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Enriquecimento ilícito não pode ser presumido:

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Agenda 14/03/2022 às 13:10

II – ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA QUE IMPORTAM ENRIQUECIMENTO ILÍCITO

O artigo 9º versa sobre o primeiro tipo da prática de ato de improbidade administrativa, consistente no enriquecimento ilícito do agente.

A Lei nº 14.230/2021 introduziu nova redação ao art. 9º.15

A nova e atual redação tipifica como ato de improbidade administrativa o enriquecimento ilícito do agente público ou do agente político, quando ele recebe qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício irregular de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no artigo 1º, da Lei de Improbidade Administrativa, de forma dolosa.

Parece singela tal alteração, pois somente se enriquece indevidamente quem age com a vontade específica de auferir vantagem ilícita, mas tal inserção veio a ratificar a necessidade da prática de ato funcional de expressa gravidade, onde a vontade livre e consciente de praticar ato ilícito vinculado ao proveito financeiro próprio ou de terceiro se sobrepõe ao dever de lealdade que o agente deve nutrir pelo ente público ao qual está vinculado.

Essa é a razão principal para que fosse inserida na redação atual a seguinte orientação: “mediante a prática de ato doloso.”

Chega-se a essa conclusão, pelo fato de tanto a doutrina quanto a jurisprudência, serem uníssonas em pontificar que o tipo infracional que gere o enriquecimento ilícito somente se configura pela prática de ato doloso perpetrado pelo agente.

Nunca houve divergência sobre tal questão, pois somente se enriquece ilicitamente aquele que pratica ato doloso, não se admitindo o tipo culposo para a tipificação do respectivo ilícito funcional.

Ao ser inserido pelo legislador a recomendação da improbidade administrativa que configura o enriquecimento ilícito ser precedido ou consumado “mediante a prática de ato doloso” , ele quis encerrar algumas dúvidas sobre a inversão do ônus da prova na presente questão, por estabelecer que a vontade livre e consciente do agente que demonstre uma desonestidade é que irá tipificar a presente infração funcional.

O Superior Tribunal de Justiça16 construiu sólida jurisprudência que se a Administração Pública demonstrar uma variação patrimonial incompatível do agente, mesmo que ausente a prática (conduta) de ato funcional, compete ao mesmo demonstrar a respectiva compatibilidade com a renda declarada; esse assunto será analisado no próximo tópico.

Da mesma forma, o Enunciado CGU/CCC nº 8, de 2014 orienta aos órgãos correcionais da Administração Pública Federal no mesmo sentido: “Nos casos de ato de improbidade que importem em enriquecimento ilícito pelo agente público, cujo valor seja desproporcional à evolução do seu patrimônio ou à sua renda, compete à Administração Pública apenas demonstrá-la. Não sendo necessário provar que os bens foram adquiridos com numerário obtido através de atividade ilícita.”

Na verdade, o enriquecimento ilícito é resumido no dicionário Wikipédia como um acréscimo patrimonial pessoal, que deve ser desproporcional, em tão pouco tempo sem justa causa ou declaração à órgão fiscal competente (Receita Federal), decorrente da prática de ato ilícito ou através de tráfico de influência. Havendo lesão ao patrimônio público, causado pelo agente, configura-se crime contra a Administração Pública ou peculato.

Com efeito, mesmo que ocorra variação patrimonial a descoberto, a caracterização da improbidade prescinde da conduta dolosa, e da demonstração de uma desproporção substancial entre o patrimônio do agente público com a evolução de seus rendimentos e demais fontes de seu vínculo no período considerado.

Corroborando o que foi dito, segue o entendimento da COGED, Parecer PGFN/CDI nº 1986/2006, no sentido de que “não é qualquer incompatibilidade que está compreendida no conceito de enriquecimento ilícito, mas somente aquela que se apresente significativa, realmente desproporcional.”

A incompatibilidade de renda irrelevante, menor, indicativa de mera desorganização fiscal do agente público, ou outra circunstância que elida a desonestidade própria dos atos de improbidade, descaracteriza essa atividade material da conduta.

A presunção de enriquecimento ilícito foi construída pela Terceira Seção no MS nº 12.536/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ de 26.09.2008, onde se dissociou da conduta do agente (negativa de elemento subjetivo) tida como ímproba, para dar ensejo à responsabilização objetiva.

Na verdade, o patrimônio desproporcional à renda recebida pelo agente público não pode ser considerado sinal de locupletamento ilícito insuscetível de prova em contrário, pois ele pode decorrer de várias situações legais. A inversão do ônus da prova no presente caso é algo não respaldado pela norma legal, pois o incremento patrimonial pode não ter sido obtido “mediante a prática de um ato doloso”(comissivo ou omissivo).

Parte o poder público da presunção de que os bens desproporcionais à renda ou a normal evolução patrimonial do agente público, adquiridos no exercício do cargo ou da função pública, representam auferimento de vantagem indevida em razão do respectivo vínculo público.

Essa presunção não é absoluta e deve ser ratificada por prova suficiente que o agente público não se equivocou ao fazer a sua declaração de rendas à Receita Federal, pois senão qualquer erro de lançamento ou inabilidade na transmissão ao fisco seria tipificado como improbidade administrativa.

Por certo, essa não é a exegese do presente artigo, visto que ele é direcionado para os agentes públicos que praticam ato doloso desonestos, desmerecendo suas funções em prol de interesses espúrios e imorais, vinculado ao recebimento de vantagem econômica.

A presente infração se conecta a uma conduta extrema do agente que busca um ganho patrimonial. Ausente o acréscimo patrimonial ou o recebimento de vantagem pecuniária, resultante do ato infracional do agente, é eliminada a configuração do enriquecimento ilícito.

Sobre o assunto Marçal Justen Filho[17] afirma:

“A improbidade do art. 9º somente se configura em casos de reprovabilidade extraordinária. Exige o dolo. A culpa não é apta a gerar improbidade nos casos em questão. Assim se passa porque o substrato material consiste na prática de conduta irregular orientada à obtenção de um enriquecimento indevido. Ou seja, é indispensável a consciência e a vontade de violar a ordem jurídica para atingir um benefício patrimonial. Logo, não haverá a consumação dessa modalidade de improbidade quando, por exemplo, o agente esta ai infringir a lei sem o intento de obter enriquecimento.”

A configuração de ato de improbidade administrativa que importe enriquecimento ilícito exige a presença do elemento subjetivo na conduta do agente público, mostrando-se indispensável à demonstração do elemento dolo da prática adotada pelo agente, além da demonstração de um incremento patrimonial incompatível.

Não há como interpretar extensivamente o presente artigo imputando ao agente a responsabilidade objetiva, desatrelando o ato praticado pelo agente da prática dolosa18 e do enriquecimento ilícito do mesmo ou de terceiras pessoas por ele designado, como já dito alhures.

Por essa razão há de estar configurada a infração de forma cabal pelas provas, porquanto ausentes, afastada será a presente imputação.

Na lição de Pedro Roberto Decomain:[19]

“Há necessidade do atendimento de três requisitos, para que o ato seja passível de enquadramento no art. 9º da Lei: a) enriquecimento ilícito, pela percepção da vantagem patrimonial indevida; b) conduta dolosa do agente; e c) vinculação do auferimento dessa vantagem ao exercício do cargo, emprego, função ou atividade na Administração de modo geral.

Encampando a presente lição doutrinária, o Tribunal de Justiça de São Paulo20 decidiu:

"“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. RESSARCIMENTO DE DANOS AO ERÁRIO PÚBLICO - ENRIQUECIMENTO ILÍCITO PERCEPÇÃO DE VANTAGEM PATRIMONIAL INDEVIDA REEMBOLSO IRREGULAR DE DESPESAS INADMISSIBILIDADE.

1. Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de atividade no Município (art. 9°, da Lei nº 8.429/92).

2 - Para caracterização da improbidade do art. 9° da Lei nº 8.429/92 exige-se: a) enriquecimento ilícito pela percepção de vantagem patrimonial indevida; b) conduta dolosa do agente; e c) vinculação da percepção dessa vantagem ao exercício do cargo, emprego, função ou atividade na Administração de modo geral. Concorrência dos requisitos legais. Pretensão à reparação do dano julgada procedente.Sentença mantida.Recurso desprovido.”

O direito administrativo sancionador, tal qual o direito penal, não admite a utilização de analogias ou de interpretações ampliativas para possibilitar que atos que antecedem aos praticados no exercício da função pública sejam tipificados como tal posicionamento da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça[21], que não admitiu que o ato privado projetasse efeitos disciplinares para a relação pública:

Dessa forma, os fatos que dizem respeito ao agente público, desvinculado de sua função pública, não poderão ser objeto de análise pelo Poder Disciplinar, por haver atipicidade da conduta, além da flagrante incompetência da Administração Pública para imiscuir na vida privada das pessoas, que é inviolável, salvo se for precedida da autorização judicial (art. 5º, X e XII, da CF).

Portanto, o agente público somente é responsabilizado civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições, sendo certo que o exercício irregular é aquele verificado após a sua posse, no desempenho de seu mister, consoante lição expressa do art. 121, da Lei n.º 8.112/90, “O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições.”

Vale dizer que, em caso de desempenho funcional irregular (ato comissivo ou omissivo), o agente público pode ser responsabilizado na esfera administrativa (com aplicação de penalidades disciplinares). Por essa razão, a condição sine qua non para que haja a responsabilidade funcional é o exercício irregular da função.

Aliás, outra não é a diretriz do artigo 124, da Lei n.º 8.112/90, quando estipula que “a responsabilidade civil-administrativa resulta de ato omissivo ou comissivo praticado no desempenho de cargo ou função.”


III – AQUISIÇÃO DE BENS OU VALORES DESPORPORCIONAL À EVOLUÇÃO DO PATRIMÔNIO OU À RENDA DO AGENTE PÚBLICO

O inciso VII, do artigo 9º, com a redação dada pela Lei nº 14.230/2021, introduziu mudança fundamental, que é a expressão “em razão deles” , visando qualificar o ato de improbidade administrativa quando o agente público adquirir para si ou para outrem, no efetivo exercício do vínculo público, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do seu patrimônio ou à sua renda.

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Parece insignificante tal alteração, mas na prática faz toda a diferença, visto que a expressão “ em razão deles” vincula a aquisição, para si ou para outrem, no exercício de mandato, de cargo, de emprego ou de função pública, bens de qualquer natureza, decorrentes dos atos descritos no caput do artigo 9º, que juntamente condiciona a prática do ato de improbidade importando em enriquecimento ilícito, a prática de ato doloso.22

Mais claro é impossível!

O legislador alterou tanto o caput do artigo 9º, como o presente inciso VII para evitar as injustiças verificadas com o julgamento feito com base em presunções e inversão do ônus da prova, que não são mais admitidas.

O enriquecimento ilícito não pode ser uma ficção ou construção de interpretações fortuitas do poder público , como uma “ ferramenta” para excluir do serviço público esse ou aquele agente público.

O conceito é vago e possui um alcance avassalador se não for interpretado com razoabilidade e coerência. Isso porque não é qualquer variação patrimonial que será inserida no rol de vantagem ilícita e muito menos caracterizada como ato de improbidade administrativa.

Improbidade Administrativa é conduta e prática de ato funcional ilícito ou imoral, qualificada pelo elemento subjetivo do tipo.

Não pode ser presumido o enriquecimento ilícito, porquanto ele é direcionado para o agente público que tiver determinada desproporção entre o valor de um bem adquirido e a evolução de seu patrimônio, ou renda, verificado pelo mau uso da função pública, ou em decorrência dela. O enriquecimento ilícito deve ser certo e objetivo, decorrente da utilização de cargo, função, emprego público, etc., de forma ardilosa e inescrupulosa, com o recebimento de vantagens patrimoniais ilícitas, que são aplicadas na evolução desproporcional do patrimônio do agente.

Em abono ao que foi dito, agrega-se o fato do presente inciso VII atrelar-se ao caput do art. 9º que é uníssono em estipular o tipo da improbidade administrativa como aquele que importa em enriquecimento ilícito, “em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego...” do agente público, mediante a prática de ato doloso (nova redação dada pela Lei nº 14.230/2021).

Nesse sentido, não há como se presumir que qualquer desproporcionalidade na evolução patrimonial do agente público seja indevida e em razão do vínculo público, pois o princípio é inverso, imperando a presunção de inocência em favor do indivíduo/agente.

Cabendo ressaltar que a Lei nº 14.230/21 incluiu a redação do § 19, inc. II, do artigo 17, da Lei nº 8.429/92, que não permite a inversão do ônus da prova ao réu nas ações de improbidade administrativa.

Assim está escrito o inc. II, do § 19, do artigo 17, da Lei nº 8.429/92:

“Art. 17 (...)

(...)

§ 19. Não se aplicam na ação de improbidade administrativa:

II - a imposição de ônus da prova ao réu, na forma dos §§ 1º e 2º do art. 373 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).” (g.n)

Somente prova robusta é que poderá elidir a presunção de inocência, onde a materialidade da conduta estiver invencivelmente demonstrada, decorrente de ato devasso praticado pelo agente público, que recebe vantagens pecuniárias para incumprir norma de conduta.

Não resta dúvida que a presente questão é polêmica e consiste em saber se a caracterização do tipo de improbidade em questão está condicionado à comprovação do nexo causal entre o enriquecimento desproporcional e a prática de algum ato desleal.

A primeira corrente doutrinária, da qual nos filiamos, defende que não há presunção legal de enriquecimento ilícito[23], incumbindo o Ministério Público provar que a aquisição de bens em desacordo com a evolução do patrimônio do agente público decorreu de determinado ato de improbidade, praticado no exercício de função pública. Isso porque, não há na espécie, qualquer previsão de inversão do ônus da prova.

A regra é o ônus da prova ser de responsabilidade de quem faz a afirmação: “semper onus probandi ei incumbit qui agit”.

Em sentido contrário, respeitados doutrinadores24, com respaldo do Superior Tribunal de Justiça, entendem que há sim a presunção legal de enriquecimento ilícito na espécie, ou seja, o autor da ação de improbidade administrativa não precisa demonstrar o nexo causal entre a prática de ato comissivo ou omissivo e o acréscimo patrimonial do agente público, bastando a demonstração de que há o exercício da função pública e a presunção de que os valores adquiridos são incompatíveis ou desproporcionais à evolução de seu patrimônio ou a renda. Essa corrente defende a inidoneidade do agente público que adquire bens e valores incompatíveis com a normalidade do seu padrão de vencimentos.25

Essa corrente doutrinária e jurisprudencial dominante defende que o dolo é presumido pelo exercício da função pública, sendo o enriquecimento ilícito uma consequência do exercício desleal do agente público.

Se já discordávamos antes dessa posição jurídica, agora com maior ênfase ainda, pois o legislador se concordasse com o dolo presumido pelo exercício da função pública não iria introduzir a expressão “mediante a prática de ato doloso” como consequência do ato de improbidade administrativa, que caracteriza o enriquecimento ilícito, consistente no recebimento de vantagem patrimonial indevida.

Da mesma forma, a expressão “em razão deles” condiciona a conduta do agente público ao efetivo exercício de mandato, cargo, emprego ou função, que acarrete em enriquecimento ilícito oriundo de uma desproporção patrimonial incompatível com a renda, alicerçada ao dolo específico, não sendo mais admitido o dolo genérico ou presumido.

Qual seria a razão da alteração do caput do artigo 9º e do respectivo inciso VII, da Lei nº 8.429/92, com a redação que lhe deu a Lei nº 14.230/2021, se não fosse para condicionar o enriquecimento ilícito em razão do desempenho desonesto do cargo ou da função do agente público?

Para não gerar mais nenhuma dúvida sobre o presente tipo infracional, o § 4º, do artigo 1º, da Lei nº 8.429/92, ao determinar a aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador no sistema da improbidade, reafirmou a necessidade da responsabilidade subjetiva, aquela vinculada ao elemento psíquico que liga o agente ao ilícito praticado, em decorrência da manifestação de vontade consciente e dirigida ao fim colimado.

Trata-se de princípio maior do direito penal (direito sancionador), em oposição à ultrapassada responsabilidade sem culpa-consistente na possibilidade de imputação de um crime a alguém apenas pelo vínculo concreto, objetivo, sem necessidade de demonstração do liame psíquico, subjetivo.

O nexo-causal terá que estar presente, proveniente do enriquecimento ilícito do agente público vinculado ( “ em razão deles” ) única e exclusiva mente à função pública (má-conduta), sem presunções ou dúvidas.

O dano não se presume, e muito menos o enriquecimento ilícito, pois exige a necessidade, no presente contexto jurídico, do ato de ofício (omissivo ou comissivo) como condição sine qua non do presente tipo legal e a prova cabal de que o crescimento patrimonial deu-se em face ao vínculo público, de forma desproporcional.

A lesividade ao erário público decorre da prática de um ato ilícito, e não da presunção do mesmo, que tenha como pressuposto o dolo específico e a má-fé do agente público.

É juridicamente impossível estimar-se um dano decorrente da presunção de que houve enriquecimento ilícito do agente público. O enriquecimento ilícito deve estar inequivocamente presente no âmago do ato ilícito, tanto no tipo objetivo quanto no tipo subjetivo.

Assis Toledo[26] faz importante reflexão sobre o tema, aduzindo que ao tempo da responsabilidade sem culpa, também denominada objetiva, só interessava o fato exterior danoso:

“Desconsiderando-se a existência de alguma ligação, além da simples causalidade física, entre o fato consumado e o agente”.

E assim sendo, surge a noção de culpabilidade, com a introdução da ideia de unir a prática de crime (ilícito) a elementos psíquicos ou anímicos – a previsibilidade e a voluntariedade – como condição da aplicação da pena criminal – nullum crimen sine culpa27 .

Assentados nesses dois elementos anímicos, um volitivo, outro intelectual (o voluntário e previsível), veio a consagração de dois importantes conceitos penalisticos, aplicados de forma direta na ação de improbidade, o dolo e a culpa ( essa última modalidade já não é mais aplicada no contexto da Lei nº 8.429/92), entendidos como elementos subjetivos da conduta criminosa, daí a responsabilidade no direito sancionador não admitir outra forma senão a subjetiva.

Dessa forma, a presunção de enriquecimento ilícito é ilegal, e deve estar conectada a vontade livre e consciente do agente público de produzir resultado antijurídico.

Não se admite, no direito sancionador, a acusação baseada em responsabilidade objetiva, presumida, pelo fato do agente exercer munus público, sem nexo causal com a função ou com o cargo desempenhado pelo mesmo.

A lesividade presumida no âmbito pecuniário, mercê da lesividade à ordem jurídica, é aquela que onera, sem benefícios, o erário público, em proveito próprio do agente público que deu causa ao ilícito.

É essencial, portanto, que restem provados três requisitos simultâneos: a imoralidade do ato impugnado (ato funcional), a lesão aos cofres públicos e o enriquecimento ilícito do agente público, recebimento de vantagem em razão do cargo ou da função.

A ação de improbidade administrativa exige descrição dos fatos com a indicação precisa do comportamento doloso do agente público, em atenção ao princípio da congruência, sobre a imputação e a possível condenação.

Sendo de se considerar que para a caracterização do ato funcional conduta como espécie do gênero de improbidade administrativa é necessário que estejam presentes a ilicitude extrema do ato infracional, o caráter ímprobo do ato e o dolo do agente público em agir de forma ilícita no tipo descrito no presente inciso, no caso a finalidade de um incremento patrimonial.

De forma que, no enriquecimento ilícito cabe, à parte autora (órgão de acusação) demonstrar a aquisição de bens de forma desproporcional à evolução patrimonial ou salarial do agente público, não cabendo a inversão da prova ao acusado, na forma do art. 17, § 19, II, da Lei nº 8.429/92.

Antes da nova redação do inc. VII, do artigo 9º, da Lei de Improbidade, dada pela Lei nº 14.230/2021, como já dito, uma vez comprovada, por prova segura e direta, a desproporcionalidade entre a evolução patrimonial e a renda auferida pelo agente público, entendia o STJ [28] que cabe ao Réu, por sua vez, o ônus de demonstrar a licitude da aquisição dos bens de valor tido por desproporcional:

“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. DESPROPORCIONALIDADE ENTRE RENDA E PATRIMÔNIO. ART. 9°, VII, DA LEI 8.429/92. ÔNUS DA PROVA. ACORDÃO RECORRIDO QUE, À LUZ DAS PROVAS DOS AUTOS, CONCLUIU PELA CARACTERIZAÇÃO DO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

Na apuração do ato de improbidade, previsto no art. 9°, VII, da Lei 8.429/92, cabe ao autor da ação o ônus de provar a desproporcionalidade entre a evolução patrimonial e a renda auferida pelo agente, no exercício de cargo público. Uma vez comprovada essa desproporcionalidade, caberá ao réu, por sua vez, o ônus de provar a licititude da aquisição dos bens de valor tido por desproporcional.

Segundo consignado no acórdão recorrido, à luz das provas dos autos, "logrou êxito o MP em demonstrar que há uma incompatibilidade flagrante do patrimônio amealhado pelo Deputado e seus ganhos públicos de molde a denotar a ilicitude da aquisição patrimonial, não sensibilizando a alegação de que alienou diversos bens ou ser sócio de empresas quando, ainda assim, não justificam a evolução patrimonial e as movimentações financeiras incompatíveis com a renda declarada". Assim, a alteração do entendimento do Tribunal de origem ensejaria, inevitavelmente, o reexame fático- probatório dos autos, procedimento vedado, pela Súmula 7 desta Corte. Precedentes do STJ: AgRg no REsp 1.513.451 ICE, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 26/06/2015; AgRg no AREsp 597.359/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 22/04/2015; AgRg no AREsp 532.658/CE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 09/09/2014.

III. Agravo Regimental improvido.”

Agora, como já dito alhures, é vedada na Lei de Improbidade Administrativa, a inversão do ônus da prova como o Superior Tribunal de Justiça - STJ impunha ao agente público o dever de provar[29] a origem lícita dos valores tidos como desproporcionais, sob nova ótica legislativa, a interpretação jurídica, será enfrentada sob outro foco, vinculado às mudanças introduzidas nos comandos legais já declinados.

Isso porque, a Corte de Justiça firmou jurisprudência [30] no sentido de que em matéria de enriquecimento ilícito, cabe à Administração Pública comprovar o incremento patrimonial significativo e incompatível com as fontes de renda do agente público. Superada essa etapa, é do agente acusado o ônus de demonstrar a licitude da evolução patrimonial questionada pela Administração Pública, sob pena de configuração de enriquecimento ilícito.

Vejamos como será a interpretação da atual redação do inciso VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92.

Benedicto de Tolosa Filho[31] faz, com muita propriedade, a devida distinção entre a diferença do enquadramento legal do acréscimo patrimonial para o Direito Tributário e para a Lei de Improbidade Administrativa, sublinhando a necessidade de uma prova contundente do Poder Público contra o agente público, para que não haja a indevida inversão do ônus da prova:

“O cerne da ação que tipifica ato de improbidade administrativa é o aumento pessoal de patrimônio ou a aquisição disfarçada para terceiros de bens de qualquer espécie, desde que por agente público, no exercício do mandato, cargo, emprego ou função pública, cujo valor não guarde proporção com renda auferida.

Para que o Fisco inicie procedimento na área tributária, basta virem à luz os chamados “sinais exteriores de riqueza”, cabendo ao averiguado provar que os ditos “sinais” são compatíveis com seus rendimentos. Essa premissa precisa ser tomada com o devido cuidado, quando transposta para a esfera dos atos de improbidade administrativa, sob pena de consagração da inversão do ônus da prova. Se na esfera tributária a presunção é suficiente para desencadeamento de procedimento averiguatório, para apuração de eventual ato de improbidade administrativa mister se faz que o autor da ação civil comprove que o patrimônio do agente público é incompatível, decorrente do exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública. A inversão do ônus da prova, embora possa parecer clara pela redação do inciso analisado, deve ser afastada em homenagem ao próprio fundamento do Estado Democrático de Direito. O nexo causal de ato de aumento patrimonial indevido pelo exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, deve ser demonstrado cabalmente pelo autor da ação civil pública.”

A inversão do ônus da prova tem que vir expressamente delineada na lei, o que não ocorreu na espécie da Lei de Improbidade Administrativa, que expressamente proibiu tal presunção, na forma do art. 17, § 19, II, da Lei nº 8.429/92.

Essa inversão do ônus da prova na esfera correicional se concretiza quando se refere a origem da renda auferida pelo agente público, onde é interpretada de forma equivocada, que a suposição legal da Lei de Improbidade Administrativa é de que uma renda não justificada do agente público resulta de atos de improbidade que fundamenta a punição. Ora, a variação patrimonial a descoberto acarreta um indício de possível irregularidade fiscal ou funcional, mas não necessariamente gera comportamento ímprobo do agente público, que deverá ser investigado e provado, pois a conduta ímproba se consuma pela prática de atos ligados à função pública exercida ou em decorrência dela. Ela pode ser advinda de várias situações, não necessariamente de mácula ao vínculo público, daí a importância do acervo probatório e a demonstração do nexo de causalidade.

Cabe esclarecer que a variação patrimonial deve ser significativa, realmente desproporcional, para se poder falar em ato de improbidade administrativa. Isso porque a possível incompatibilidade entre renda auferida e patrimônio deve partir de cálculos aritméticos, fixados com critérios objetivos e confiáveis e não aleatórios, porquanto a caracterização da infração em questão não pode prescindir de um juízo de proporcionalidade sobre a discrepância encontrada.

Com efeito, não se pode admitir incluídos no dispositivo legal condutas que, por sua inexpressividade, estejam a indicar meras desorganizações fiscais, simples questões compreendidas na relação entre fisco e contribuinte.

Assim sendo, para que se investigue se há ato de improbidade que acarreta em possível enriquecimento ilícito do agente, percebe-se que não é qualquer incompatibilidade que está compreendida no conceito, mas somente aquela que se apresenta significativa, realmente desproporcional. O juízo discricionário do poder público deve ser vinculado à proporcionalidade.

A desproporcionalidade indica, como presunção relativa, ato de enriquecimento ilícito. Ela é relativa e pode advir da prática de ato ilícito funcional, mas ela por si só não é capaz de impor a subsunção da conduta do agente em ato ímprobo, em face da necessidade do dolo específico.

A improbidade administrativa resulta da prática de ato devasso e imoral verificado pelo mau uso do vínculo público. O desequilíbrio patrimonial do agente deve advir desse mau comportamento funcional, para se qualificar como improbidade administrativa.

Ora, ainda que em ação de improbidade administrativa alguns tribunais entendam não ser necessário descrever minuciosamente as condutas, e os tipos infracionais imputados a cada agente público, o que discordamos veementemente, dizer que o Réu causou prejuízo ou recebeu vantagem econômica ilicitamente, capaz de gerar desproporcionalidade patrimonial, e por essa razão ocorre a subsunção de sua conduta no presente comando legal parece insuficiente, afinal, incumbe ao autor da ação a delimitação e comprovação da hipótese ímproba. Para tanto, o Ministério Público, ou órgão de lotação do agente investigado possui a seu dispor a persecução disciplinar, onde existe todo o mecanismo legal para investigar e provar não só o enriquecimento ilícito do investigado, como a desproporcionalidade de sua evolução patrimonial, vinculados à prática de ato ilícito.

Daí resulta que os fatos narrados na acusação devem estar aptos à tutela pretendida, tendo em vista que a peça acusatória deve conter a indicação da conduta, omissiva ou comissiva, através da qual o agente público auferiu vantagem patrimonial indevida em razão do exercício do cargo público ostentado.

A pretensão ajuizada não pode ser um “ cheque em branco ” , porquanto o órgão acusador tem o dever de apresentar formulação adequada e fundamento razoável que a torne viável no plano objetivo, ligando-se à subsunção do fato à norma e, consequentemente perquirir a eventual aplicação da sanção pretendida.

Portanto, a ausência de determinação dos atos tidos como ímprobos praticados impede a verificação da adequação típica da conduta ao tipo legal. Levando-se em conta que a ação de improbidade administrativa é algo sério e desgastante para a parte, é necessário que haja, pelo menos, um substrato razoável que justifique a sua instauração, sob pena de inépcia da petição inicial. A prova do enriquecimento ilícito e a desproporcionalidade entre a renda e patrimônio deve ser de competência de demonstração do autor da demanda.32

Na hipótese da Administração Pública tomar conhecimento de fundada notícia ou de indício de enriquecimento ilícito, inclusive evolução patrimonial incompatível com os recursos e disponibilidades do agente público, promoverá a instrução de sindicância patrimonial.33

A sindicância patrimonial é o instrumento, apesar de não ter “reserva de lei” que o poder público possui para demonstrar se o ato funcional é ilícito e a variação patrimonial desproporcional.

Havendo fortes indícios de materialidade e de autoria, dispensa-se a instauração da Sindicância, podendo a autoridade administrativa determinar a imediata instauração do processo administrativo disciplinar.

Concluído o procedimento de sindicância patrimonial nos termos do Decreto nº 10571/2020 (§ 3º do art. 14), a Comissão responsável por sua condução fará relatório sobre fatos apurados, opinando pelo seu arquivamento ou, se for o caso havendo indícios de autoria e de materialidade de enriquecimento ilícito por agente público federal investigado, pela instauração de processo disciplinar visando apuração da prática de ato de improbidade administrativa.

A partir daí, geralmente, é que podem acontecer equívocos por parte do poder investigatório, pois o ônus da prova da prática do ato ilícito funcional é do poder público, bem como da variação patrimonial incompatível com a renda do servidor público deve ser devidamente descrita e comprovada quando da investigação disciplinar ou no curso da ação de improbidade administrativa.

De início é de se registrar que a investigação deverá provar ou demonstrar que o agente público investigado auferiu alguma vantagem financeira ou patrimonial ilegítima, identificando o fato em toda a sua extensão, capaz de ensejar a desproporcionalidade entre a evolução patrimonial e a renda auferida pelo agente, no exercício do cargo público.

Não cabe mais a presunção, há de haver a certeza de que ocorreu a desproporcionalidade da renda ou do patrimônio constituído pelo agente, através de uma conduta extremamente grave, em face do estabelecido no art. 17, § 19, II, da Lei nº 8.429/92.

Essa demonstração da conduta extremamente grave do agente se faz necessária pelo fato da improbidade administrativa que dá ensejo à responsabilização correspondente materializar-se pelo desempenho da função do agente público, que no tipo infracional descrito no artigo 9º, inc. VII, da Lei nº 8.429/92, deve ser precedida de ato marcadamente corrupto, desonesto, devasso, praticado de má-fé ou caracterizado pela “imoralidade qualificada” do agir. Isto porque para que seja caracterizado o ato como de improbidade administrativa é forçoso que se vislumbre ato de má-fé por parte do administrador, senão a ilegalidade se resolve apenas pela acumulação do ato que fere o ordenamento legal. A conduta ilegal só se torna ímproba se revestida também de má-fé do agente público, ainda mais quando se investiga a figura jurídica do enriquecimento ilícito.

Se a Administração Pública não consegue demonstrar uma irregularidade no serviço público, sendo seu dever indelegável tal atribuição, como demonstrar então que determinada conduta é ímproba sem ser precedida do dolo específico?

Não se julga por presunção, e muito menos se “intui” o dolo para a configuração do ato de improbidade administrativa descrito no tipo do art. 9º, inc. VII, da Lei nº 8.429/92.

É dever do órgão de investigação demonstrar, de maneira irrefutável a existência do locupletamento ilícito do agente público, capaz de ensejar-lhe enriquecimento ilícito ou qualquer prova de evolução patrimonial incompatível com o cargo ocupado,34 proveniente da utilização do cargo ou da função pública.

Se de um lado não se pode presumir como ímproba a variação patrimonial incompatível do agente público, de outro deve haver a demonstração da prática do ato funcional (conduta ímproba) que tenha gerado o possível enriquecimento ilícito em questão, capaz de gerar a desproporcionalidade da renda percebida e declarada ao fisco.

Ora, a subsunção da conduta do agente público não é somente a variação patrimonial incompatível com a renda auferida, visto que ela deverá ser subsumida em um ato ilícito praticado no exercício de cargo, mandato, emprego e etc. E a necessidade a ato funcional ímprobo (conduta) retira a conclusão que algumas Comissões Disciplinares fazem, de contratar empresas especializadas em avaliação de bens para reavaliarem imóveis adquiridos pelo agente público no passado, tendo como parâmetro o valor do metro quadrado da época do negócio jurídico no intuito de, encontrando valor presumidamente discrepante com o declarado na escritura pública de compra e venda na visão do órgão disciplinar, e assim, presumir o enriquecimento ilícito, mesmo que desatrelado de ato funcional.

Essa postura de alguns órgãos fiscalizadores não se afigura como correta, porquanto o mercado imobiliário não se rege por tabelamento de preço; o preço do metro quadrado é meramente indicativo de um possível negócio jurídico, pois o que impera nesse tipo de avença é a oferta e a procura, e a necessidade do vendedor se desfazer do seu ativo, em face de suas necessidades prementes.

A escritura pública, lavrada no cartório público possui fé e presunção juris tantum de veracidade.

É certo que o art. 406 do NCPC estabelece:

“Quando a lei exigir instrumento público como da substância do ato, nenhuma outra prova, por mais especial que seja, pode suprir-lhe a falta.”

Essa presunção juris tantum da escritura pública veio destacada no artigo 405 do NCPC:

“O documento público faz prova não só da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o chefe de secretaria, o tabelião ou o servidor declarar que ocorreram em sua presença.”

A respeito, Antônio Carlos de Araújo Cintra leciona [35]:

“Como já se viu anteriormente, documento, no sentido genérico, é coisa representativa de um ato ou fato. E será público o documento escrito, elaborado por oficial público competente, segundo suas atribuições.

(...)

Assim, dizer que é vedado recusar fé aos documentos públicos é o mesmo que dizer que aqueles documentos e a escritura pública estão cobertos por presunção de veracidade. Mas é preciso esclarecer que se trata de presunção simples ou relativa, tendo por objeto a efetiva realização do ato jurídico a que se refere, bem como as circunstâncias de sua realização, tais como declaradas pelo escrivão, tabelião ou funcionário que for o seu autor material. Em outras palavras, entende- se que é, até prova em contrário, com o documento público se dá como comprovado que as partes nele referidas fizeram as declarações que por ele lhe são atribuídas pela forma ali descrita.”

No mesmo sentido é a jurisprudência [36]:

“As certidões emitidas pelos serventuários da justiça gozam de fé pública (presunção juris tantum), cuja veracidade somente pode ser afastada com robusta prova em contrário. Ônus do qual não se desincumbiu o impetrante.”

Em outro aresto 37, se extrai:

“O documento público faz prova não só da sua formação, mas também dos fatos do escrivão, o tabelião, ou o funcionário declarar que ocorreram em sua presença.”

Não só deve ser destacado que as escrituras públicas possuem presunção juris tantum de veracidade, só podendo ser elidida através de ação judicial, onde ocorra declaração do Poder Judiciário que aquele ato jurídico é imperfeito, ilegal ou ilícito.

Jamais uma Comissão Disciplinar poderá elidir a veracidade de um documento público, a partir de realização de uma perícia de avaliação do valor do imóvel, pois neste tipo de negócio jurídico, a regra é a da oferta e da procura, como já dito alhures.

Para que o documento público, que possui fé, não seja considerado, ele deverá estar viciado através da demonstração de fraude, simulação, ardil ou a prática de qualquer ato ilícito.

Somente uma prova direta e concreta de que houve fraude na celebração do negócio jurídico é que, em tese, poderá abalar a credibilidade do que fora atestado pela escritura pública.

A Comissão Disciplinar não possui poderes para invalidar negócio jurídico por meros quantitativos apurados na verificação do metro quadrado do imóvel objeto da compra e venda. A diferença desproporcional do valor do metro quadrado de determinado bem adquirido pode ser indicativo de uma possível simulação de negócio jurídico, mas jamais será tida como prova direta de um possível ardil ou fraude. Para tanto é dever do poder público demonstrar, através de prova direta, de que a escritura foi lavrada com valor não correspondente ao efetivo negócio jurídico firmado entre as partes.

Além do mais, o negócio jurídico privado não se insere no rol de competência do poder disciplinar, se não ficar demonstrado que o agente público utilizou-se de recursos ilícitos, ou praticou ato funcional que lhe possibilitou a aferição de recursos financeiros indevidos (corrupção), não há que se falar em ato ímprobo.

Somente através de ação anulatória de negócio jurídico e através de outra escritura pública é que seria, em tese, retirada a fé pública das escrituras dos imóveis, como decidido pelo STJ:38

“Civil. Escritura Pública. Fé Pública. A fé pública resultante da escritura lavrada em notas de tabelião cede ante os termos de outra, posterior, que lhe reconhece a falsidade ideológica.”

Para a descaracterização do negócio jurídico descrito na escritura pública de compra e venda de imóvel, terá que ser provado, para que a mesma perca a sua presunção de veracidade, que houve simulação, ardil ou fraude, capaz de ocultar a evolução de patrimônio, como já aduzido anteriormente.

Demonstrados, através de prova documental que o documento público (escritura) foi feita com valor inferior aos efetivamente praticados, a simulação e a fraude estarão presentes, devendo as partes responsáveis por tal ardil responder aos termos da presente lei. Exigir dos vendedores dos bens que as escrituras fossem lavradas com valores inferiores aos efetivamente praticados, com o nítido propósito de disfarçar o crescimento do patrimônio do comprador, já demonstra a prática de ato ilícito doloso e de má-fé.

Por seu turno, o critério utilizado nas investigações patrimoniais invade a competência da Receita Federal, como se demonstrará a seguir, furtando-se de estabelecer o parâmetro da conduta e do recebimento de vantagem ilícita.

Como grafado pela Des. Federal Mônica Nobre 39 no tipo de enriquecimento lícito a prática de improbidade administrativa depende da presença dos seguintes requisitos genéricos: recebimento da vantagem e a conduta daquele que ocupa cargo ou emprego, detém mandato, exerce função ou atividades nas entidades mencionadas no artigo inaugural da Lei de Improbidade Administrativa.

Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. Enriquecimento ilícito não pode ser presumido:: nova visão do art. 9º, VII, da Lei 8.429/92, com a redação dada pela Lei 14.230/21. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6830, 14 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96769. Acesso em: 24 nov. 2024.

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