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Datenismo penal e a licença para matar

O governo federal anunciou projetos de alteração na legítima defesa e nas definições de terrorismo, acentuando a necropolítica.

SOFISMO, POPULISMO E EXECUÇÃO COM CHANCELA ESTATAL

No dia 25 de março de 2022, o presidente Jair Bolsonaro fez um anúncio de mais um projeto nefasto e contrário às garantias constitucionais, fomentando mais uma vez o datenismo penal midiático[1] e a banalização de homicídios e execuções com chancela do Estado Brasileiro, em um dos países com maior mortalidade de vítimas pelas mãos das forças policiais.

O projeto enviado ao Congresso nacional amplia as situações que configuram a legítima defesa e também inclui as que envolvem os agentes de segurança, além de alterar a lei de terrorismo.

No ano de 2019, o governo ofertou o chamado pacote anti crime, que propôs alterações na legislação penal e, entre estas propostas, estava a ampliação de situações que configurariam o excludente de ilicitude.

Atualmente, o Código Penal Brasileiro aponta que as causas de excludentes de ilicitude são o estado de necessidade e o estrito cumprimento do dever legal, ou seja, pode ser utilizado por agentes do Estado e, dependendo da circunstância, por qualquer cidadão.

Nos projetos apresentados (três projetos e dois decretos), em um dos textos, altera-se a legislação penal na legítima defesa.

O governo quer incluir no Código Penal uma disposição para prever que a legitima defesa será configurada para evitar ato ou uma iminência de ato contra a ordem pública ou a incolumidade de pessoas, mediante o porte ou utilização ostensiva, por parte do suspeito ou agressor, com arma de fogo ou outro instrumento capaz de gerar lesão corporal de natureza grave ou morte, ou mesmo terrorismo.

A proposta também inclui um parágrafo afirmando que se considera exercício regular de direito a defesa da inviolabilidade do domicílio.

Em outro ponto do projeto, destaca-se uma mudança que reduz as situações consideradas como excesso no direito à defesa, condição que pode impossibilitar a isenção da pena.

Na nova proposta, diz-se que: continuar empregando meios para a defesa, de si ou outrem, mesmo tendo cessado a agressão, só passaria a ser considerado excesso se comprovada a intenção de causar lesão grave ou morte do agressor. Trocando em miúdos, se mesmo após o impedimento a agressão a pessoa seguir se defendendo, só será considerado excesso em caso de comprovação na intenção de ferir ou dizimar o agressor.

Por tal exposto, fica claro que estas mudanças são contrárias à ordem constitucional, visto que o bem jurídico da vida é superior ao patrimônio, embora o Código Penal Brasileiro seja calcado neste ponto.

Porém, observa-se mais uma tentativa de americanizar o entendimento em nossa legislação, sem encontrar nenhum rudimento em nosso ordenamento constitucional.

Mais uma vez, o governo brasileiro tenta usar do datenismo penal midiático para criar incentivos para que policiais possam agir sem qualquer tipo de preocupação em matar, logo, os policiais em ato de ação, poderão ignorar requisitos básicos da legítima defesa, criando um engodo onde irá se banalizar a violência em um dos países com maiores números de execuções e assassinatos oriundos das forças de polícia.

Em outro projeto de lei enviado pelo governo, este propõem fazer uma alteração na definição do crime de Terrorismo, para incluir atos realizados, com emprego premeditado, reiterado ou não, de ações violentas com fins ideológicos ou políticos.

No trecho da lei, com a ampliação ofertada, a definição de terrorismo seria, atentar contra a vida ou integridade de pessoa ou contra o patrimônio público ou privado.

Além disso, existe uma mudança em um parágrafo do projeto, que esclareceu que a regra não se aplicaria à conduta coletiva ou individual de pessoas em manifestações políticas, movimentos sindicais, sociais, religiosos de categoria profissional ou de classe, entre outros.

Em mais um ponto bizarro, o texto enviado pelo governo aos congressistas, inclui em um artigo a necessidade de que a conduta seja de caráter pacifico, sem qualquer explicação plausível de como este caráter é definido.

Percebemos de maneira preocupante, que estas novas condicionantes para a legitima defesa com inclusão de terrorismo entre as ações poderá justificar a ação de seus agentes.

Pensamos que um policiar ao ver uma pessoa com uma arma em mão, poderá atirar sem sequer compreender a situação, poderá atirar alguém, que em seu entendimento, estaria cometendo um ato de terrorismo, e este mesmos terrorismo, inclusive significar danos meramente patrimoniais ou por aspectos ideológicos.

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É salutar, que o Presidente da República segue em campanha desde 1° de janeiro de 2019 e que seus temas principais orbitam com relação às pautas de costumes e de Segurança Pública, mas sempre com um viés reacionário e contrário à todos os acordos humanitários e que permeiam bases democráticas. Este projeto consegue ser mais danoso à sociedade quando o projeto do Pacote Anti-Crime do então Ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro, que teve este trecho vetado, a coisa é ainda mais ousada, na ampliação da impunidade.

Quando um projeto, que na visão do proponente, autoriza que policiais que alguém se sentirem amedrontados, com o ânimo perturbado ou surpreendido terá autorização para ferir ou matar à vontade, o que nos dá um déjà Vu dos piores tempos da história republicana brasileira, nos temidos períodos dos porões da ditadura militar.

A tentativa de ampliar uma licença para matar, com uma redação ainda mais grave que a ofertada no pacote anti-crime, onde sequer dependerá da avaliação subjetiva do juiz.

No projeto de 2019, o trecho que foi então derrubado pelo congresso, apontava que: o juiz poderá reduzir a pena até metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorreu de escusável medo, surpresa ou mesmo violenta emoção. Na atual proposta, é ainda mais perniciosa, visto que não é punível o excesso quando resulta de escusável medo, surpresa ou mesmo perturbação de ânimo em face da situação.

Logo, este novo texto determina previamente não exista uma punição, e para os fins de defesa ou recurso, acaba tendo um peso muito diferente, pois o juiz precisará observar que, de acordo com a lei, aquele ato não será punível e, a partir disso, determinará na sentença que não haverá sanção.

Estas brechas na legislação, aliviam as punições, mantendo a impunidade das forças policiais que atuam contra quem tentar ferir o dito exercício regular de direito da inviolabilidade domiciliar.  Medida que aparenta ter sido pensada para permitir ações mais violentas a ocupações de movimentos sociais, como o MST, e além disso, ampliando o conceito de legítima defesa e repreensões de atos terroristas como na lei 13.260/2016, o que na prática, tornarão os movimentos sociais alvos mais fáceis da violência estatal.

Bolsonaro apontou ter um acordo com os presidentes da Câmara e do Senado para a aprovação deste projeto que amplia os critérios do excludente de ilicitudes.

Agentes do Estado que estejam em operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) não poderão ser presos em flagrante, caso matem alguém alegando legítima defesa e só poderão responder o eventual excesso doloso com a pena atenuada.

Estes pacotes fazem parte do projeto bolsonarista de pautas pleiteadas ao Congresso Brasileiro, onde demandas clássicas deste núcleo político seguem sendo a pauta, mesmo com o desastre governamental e a situação econômica e social dos cidadãos brasileiros.

Assim como este pacote de excludente de ilicitudes, o governo segue com as pautas morais como o combate à chamada ideologia de gênero, assim como Escola Sem Partido, o voto impresso e a redução da maioridade penal, ou seja, tudo aquilo que ficou explícito durante a campanha presidencial de 2018.


CONCLUSÃO

Com as medidas relatadas, dá-se cheque em branco para que o policial se torne juiz e executor, tal qual nos quadrinhos do personagem Dredd[2].

Estamos caminhando para um terreno cada vez mais perigoso, com uma modalidade de terrorismo tupiniquim, completamente fora do direito internacional e dos Direitos Humanos, numa clara tentativa de criar licenças para agravar ainda mais a segregação de pobres, negros e periféricos, além de criminalizar os movimentos sociais.


REFERÊNCIAS

DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 3ª ed. São Paulo: RT, 2017, itens 11.4 a 11.13. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Provas. In

MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis (coord.). As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: RT, 2008, pp. 246-297. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, cap. VIII, itens 4 a 6. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. 4ª ed. São Paulo: RT, 2016, itens 10.1.5 a 10.1.14.

  1. Datenismo são estilos de programas policiais brasileiros, marcados pelo sensacionalismo. É uma referência ao apresentador José Luís Datena que é um dos expoentes do estilo no Brasil.

  2. Dredd ou Juiz Dredd é um personagem de quadrinhos criado no Reino Unido onde o mesmo acumula os cargos de polícia, juiz, júri e executor.

Sobre os autores
Vinicius Viana Gonçalves

Possui Bacharelado em Direito pela Faculdade Anhanguera do Rio Grande (FARG), Pós-Graduação em Ciências Políticas pela Universidade Cândido Mendes (UCAM), Pós-Graduação em Ensino de Sociologia pela Faculdade Única de Ipatinga (FUNIP), Pós-Graduação em Educação em Direitos Humanos e Mestrado em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Também possui formação como Técnico em Comércio Exterior pela Escola Técnica Estadual Getúlio Vargas (Rio Grande/RS), Tecnologia em Logística pela Faculdade de Tecnologia (FATEC/UNINTER). Como pesquisador, foi membro do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos Humanos (NUPEDH) e do Grupo de Pesquisa Direito, Gênero e Identidades Plurais (DIGIPLUS), ambos vinculados ao PPGDJS/FURG. Também atuou como pesquisador vinculado ao Programa Educación para la Paz No Violencia y los Derechos Humanos, no Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos Humanos (Centro de Investigación y Extensión en Derechos Humanos) da Facultad de Derecho da Universidad Nacional de Rosario (Argentina), sob coordenação do Professor Dr. Julio Cesar Llanán Nogueira, com financiamento da PROPESP-FURG/CAPES.

Lucas Moran Costa

Mestrando em Direito e Justiça Social - FURG

Gabriela Mendonça da Trindade

Mestranda em Direito e Justiça Social - FURG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Vinicius Viana; COSTA, Lucas Moran et al. Datenismo penal e a licença para matar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6895, 18 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97829. Acesso em: 22 dez. 2024.

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