fica obrigado a promover a ação penal. Logo, o Ministério Público é obrigado a agir.
Entretanto, o Autor Aury Lopes Jr., adverte:
Não estando presentes essas condições, deverá o promotor postular o arquivamento do inquérito policial ao juiz. Não poderá o promotor arquivar o inquérito (menos ainda a polícia, nos termos do art. 17 do CPP) senão postular seu arquivamento ao juiz. Em última análise, a decisão de arquivamento é de competência do juiz (LOPES, 2019, p.238).
Nesse sentido, somente o juiz poderá decidir a respeito do arquivamento do inquérito, ato iniciado, a pedido do Ministério Público.
3.1.2. Princípio da oficialidade
Conforme o artigo 129, inciso I da Constituição Federal, em que estabelece as funções institucionais do Ministério Público. Fica exposto que o órgão deve promover, privativamente, a ação penal pública na forma da lei. Assim , o Ministério Público se torna o órgão oficial para a propositura da ação penal pública.
3.1.3. Princípio da indisponibilidade
Esse princípio está intrínseco ao artigo 42 do Código de Processo Penal, e dispõe que o Ministério Público é proibido de desistir da ação que tenha interposto. Contudo, se verificado que o acusado é inocente ou até mesmo pela falta de Indícios de autoria, restando assim somente a dúvida, pelo princípio da presunção de inocência - in dubio pro reo -, o MP pode, ainda assim, pedir a absolvição do acusado.
3.1.4. Princípio da indivisibilidade
O autor Fernando da Costa Tourinho Filho (2009, p. 141) afirma que:
A indivisibilidade da ação penal é uma consequência lógica do princípio da obrigatoriedade ou legalidade. Se o ministério Público, satisfeitas aquelas três condições, fato típico, autoria conhecida e respaldo probatório, deve promover a ação penal.
Dessa forma, caso um crime tenha sido cometido por um grupo de pessoas, existindo ali o concurso de pessoas, a ação penal deve abranger a todos eles. Pois, não é possível que o Ministério Público, recaia sobre o direito de escolha sobre a quem deve ou não mover a ação penal. A todos os participantes devem ser atribuído o mesmo tratamento, nas devidas proporções.
3.1.5. Princípio da intranscendência
Segundo Aury Lopes Jr.
Da mesma forma que a pena não pode passar da pessoa do condenado, não pode a acusação passar da pessoa do imputado. A regra não possui maior relevância processual, pois a situação vem circunscrita, previamente, pelo Direito Penal. A acusação está limitada, na sua abrangência subjetiva, aos limites impostos pelo Direito Penal no que se refere à autoria, coautoria e participação. Não havendo o vínculo concursal, não há que se falar em transcendência da pena ou da acusação. Assim, a acusação somente pode recair sobre autor, coautor ou partícipe do delito (LOPES,2019, p. 242)
Se verifica, portanto, que a ação penal deve ser proposta em relação aquele ou aqueles que de fato contribuíram para a ocorrência do crime. Esse princípio encontra-se intrínseco também ao princípio da pessoalidade da pena, elencado na Constituição Federal no artigo 5°, inciso XLV. Ou seja, a pena não poderá passar da pessoa do condenado.
3.2. DIFERENÇA ENTRE AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA E A AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO
Exercida mediante denúncia, a ação penal pública incondicionada será promovida exclusivamente pelo Ministério Público. Ainda assim, como esclarece o artigo 41 do Código de Processo Penal, a denúncia deverá conter a exposição do fato criminoso com todas as circunstâncias, a classificação do acusado ou esclarecimentos pelo qual se possa identificá-lo, bem como a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas.
Se os elementos do artigo 41 do Código de Processo Penal não se fizerem presentes durante o ato de denúncia, o juiz deve, por inépcia judicial rejeitá-la.
Segundo artigo 395, inciso I do Código de Processo Penal:
Art. 395 - A denúncia ou queixa será rejeitada quando:
I - For manifestamente inepta.
Além disso, o prazo para o oferecimento da denúncia será de 5 dias, caso o réu esteja solto, ou de 15 dias se ele estiver preso, conforme o art. 46 do Código de Processo Penal.
A ação penal pública condicionada à representação pode ser entendida, conforme preleciona Aury Lopes Jr., como:
Uma ação de iniciativa pública, mas que está condicionada a uma espécie de autorização do ofendido, para que possa ser exercida. Essa autorização é a representação. De qualquer forma, o que importa é que o MP não pode proceder contra alguém sem que exista essa autorização do ofendido, nem mesmo o inquérito pode ser formalmente instaurado sem ela (LOPES,2019, p. 246).
O que diferencia a ação penal pública condicionada à representação da ação penal pública incondicionada é o fato da necessidade de que o ofendido faça a representação. E, assim, o Ministério Público possa oferecer a denúncia.
3.3. A AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA E O DIREITO DE ESCOLHA DA MULHER
Ocorrida a alteração do artigo 225 do Código Penal, conforme a Lei n° 13.718/18, fica esclarecido que os crimes dos Capítulos I e II, não são mais procedidos mediante a ação penal pública condicionada à representação, e sim pela ação penal pública incondicionada, visto que não necessita da representação do ofendido, ou seja, a vontade da vítima não é questionada, pois basta que o Ministério Público por meio de denúncia seja acionado para dar início a ação penal.
Segundo os autores Aury Lopes Jr., Alexandre Morais da Rosa, Marília Brambilla e Carla Gehlen (2018), adverte que:
Não são raros os casos em que a vítima (maior e capaz) sofreu um processo de revitimização seríssimo ao ter que comparecer a um processo penal que ela não queria e não desejava, tudo por conta do antigo modelo de ação penal pública incondicionada agora ressuscitado. Um fato ocorrido muitos anos antes, que agora era presentificado sem que ela quisesse, a expondo a constrangimentos familiares (em muitos casos já estava casada e com filhos, sem que tivesse revelado o fato a eles), no local de trabalho (pois precisa faltar para comparecer em juízo) e a levando a um sofrimento que não desejava. Enfim, nesse ponto, o legislador desconsiderou completamente a liberdade da vítima (maior e capaz, sublinhe-se), que agora não mais poderá decidir se deseja levar adiante a persecução estatal ou não, pois ela poderia preferir não se submeter a exposição (muitas vezes vexatória e humilhante) do processo penal.
A alteração da ação penal pública no casos de estupro contra a mulher, ao contrário de beneficiá-la, prejudicou-a. Como alguns doutrinadores afirmam, passou a colocar a vítima em posição de cumprir a vontade do Estado e não mais o seu próprio desejo. Essa mudança, excluiu um dos direitos mais importantes da Constituição Federal, que é o direito à liberdade, sobretudo o de escolha, pois a vítima se vê obrigada a dar continuidade ao processo penal. E se tratando aqui da mulher que por ora, carrega uma história dolorosa na luta para ter os seus diretos garantidos.
3.4. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA E A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO DE CRIME DE ESTUPRO CONTRA A MULHER
Ainda Aury Lopes Jr. et al.(2018):
Portanto, agora, a ação penal será pública incondicionada para todos os casos (antes a regra geral era que fosse condicionada à representação da vítima e incondicionada nos casos de vulnerabilidade). Neste ponto pensamos que andou mal o legislador e, ao aparentemente ampliar a proteção da vítima (maior e capaz), o que fez foi menosprezar sua capacidade de decisão, escolha e conveniência. A exigência de representação para vítimas maiores e capazes, por ser um ato sem formalidade ou complexidade, assegurava à vítima o direito de autorizar ou não a persecução penal. Era uma condição de procedibilidade que denotava respeito ao seu poder decisório, importante neste tipo de delito, em que a violência afeta diretamente a intimidade e privacidade, além da liberdade sexual.
O Ministério Público entendido como o custos legis, ou seja, o guardião da lei, tem a função de ser um órgão acusador, mas principalmente a de ser um ente de proteção.
Acontece que muitas vezes ao longo da história a mulher se encontrava em uma posição de inferioridade no meio social. E diante da ocorrência de um crime de estupro, passava a ser culpabilizada e menospreza. Por esse fato o Ministério Público, visto também como um ente de proteção não deveria estar somente preocupado em punir e aplicar a lei penal ao criminoso, mas sobretudo em ter a sutileza em presta a dignidade e proteção adequada à vítima. Para que dessa forma não venha a ocorrer a vitimização secundária, fazendo com que a sofra ainda mais.
Por essa razão, a ação penal pública incondicionada, pode ser considerada uma força do Estado sendo posta sobre a manifestação volitiva da vítima. E no caso de um crime de estupro, por vontade do Ministério Público deve agora, comparecer nas fases processuais. Relembrando a todo momento o mal sofrido e em muitos sendo estigmatizada pela cultura patriarcal presente ainda na sociedade.
3.4.1. A atuação do Ministério Público nos crimes de ação penal pública condicionada a representação
Na ação penal pública condicionada à representação, Ministério Público tem como exercício manifestar a vontade do ofendido ou de seu representante legal. O Ministério Público, portanto, não pode propor a ação penal sem que antes o ofendido tenha manifestado interesse.
Ainda assim, a legitimidade para representar o ofendido pode ser também do representante legal ou por seu procurador com poderes especiais como afirma o autor André Zacarias (ZACARIAS,2015, p.88)
Essa representação pode ser feita diretamente ao juiz, promotor ou autoridade policial, pode ainda ser feita de forma escrita ou oral, no prazo decadencial de seis meses
A ação penal pública condicionada à representação, expressa claramente que o interesse do ofendido pode em determinados casos se sobrepor ao interesse público, manifestando a sua vontade de dar início ou não a persecução criminal, principalmente quando a matéria versa sobre fatos que podem lhe causar mais dores durante o processo do que aqueles já ocasionados pelo crime.