A pandemia da COVID-19 impactou as relações de trabalho e exigiu do Poder Público ações imediatas e urgentes, em que se permitiu, inclusive, a flexibilização de direitos trabalhistas durante o estado de calamidade pública na busca da preservação do emprego e da renda.
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o surto da doença como pandemia. No Brasil, o Decreto Legislativo n. 6, de 20 de março de 2020, reconheceu oficialmente o estado de calamidade pública até 31.12.2020, permitindo-se a lídima instituição de medidas necessárias como providências paliativas à situação calamitosa.
Em decorrência de tal reconhecimento, editaram-se diversas normas, dentre elas, a Lei n. 13.379/20 que impôs o isolamento social, a quarentena, o uso obrigatório de máscaras de proteção individual, dentre outras medidas, a fim de conter o surto do vírus e o colapso dos serviços de saúde, o que impactou na economia, na saúde, na política, nas relações sociais, nas relações laborais e nas relações institucionais[1].
Não há dúvida de que os efeitos da pandemia ainda estão sendo sentidos no Brasil e no mundo, o que exige ações governamentais para minorar a crise econômico-sanitária. Nessa linha de raciocínio foram editadas vários diplomas normativos[2], com o fito de dispor sobre medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de hecatombe econômica.
Recentemente, o Ministério do Trabalho e Previdência Social em conjunto com o Ministério da Saúde, visando à prevenção, ao controle e à mitigação dos riscos de transmissão da Covid-19 nos ambientes de trabalho, promulgaram a Portaria Interministerial MTP/MS nº 14, de 20 de janeiro de 2022, a qual estabelece que a empresa deve afastar das atividades laborais presenciais, por dez dias, os trabalhadores considerados casos confirmados de Covid-19 (item 2.5) ou casos suspeitos (item 2.7) e os trabalhadores considerados contatantes próximos de casos confirmados de Covid-19 (item 2.6), podendo reduzir o afastamento desses trabalhadores das atividades laborais presenciais para sete dias desde que estejam sem febre há 24 horas, sem o uso de medicamentos antitérmicos, e com remissão dos sinais e sintomas respiratórios no primeiro caso (item 2.5.1) e desde que tenha sido realizado teste por método molecular (RT-PCR ou RT-LAMP) ou teste de antígeno a partir do quinto dia após o contato, se o resultado do teste for negativo no último caso (item 2.6.2), devendo o contatante próximo apresentar documento comprobatório da doença.
Pondera-se que a portaria prevê critérios para aplicação desses afastamentos, sendo considerado caso confirmado o trabalhador que apresente (item 2.1): síndrome Gripal SG (febre, tosse, dificuldade respiratória, distúrbios olfativos e gustativos, calafrios, dor de garganta e de cabeça, coriza ou diarreia item 2.2.1) ou Síndrome Respiratória Aguda Grave SRAG (dispneia e/ou desconforto respiratório ou pressão ou dor persistente no tórax ou, ainda, saturação de oxigênio menor que 95% em ar ambiente ou coloração azulada cianose dos lábios ou no rosto item 2.2.2), associada à anosmia (disfunção olfativa) ou à ageusia aguda (disfunção gustatória) sem outra causa pregressa, e para o qual não foi possível confirmar Covid-19 por outro critério; SG ou SRAG com histórico de contato próximo ou domiciliar de caso confirmado de Covid-19, nos quatorze dias anteriores ao aparecimento dos sinais e sintomas; SG ou SRAG com resultado de exame laboratorial que confirme Covid-19, de acordo com as orientações do Ministério da Saúde; resultado de exame laboratorial que confirme Covid-19, mas sem apresentar sintomas, de acordo com as orientações do Ministério da Saúde; SG ou SRAG ou óbito por SRAG para o qual não foi possível confirmar Covid-19 por critério laboratorial, mas que apresente alterações nos exames de imagem de pulmão sugestivas de Covid-19, de acordo com as orientações do Ministério da Saúde.
Para os casos considerados suspeitos, a portaria dispõe que neles se incluem todos aqueles que apresentem quadro compatível com SG ou SRAG, conforme definição do Ministério da Saúde (item 2.2), bem como considera-se contatante próximo de caso confirmado da Covid-19 (itens 2.3 e 2.4) o trabalhador assintomático que esteve próximo de caso confirmado de Covid-19, entre dois dias antes e dez dias após o início dos sinais ou sintomas ou a data da coleta do exame de confirmação laboratorial (caso confirmado assintomático) do caso, em uma das seguintes situações: teve contato durante mais de quinze minutos a menos de um metro de distância, com um caso confirmado ou suspeito, sem ambos utilizarem máscara facial ou a utilizarem de forma incorreta; teve um contato físico direto, como aperto de mãos, abraços ou outros tipos de contato com pessoa com caso confirmado ou suspeito; permaneceu a menos de um metro de distância durante o transporte por mais de quinze minutos; compartilhou o mesmo ambiente domiciliar com um caso confirmado ou suspeito, incluídos dormitórios e alojamentos.
Nesse tom, os afastamentos dos trabalhadores sem prejuízo do salário encontram previsão no art. 473 da CLT[3]. Já nos casos de afastamentos por motivo de doença, os §§ 3º e 4º do art. 60 da Lei n. 8.213/91 estabelecem que durante os primeiros quinze dias consecutivos ao do afastamento da atividade por motivo de doença, incumbirá à empresa pagar ao empregado o seu salário e que caso a empresa disponha de serviço médico, próprio ou em convênio, terá a seu cargo o exame médico e o abono das faltas correspondentes ao período referido.
Malgrado possa parecer que a portaria em comento trouxe benefício para o trabalhador ao possibilitar o seu afastamento presencial do trabalho sem necessidade de atestado médico, na verdade, não inovou no sistema jurídico, na medida em que apenas alterou o Anexo I da Portaria Conjunta n. 20/2020, que, por sua vez, previa um afastamento maior, de 14 dias, além de medidas sanitárias mais exigentes.
Acrescenta-se que, até o momento, não houve qualquer atualização nas recomendações da Organização Mundial de Saúde acerca da redução do período de isolamento dos infectados, sendo de 10 dias após teste positivo para SARS-CoV-2 apenas para os casos assintomáticos e de 10 dias após o início dos sintomas, mais, no mínimo, 3 dias adicionais sem sintomas.[4]
A portaria mencionada ainda é mais prejudicial do que a original, na medida em que excluiu a previsão de priorização de agendamentos de horários de atendimento ao público para evitar aglomerações e para distribuir o fluxo de pessoas, deixou a cargo do empregador (item 4.6) o retorno às atividades presenciais dos que estavam em regime de teletrabalho ou trabalho remoto, inclusive para os que estão inseridos no grupo de risco (item 7.1) não exigindo mais a desinfecção de ambiente, exceto se houver paralisação e retomada de atividades em caso de contaminação (item 13.1). Quanto ao uso de máscara no ambiente de trabalho houve, outrossim, maior flexibilização, não se exigindo mais das pessoas que adentrem no estabelecimento, além de recrudescer o tempo para a substituição da máscara pelos trabalhadores de três para quatro horas de uso (item 8.2.1). Ademais, no transporte oferecido pela empresa, esta não tem mais a obrigação de priorizar medidas para manter uma distância segura entre trabalhadores, realizando o espaçamento dos trabalhadores dentro do veículo de transporte, mas apenas de obedecer a capacidade máxima de lotação de passageiros, limitada ao número de assentos do veículo (item 11.4).
Provavelmente, o governo considerou o avanço da vacinação no país e a quantidade de casos leves e moderados atuais se comparados aos casos graves, bem como a necessidade de impulsionar a economia em ano eleitoral para reduzir o período de afastamento e permitir as flexibilizações mencionadas, desconsiderando a nova onda de Covid-19 que se espraia pelo nosso país em razão da disseminação da variante ômicron que está atingindo recordes de infecções diárias, no montante de 260.806 novos casos no dia 28 de janeiro de 2022[5], com uma guinada exponencial no número de mortos, totalizando 779 óbitos no mesmo dia[6].
Por tudo isso, acredita-se ser prematuro o momento de arrefecer os períodos de afastamento dos trabalhadores e a flexibilização de outras medidas sanitárias, visto que a pandemia ainda não cessou suas agruras, o que coloca em risco a saúde dos trabalhadores e viola o disposto no art. 7º, XXII, da CRFB, podendo a medida adotada do governo federal trazer mais prejuízos à sociedade do que benefícios.
Referências
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.html. Acesso em: 31 jan.2022.
_______. Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Brasília: Presidência da República, [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm. Acesso em 31 jan.2022
_______. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Brasília, DF: Presidência da República, [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del5452.htmL. Acesso em: 31 jan.2022.
_______. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF. ADI 6.625/DF. Data de Julgamento: 08/03/2021, Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivocms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6.625MC4.pdf. Acesso: 31 jan.2022.
_______. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.. Brasília: Presidência da República, [2022]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em: 31 jan.2022.
_______. Lei n. 13.379, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Brasília: Presidência da República, [2022]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm. Acesso em: 31 jan.2022.
_______. Portaria Interministerial n. MTP/MS nº 14, de 20 de janeiro de 2022. Ministério do Trabalho e Previdência Social. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-interministerial-mtp/ms-n-14-de-20-de-janeiro-de-2022-375794121. Acesso em: 31 jan. 2022
- Cabe registrar, todavia, que o Min. Ricardo Lewandowski, em decisão liminar, em 08/01/2021, na ADI n. 6.625/DF, referendada pelo Plenário do E. STF, em 08/03/2021, prorrogou os efeitos da Lei n. 13.379/2020, cuja vigência era limitada ao prazo do Decreto n. 6/2020.
- A título de exemplo cita-se as Leis ns.14.020/2020, 14.043/2020 e 14.047/2020.
- Art. 473 - O empregado poderá deixar de comparecer ao serviço sem prejuízo do salário: I - até 2 (dois) dias consecutivos, em caso de falecimento do cônjuge, ascendente, descendente, irmão ou pessoa que, declarada em sua carteira de trabalho e previdência social, viva sob sua dependência econômica; II - até 3 (três) dias consecutivos, em virtude de casamento; III - por um dia, em caso de nascimento de filho no decorrer da primeira semana; IV - por um dia, em cada 12 (doze) meses de trabalho, em caso de doação voluntária de sangue devidamente comprovada; V - até 2 (dois) dias consecutivos ou não, para o fim de se alistar eleitor, nos termos da lei respectiva. VI - no período de tempo em que tiver de cumprir as exigências do Serviço Militar referidas na letra "c" do art. 65 da Lei nº 4.375, de 17 de agosto de 1964 (Lei do Serviço Militar).VII - nos dias em que estiver comprovadamente realizando provas de exame vestibular para ingresso em estabelecimento de ensino superior. VIII - pelo tempo que se fizer necessário, quando tiver que comparecer a juízo. IX - pelo tempo que se fizer necessário, quando, na qualidade de representante de entidade sindical, estiver participando de reunião oficial de organismo internacional do qual o Brasil seja membro. X - até 2 (dois) dias para acompanhar consultas médicas e exames complementares durante o período de gravidez de sua esposa ou companheira; XI - por 1 (um) dia por ano para acompanhar filho de até 6 (seis) anos em consulta médica. XII - até 3 (três) dias, em cada 12 (doze) meses de trabalho, em caso de realização de exames preventivos de câncer devidamente comprovada.
- Disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwiO6c7inNz1AhX0IbkGHTVACW8QFnoECAMQAw&url=https%3A%2F%2Firis.paho.org%2Fbitstream%2Fhandle%2F10665.2%2F52318%2FOPASWBRACOVID-1920080_por.pdf%3Fsequence%3D1%26isAllowed%3Dy&usg=AOvVaw1gkFRrYmJquXy_9ZszFpvK. Acesso em: 30 jan. 2022
- Disponível em: https://github.com/CSSEGISandData/COVID-19. Acesso em: 30 jan. 2022
- Disponível em: https://g1.globo.com/saude/coronavirus/noticia/2022/01/28/brasil-registra-779-mortes-por-covid-em-24-h-casos-conhecidos-voltam-a-bater-recorde-totalizando-25-milhoes-na-pandemia.ghtml. Acesso em 30 jan. 2022.