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Análise da evolução das facções e de sua constituição em organizações criminosas

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3 DEFINIÇÃO DE ORCRIM E APLICAÇÃO AOS CONCEITOS DE FACÇÃO CRIMINOSA.

A definição de Organização Criminosa não é simples e, até certo ponto, é perigosa, já que, ao haver a definição, também se limita o conceito, prejudicando a imputação quando do surgimento de novas características da organização. É dizer que não se pode definir com absoluta exatidão o que seja organização criminosa através de conceitos estritos ou mesmo de exemplos de condutas criminosas. Isso porque não se pode engessar este conceito, restringindo-o a esta ou àquela infração penal, pois elas, as organizações criminosas, detêm incrível poder variante. Elas podem alternar as suas atividades delitivas, buscando aquela atividade que se torne mais lucrativa, para tentar escapar da persecução criminal ou para acompanhar a evolução mundial tecnológica e com tal rapidez, que, quando o legislador pretender alterar a Lei para amoldá-la à realidade aos anseios da sociedade-, já estará alguns anos em atraso.

GOMES e CERVINI (1997, páginas 99-100) identificam determinadas características marcantes que revelam a existência de uma associação ilícita organizada: hierarquia estrutural; planejamento empresarial; uso de meios tecnológicos avançados; recrutamento de pessoas; divisão funcional das atividades; conexão estrutural ou funcional com o poder público ou com agente do poder público; oferta de prestações sociais; divisão territorial das atividades ilícitas; alto poder de intimidação; alta capacitação para a prática de fraude; e conexão local, regional, nacional ou internacional com outra organização criminosa. Os autores sugerem que três desses atributos seriam suficientes para qualificar como organizada qualquer associação ilícita. Apesar de a lição estar embasada juridicamente em lei revogada, ainda é válida do ponto de vista doutrinário.

A Lei 12.850/2013 redefiniu legalmente o conceito de organizações criminosas. Segundo o artigo 1º, parágrafo 1º desse diploma normativo, considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.

A partir da definição dada pela Lei 12.850/2013, é possível fazer anotações sobre as ORCRIMs. Em primeiro lugar, o número de integrantes de uma organização criminosa passa a ser de 4 (quatro) e não 3 (três) como estipulado pela Lei 12.694/2012, alterando com isso o artigo 288, CP (o crime de quadrilha ou bando passa a se chamar associação criminosa); são mantidas a estrutura ordenada e a divisão de tarefas e o objetivo de obter direta ou indiretamente vantagem de qualquer natureza; por fim, há um aumento do campo de incidência da Lei, que abrange todas as infrações penais, seja crime ou contravenção penal. Infrações estas cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou de caráter transnacional, não tendo relevância, nessa última hipótese, a pena cominada no tipo penal.

Os conceitos doutrinário e legal são importantes quando se busca definir, no mundo dos fatos, o que vem a ser uma organização criminosa. Para imputar a alguém o crime de participação em organização criminosa, deve-se, antes de qualquer coisa, definir, de forma preliminar, o que vem a ser ORCRIM. Existe a obrigação da autoridade policial e do Ministério Público, ao imputar a alguém tal crime, comprovar preliminarmente que esse alguém participa de uma organização com tais características, sejam cumulativas ou não.

Nem todas as facções criminosas trazem elementos aptos a serem configuradas como ORCRIM. Algumas são meras gangues e, no máximo, associações criminosas. Por isso é importante, ao se investigar e classificar juridicamente cada uma das entidades, classificá-las, fazendo o que se chama, popularmente, de separar o joio do trigo.

Assim, ao analisar no caso concreto a facção, deve-se verificar se essas trazem alguma das características abaixo:

i) Estrutura hierarquizada e permanente.

Existe uma escala hierárquica a ser obedecida entre os afiliados, tendo cada um deles que observar as determinações emanadas do seu superior direto. Além do mais, as organizações criminosas pretendem se perpetuar no tempo, desenvolvendo suas atividades de modo duradouro.

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As principais facções descritas acima trazem de forma indelével tais características, como é o caso do CV e PCC, que seguem um organograma fixo, com células e estamentos bastante organizados. A maioria das facções brasileiras, que nasceram como braços do PCC (como BONDE DOS 40, do Maranhão), seguem o mesmo organograma, como um modelo de sucesso copiado.

ii) Busca incessante de lucros e poder econômico.

É evidente que toda organização criminosa tem suas atividades orientadas para a obtenção de lucros e, consequentemente, poder econômico.

As facções, quando se formam, são como um oásis no meio do deserto da miséria e desgraças sociais. Geram riquezas de forma permanente, atraindo assim novos membros. Muitos jovens de periferia se veem atraídos por essas entidades em busca da riqueza imediata. Por isso essa é uma das características mais fortes das facções criminosas. Vide favelas e vilas espalhadas pelos grandes centros. O herói, o modelo a seguir, costuma ser o traficante, chefe de boca, que tem seu carro ou motocicleta, casa com jacuzzi e todo o poder local. Miséria, riqueza ilícita e uma distribuição de renda, mesmo que torpe, é o que faz as facções serem tão fortes nas periferias (além da violência e poder de intimidação, descrito abaixo).

iii) Alto poder de intimidação, por meio de ameaças ou violência e grande poder de corrupção dos agentes públicos.

A criminalidade organizada mantém estreitas relações com o poder público, atuando na corrupção de seus agentes com o fito de garantir a continuidade de seus negócios escusos. As maiores facções atuam como máfias ou cartéis, seguindo a lógica popularmente relacionada a Pablo Escobar, em que é ofertado plata ou plomo (vide série NARCOS, disponível na plataforma NETFLIX). Ou seja, oferece uma parcela da riqueza amealhada ou o chumbo quente das armas. Um sistema organizado como as facções não sobreviveria sem o uso cirúrgico ou expansivo da violência e da corrupção policial ou política. O crime organizado é um câncer que se infiltra dentro das células do corpo social e o corrói aos poucos. Em um primeiro momento há convivência, e, em um segundo momento, o câncer (crime) destrói o corpo (sociedade). Desde as máfias clássicas, como a Yakusa e a cosa mostra, até os recentes cartéis mexicanos e colombianos, passando pela Ndrangueta italiana e máfia russa, todas tem essas características. Uso de força como coação e corrupção dos tecidos sociais e de agentes públicos.

A violência, no geral, não é boa para os negócios. Assim, quando há paz, geralmente as facções estão no auge do lucro. Durante processos de guerra civil entre facções (vide disputas entre FDN e PCC entre 2017 e 2020, amplamente noticiadas pela mídia) ou guerras das facções contra o Estado (ocupação das favelas do Rio, toques de recolher em Fortaleza ou ataque a agentes policiais em São Paulo), houve diminuição do lucro. Por isso se há disputas ou guerras, essas têm que ser rápidas e cirúrgicas. Se houver uma situação de empate, tréguas são assinadas, com sobrevivência mútua, já que o mercado permite a sobrevivência de mais de um grupo.

No geral, o uso de violência e corrupção, acaba corrompendo a estrutura de combate ao crime organizado. Policiais, Promotores de Justiça e juízes, por melhor intenção que tenham, são seres humanos, que temem por suas vidas. Facções e milícias (outra forma brasileira de ORCRIM, não objeto do artigo) demostram claramente que podem passar por cima de qualquer agente público estatal, e, assim, acabam desincentivando qualquer óbice às suas linhas de ação (vide caso da juíza Patrícia Acioli, executada pela milícia carioca e a execução de agentes prisionais a mando do PCC).

iv) Desenvolvimento de atividades de caráter social em substituição ao Estado.

As organizações criminosas aproveitam-se da inércia estatal, realizando prestações de toda espécie em favor da comunidade que está sob o seu domínio, angariando com tal conduta a simpatia e o respeito dos locais, o que dificulta ainda mais a atuação dos órgãos de persecução penal.

O Comando Vermelho tem uma CENTRAL DA AJUDA, que atua na distribuição de cestas básicas e outros benefícios sociais. Parte da população favelada, já acostumada a ver o Estado apenas quando esse sob o morro com fuzis, tende a dar apoio aos criminosos, criando travas às operações policiais (manifestações, fechamento de ruas etc.) ou os dando fuga. Esse processo, com maior ou menor grau, ocorre em todos os estados onde facções atuam.

A miséria, a cidade irregular e a péssima distribuição de renda não são desculpas de per si para que o excluído vire criminoso (já que as vítimas potenciais do crime são outros excluídos), mas são, inegavelmente, fatores que facilitam a expansão e estabilização do crime e do chamado Estado Paralelo.

v) Utilização de tecnologia avançada.

A tecnologia faz parte da rotina de grandes empresas e, como não poderia ser diferente, também é cada vez mais absorvida por organizações criminosas. Os meios de comunicação avançados, as técnicas modernas de ocultação patrimonial (lavagem de dinheiro), como uso de criptomoedas e uso de escritórios digitais (hackers e crackers), aliados à capacidade de mutação das ORCRIMs e da burocracia dos aparelhos de repressão, tem facilitado cada vez mais a expansão e consolidação do crime organizado no Brasil.

As facções criminosas inserem-se nas afirmações acima. O uso de aplicativos de celulares e ferramentas de videoconferência são cada vez mais utilizadas por essas entidades, seja no comércio de drogas e logística de outros crimes, seja na facilitação de reuniões entre células (centrais ou sintonias). O Estado repressor tem as barreiras legais da burocracia e da proteção à privacidade em sua linha de ação, barreiras essas que não se aplicam às facções.

vi) Impacto social negativo e interferência nas estruturas oficiais de poder.

Como afirmado acima, podemos nos referir ao crime organizado usando a metáfora do câncer. No início, a doença convive com o corpo, mas vai aos poucos absorvendo a energia vital desse, e, quando a metástase está completamente espalhada, o corpo morre. Há organizações tão engendradas com as estruturas oficiais que às vezes a própria entidade estatal se confunde com a ORCRIM.

A violência e a corrupção, inerente ao crime organizado, prejudicam a vida em sociedade. As facções criminosas, ao lado da tradicional corrupção brasileira do colarinho branco e das milícias, atingem o corpo social da mesma forma.

Em suma, para ser classificada como ORCRIM, a facção deve preencher os requisitos acima, mesmo que parciais. Segue abaixo algumas considerações específicas sobre as características de FACÇÕES CRIMINOSAS, para facilitar a sua classificação como ORCRIM.

vii) O interesse e a influência de grupos criminosos (facções, milícias, ORCRIm) no processo político eleitoral brasileiro.

Em entrevista feita de dentro da penitenciária por dois dos maiores criminosos brasileiros, líderes de facções criminosas, Marcinho VP e Fernandinho Beira Mar (Programa Câmera Record), os mesmos relataram com detalhes o flert das facções criminosas com a política. A própria filha de Fernandinho Beira Mar foi eleita vereadora de Duque de Caxias-RJ, em um processo eleitoral que pode ter relação com a facção criminosa comandada pelo pai (vide: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/03/4911513-vereador-e-morto-em-caxias-e-filha-de-fernandinho-beira-mar-assume-cargo.html , acesso em 08 de março de 2022).

É bem verdade que por consectário lógico, só um néscio poderia duvidar dessa realidade, sobretudo, ante a dominação territorial (morros, favelas e periferias em geral) por grupos criminosos. Desta feita, em regra, somente pessoas abençoadas por estes grupos têm acesso a tais áreas e, portanto, somente aqueles condescendentes de alguma forma com o crime tem trânsito livre nestes recintos (o filme Tropa de Elite, em que pese ser uma obra de ficção da cinematografia brasileira, retrata fatos reais que aconteceram nas campanhas eleitorais do Rio de janeiro, quando candidatos a governador, a deputado e até secretário de segurança pública tiveram o apoio de traficantes, os quais sem quaisquer escrúpulos comemoravam armados, com música e muita droga o apoiamento a tais políticos em showmícios).

A realidade nua e crua, infelizmente, é essa. Chefes de facções criminosas já se deram conta do poder político que detém em suas áreas de dominação e, que bem explorados, podem ser angariadores de vantagens múltiplas, desde a interferência direta em ações policiais (impedindo, por exemplo operações, em determinadas áreas), assim como implementação de políticas públicas em áreas escolhidas sob o crivo do crime, no afã de se conseguir cada vez mais apoio popular, alimentando e retroalimentando todo o sistema criminoso. Ademais, o crime tem cada vez mais evoluído, de tal forma, que não somente prestam apoio a políticos oportunistas sem caráter, como também têm lançado ultimamente suas próprias representações no cenário político, oriundos de núcleos criminosos.

O fato é que se se pensar em democracia como a escolha livre realizada pelo cidadão, afeta tão somente a sua própria consciência nesse processo político de escolha dos destinos de sua nação, através do sufrágio livre e universal, cláusula pétrea pela nossa Carta Magna (art. 60, § 4°, da CF/88), como não concluir que não está havendo um ataque direto ao próprio princípio democrático, quando se conclui que o voto está sendo exercido de forma inconsciente, molestado por interesses espúrios do subterrâneo das forças do crime organizado?

Talvez, hodiernamente, está seja a maior preocupação ante a escalada e a infiltração das facções criminosas, isto é, a possibilidade concreta de corroer e desacreditar nosso próprio sistema político e, portanto, a ideia de cidadania representativa.

Sobre os autores
José William Pereira Luz

Promotor de Justiça do Estado do Piauí

Rômulo Paulo Cordão

Promotor de Justiça do Estado do Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUZ, José William Pereira; CORDÃO, Rômulo Paulo. Análise da evolução das facções e de sua constituição em organizações criminosas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6845, 29 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96766. Acesso em: 23 dez. 2024.

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