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Concretização judicial do direito de greve dos servidores públicos civis na Constituição da República Federativa do Brasil

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Agenda 26/04/2007 às 00:00

6.A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 19, DE 4 DE JUNHO DE 1998, E A RECEPÇÃO DA LEI Nº 7.783/89

Já se mencionou que após a edição da EC nº 19/98, a redação do inciso VII, art. 37, da CRFB foi modificada, deixando de constar a exigência da lei complementar, para se exigir a edição de uma lei específica, que definirá os termos e limites ao exercício do direito de greve.

Sob o ponto de vista das espécies normativas, tem-se que a lei complementar é, seguida pela emenda constitucional, a lei de maior dificuldade em se editar. Exige-se para essa espécie quórum de maioria absoluta (art. 69, CRFB).

Quanto à lei específica, não se encontra menção a esta espécie no rol do art. 59, da CRFB/88 [24]. Diante desse fato, poder-se-ia imaginar a criação de mais uma espécie normativa. Não é o caso. Lei específica é lei ordinária. Veja a lição de Sérgio Pinto Martins:

Em se tratando de matéria de Direito Administrativo e, mais especificamente, de servidor público, cada ente da federação tem competência para estabelecer regras sobre direito de greve para seus funcionários, versando sobre cada ente de forma específica para seus trabalhadores. Esse é o significado de lei específica, pois, do contrário, o constituinte teria dito que a matéria seria regulada por lei ordinária ou por lei, que seria a comum, a ordinária, de competência da União. Empregou, porém, a palavra especificai, para cada uma delas. (2001, p. 50-51).

O legislador teria feito melhor se mencionasse: lei ordinária específica, para que não pairassem dúvidas a respeito. Entretanto, quanto a isto, sabe-se que é ponto pacífico, e que na verdade tal espécie nada mais é que uma lei ordinária detentora de dupla vertente, uma objetiva, concernente à especificidade de regulação por cada ente federativo, e outra subjetiva, concernente à pessoa que deflagra o movimento, podendo haver regulamentações diferenciadas para cada categoria de servidores públicos, de acordo com as peculiaridades que lhe são próprias.

Por outro lado, após ser alterada a redação do dispositivo constitucional, o mesmo não ocorreu com a Lei nº 7.783/89, a Lei Geral de Greve. Em seu art. 16, ainda encontra disposto que, "para os fins previstos no art. 37, VII da Constituição, lei complementar definirá os termos e limites em que o direito de greve poderá ser exercido". Quanto a esta importante situação, Sérgio Pinto Martins se manifesta:

Não se pode dizer que é só substituir a expressão lei complementar por lei específica no art. 17 da Lei nº 7.783/89, que o inciso VII do art. 37 da Constituição recepcionaria a norma da Lei nº 7.783/89. A Lei 7.783/89 não era a lei complementar que fazia referência à antiga redação do inciso VII do art. 37 da Lei Maior. Não foi aprovada por maioria absoluta, como exige o art. 69 da Constituição, mas por maioria simples.

[...]

A greve dos servidores públicos em serviços essenciais não poderá utilizar nem mesmo por analogia a previsão contida na Lei nº 7.783/89, por não ser a lei específica a que faz referência à Constituição, pois regula o tema na área privada. (2001, p. 52).

No sentido diverso, da aplicação analógica da lei nº 7.783/89 à greve do setor público, após a EC nº 19/98, vislumbra-se um trecho do trabalho de Calos Henrique Bezerra Leite:

Cremos que, em virtude da novel Emenda Constitucional ri. 19/98, que não mais menciona ´´lei complementar", mas, tão-somente, "lei especifica", a orientação até então reinante no Pretório Excelso está a exigir urgente modificação.

Ora, diante do atual texto constitucional, parece-nos que, enquanto não for editada a referida lei específica para regular o exercício do direito de greve do servidor público, mostra-se perfeitamente aplicável, por analogia, a atual Lei (específica) de Greve (Lei ri. 7.783/89).

Com efeito, o art. 16 da lei n. 7.783189, que exigia lei complementar para regular o exercício do direito de greve do servidor público, não mais vigora no nosso ordenamento jurídico, porquanto incompatível com o texto atual da Carta Magna. Em outros termos, o art. 16 da LG não foi recepcionado pelo art. 37, VII, da Constituição. (2007, p. 9).

Em reforço a este entendimento, lvani Contini Bramante argumenta:

Visitando o ordenamento, verifica-se que já existe no mundo jurídico uma lei ordinária federal que regula, especificamente, o direito de greve, as atividades essenciais e o atendimento às necessidades inadiáveis da comunidade: a lei 7.783, de 28 de junho de 1989.

Inicialmente, cumpre verificar que o art. 16, da lei 7.783/89, está revogado [...] E, aqui, ocorreu a chamada eficácia revogativa ou eficácia negativa, que também é desobstrutiva, pois a norma constitucional traçou novo esquema dependente para a sua atuação, exigente de uma lei ordinária normativa, diferente do sistema anterior, o qual remetia à lei complementar.

Destarte, a Lei 7.783/89 foi recepcionada, sendo, doravante, aplicável aos servidores públicos, porque em perfeita compatibilidade vertical-formal-material com o Texto Constitucional. Operou-se o chamado fenômeno da eficácia construtiva da norma constitucional, visto que a Lei 7.783/89, que trata do direito de greve, recebeu da Carta Política um novo jato de luz revivificador que a revaloriza para a ordem jurídica nascente, ou seja, aquilo que a técnica jurídico-constitucional denomina de recepção da lei anterior.

É, portanto, dispensável o apelo ou futura interferência do legislador para aperfeiçoar a apliçabilidade da norma constitucional (.,.) Poder-se-ia objetar: a lei 7.783/89 não se trata, obviamente, de lei ordinária reguladora, especificamente, da greve dos servidores públicos civis, mas de empregados regidos por contrato de trabalho. Todavia, a objeção não resiste. Os limites do direito de greve, e até mesmo sua proibição, em certos casos, para algumas categorias específicas de empregados ou de funcionários públicos, justifica-se não em razão do status do trabalhador, mas em decorrência da natureza dos serviços prestados, que são públicas, essenciais, inadiáveis, imantados pelo princípio da predominância do interesse geral. É cediço que os serviços essenciais à comunidade tanto podem ser prestados pelos trabalhadores do setor privado quanto do setor público, cuja abstenção não pode causar aos outros interesses tutelados constitucionalmente, como aqueles possuidores de caráter de segurança, saúde, vida, integridade física e liberdades dos indivíduos. Não se justifica, assim, o tratamento diferenciado ou separado. Onde há a mesma razão, igual deve ser a regulamentação e solução. (BRAMANTE apud LEITE, 2007, p. 9-10).

O Supremo Tribunal Federal, em sede do Mandado de Injunção nº 485/MT, posicionou-se no sentido contrário à aplicação, por analogia, da Lei nº 7.783/89:

EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO. DIREITO DE GREVE DO SERVIDOR PÚBLICO. ARTIGO 37, VII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO LEGISLATIVA. OMISSÃO DO CONGRESSO NACIONAL. 1. Servidor público. Exercício do direito público subjetivo de greve. Necessidade de integralização da norma prevista no artigo 37, VII, da Constituição Federal, mediante edição de lei complementar, para definir os termos e os limites do exercício do direito de greve no serviço público. Precedentes. 2. Observância às disposições da Lei 7.783/89, ante a ausência de lei complementar, para regular o exercício do direito de greve dos serviços públicos. Aplicação dos métodos de integração da norma, em face da lacuna legislativa. Impossibilidade. A hipótese não é de existência de lei omissa, mas de ausência de norma reguladora específica. Mandado de injunção conhecido em parte e, nessa parte, deferido, para declarar a omissão legislativa. (MI 485 / MT relator: Min. Maurício Corrêa, publicado no DJU em 23-08-2002).

Mais recentemente, o Ministro Eros Grau, relatando o MI 712-8/PA [25], define uma provável mudança na perspectiva. Segue um elucidativo trecho de seu voto:

20. Daí porque, de início, não me parece deva ser aplicado ao exercício do direito de greve no âmbito da Administração tão-somente o disposto na Lei n. 7.783/89. A esta Corte impõe-se traçar os parâmetros atinentes a esse exercício.

21. Isso me leva a alterar posição que anteriormente assumi, ao afirmar que a norma veiculada pelo artigo 37, VII é de eficácia contida. Pois é certo que ela reclama regulamentação, a fim de que seja adequadamente assegurada a coesão social. Por isso, ao adotarmos a classificação usual das normas constitucionais segundo o critério da eficácia, devo necessariamente tê-la como de eficácia limitada; e assim a tenho porque esta é conclusão que necessariamente se extrai da interpretação da Constituição no seu todo. A Constituição --- e isso repetirei inúmeras, inúmeras vezes neste Tribunal --- a Constituição não pode ser interpretada em tiras, aos pedaços, porém no seu todo.

[...]

54. Em face de tudo, conheço do presente mandado de injunção, para, reconhecendo a falta de norma regulamentadora do direito de greve no serviço público, remover o obstáculo criado por essa omissão e, supletivamente, tornar viável o exercício do direito consagrado no artigo 37, VII da Constituição do Brasil, nos termos do conjunto normativo enunciado neste voto.

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Também os Ministros Marco Aurélio e Carlos Velloso, no Mandado de Injunção nº 438-2 [26], manifestaram-se no sentido de se criar regras concretizadoras, utilizando em linhas gerais a Lei nº 7.783/89.

No mesmo sentido da possibilidade da analogia, pode ser oferecida, finalmente, citação de Carlos Augusto Jorge:

Cumpre verificar que o art. 16, da lei 7.783/89, está revogado em razão da eficácia revogativa ou eficácia negativa, que também é desobstrutiva, pois a norma constitucional traçou novo esquema dependente para a sua atuação, ou seja, a exigência de uma lei ordinária normativa, diferente do sistema anterior o qual remetia à lei complementar, implicando dizer que, enquanto não for editada lei específica que regule a greve no setor público, o direito de exercê-la é livre e soberana esbarrando-se apenas nos excessos não permitido por lei correlata.

Desse comento pode-se afirmar que a Lei 7.783/89 foi recepcionada em parte podendo ser aplicada, no que couber, aos servidores públicos porque está em perfeita compatibilidade vertical-formal-material com o texto Constitucional. Operou-se o chamado fenômeno da eficácia construtiva da norma constitucional visto que a Lei 7.783/89, que trata do direito de greve na iniciativa privada, recebeu da Carta Política um novo elemento revigorador que a valoriza para a ordem jurídica nascente.

Dispensável o apelo de futura interferência do legislador para a elaboração urgente ou o aperfeiçoamento da aplicabilidade da norma constitucional que consagra o direito de greve pelo servidor público. Não havendo lei ordinária reguladora, especifica, da greve dos servidores públicos civis opera-se o instituto da analogia para os limites do direito de greve e, até mesmo sua proibição em certos casos, para algumas categorias específicas de funcionários públicos, justificados não em razão do status do servidor, mas em decorrência da natureza dos serviços prestados que são públicas, essenciais, inadiáveis, imantados pelo princípio da predominância do interesse geral. (2007, p. 4-5).

A Lei nº 7.783/89, não poderá servir de regulamentação integral do exercício da greve dos servidores públicos. Impõem-se limitações que atendam às peculiaridades do serviço público que se pretende paralisar. De fato, houve um avanço no entendimento do assunto, porquanto garante a efetividade da norma constitucional. Infelizmente, o fundamento que se tem valido para adotar a analogia não deve ser bem acolhido, já que a argumentação jurídica deveria ser com base em princípios, como o da supremacia da constituição, da máxima efetividade e da eficácia imediata dos direitos fundamentais.

Com a permissiva vênia, não se pode conceber que o simples fato da emenda alterar o status jurídico da norma regulamentadora faça com que se aceite mudança no posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Não se deve partir do princípio de que a decisão judicial deve respeitar hierarquia das espécies normativas ou a natureza delas para que se utilize o método integrativo da analogia. Não há hierarquia entre lei ordinária e lei complementar, e mesmo se houvesse, não haveria razão para levar isso em conta.

Desde antes da EC nº 19/98, já podia o Supremo utilizar a lei geral de greve, assim como poderia valer-se dos princípios e outras fontes do Direito e, até mesmo, no que concerne à supressão da ausência regulamentar, poderia utilizar projetos de lei para inspirar a fundamentação do julgamento.

Nesse contexto, toma-se como pressuposto que a decisão judicial integradora pode se basear em todas as fontes que fazem parte do sistema jurídico vigente, além de buscar outras fontes hermenêuticas e de cunho político-social, inclusive. Com efeito, o direito constitucional, ao fundar-se em um sistema aberto e de amoldamento social, autoriza que em hipóteses excepcionais, a fim de dar máxima efetividade às suas normas, se utilize a busca do interesse público como método direcionador.


7.LIMITES À ATUAÇÃO POSITIVA DO PODER JUDICIÁRIO

Por mais que se queira uma postura ativa do Poder Judiciário, a atuação dele não pode ofender princípios de coesão social e de manutenção do próprio Estado, tais como o princípio da separação dos poderes e o princípio democrático. A intervenção judicial deve ter limites.

A tarefa não é a mais fácil, tendo em vista que a Constituição não definiu, nem poderia definir, claramente, o que se entende por atuação legítima ou ilegítima do Judiciário em relação aos demais Poderes. O controle de constitucionalidade desafia grandes problemas que rodeiam os conceitos da harmonia e independência dos poderes.

E foi devido a essa cautela que o Supremo Tribunal Federal dotou o mandado de injunção de uma utilidade bastante duvidosa, equiparando-o, quanto aos efeitos, à ação direta de inconstitucionalidade por omissão.

Diante dessa evidência, sobre os limites da intervenção judicial na esfera política, problematiza Clèmerson Merlin Clève:

Quais os limites da atuação judicial nesse universo de direitos? É evidente que não se está a propor, aqui, uma resposta que implique a absoluta judicialização da política. A judicialização da política pode implicar a inaceitável politização do Poder Judiciário. É preciso um certo cuidado no que diz respeito a essa matéria. Por outro lado é preciso, também, buscar fórmulas de realização desses direitos que não fiquem prisioneiras, exclusivamente, do universo jurisdicional. Portanto, afirma-se a necessidade da radicalização dos instrumentos de democracia popular, designadamente dos instrumentos de democracia participativa. No que concerne à atividade do Judiciário, é importante verificar os limites impostos, também, pelo princípio da separação dos poderes. É preciso, ademais, superar o problema da legitimidade democrática do Poder Judiciário, ou seja, num Estado Democrático de Direito, com poderes divididos, até onde pode ir o Poder Judiciário enquanto instância garantidora dos direitos fundamentais?(2007, p. 3-4).

Com efeito, para verificar a possibilidade da concretização judicial do direito de greve, tema deste trabalho, torna-se imperioso refletir sobre o princípio da separação dos poderes, sobre a legitimidade democrática do Poder Judiciário, e outros critérios orientadores da atuação judiciária. Há, portanto, uma diretriz nesta pesquisa no sentido de não se adotar as classificações sobre a aplicabilidade das normas constitucionais como único critério de auto-restrição judicial,

Analisar-se-á cada tópico a seguir à luz do entendimento segundo o qual a greve do servidor público é um direito de defesa dotado de alta complexidade, sobretudo diante do cunho político que o movimento encerra.

7.1. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

A doutrina constitucionalista normalmente elege Aristóteles como o precursor da teoria da separação dos poderes ao oferecer os contornos iniciais. A obra literária que se atribui a teorização chama-se "Política".

Entretanto, a doutrina ganhou mais destaque com a publicação da obra "Do Espírito das Leis", de autoria do Barão de Montesquieu. O período histórico em que se originou a obra correspondeu aos movimentos de contenção do poder monárquico (liberalismo político e econômico), tendo a burguesia nascente encontrado na lei um instrumento valioso. Aos juízes, era reservada apenas a tarefa de cumprir as disposições legais, de maneira mais neutra possível. O juiz era conhecido como "a boca da lei".

Para Montesquieu, todo homem que detêm o poder tende a cometer abusos e, por isso, deve-se afastar qualquer argumento que defenda a ausência de limites por parte dos governantes. A base do absolutismo encontra nesta doutrina seu fim.

Sedimentada a doutrina da separação dos poderes, nenhuma constituição poderia deixar de contemplá-la. No plano do Direito Internacional, o princípio foi recepcionado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Atualmente a teoria encontra-se disposta no art. 2º, e no Título IV, da CRFB/88.

Nada mais justo. A importância política da doutrina da separação dos poderes resta-se evidente.

Um sistema de governo composto por uma pluralidade de órgãos requer necessariamente que o relacionamento entre os vários centros do poder seja pautado por normas de lealdade constitucional (Verfassungstreue, na terminologia alemã). A lealdade institucional compreende duas vertentes, uma positiva, outra negativa. A primeira consiste em que os diversos órgãos do poder devem cooperar na medida necessária para realizar os objetivos constitucionais e para permitir o funcionamento do sistema com o mínimo de atritos possíveis. A segunda determina que os titulares dos órgãos do poder devem respeitar-se mutuamente e renunciar a prática de guerrilha institucional, de abuso de poder, de retaliação gratuita ou de desconsideração grosseira. (CANOTILHO apud MORAES, 2001, p.359).

Neste enfoque, vê-se que os poderes devem adotar especial cautela na preservação das prerrogativas dos demais. Por este motivo, a intervenção do Poder Judiciário deve pautar-se pela regra da subsidiariedade, ocorrendo sempre que os meios pacíficos e normais de resolução dos conflitos não mais surtirem efeitos.

O caráter subsidiário da atividade judicial deve-se, sobretudo, ao respeito às funções típicas dos demais Poderes. Neste sentido, a atuação judicial concretizadora do direito de greve dos servidores públicos deve ser ponderada.

Ao legislador incube, em primeira linha, a função de concretizar o alcance dos direitos fundamentais nas relações verticais e horizontais, mediante a regulamentação do conteúdo e das condições de exercício dos mesmos, bem como harmonizando-os com os direitos que possam entrar em conflito. Não se discute, portanto, a conveniência de um desenvolvimento legislativo que concretize os direitos fundamentais, já que a lei é o instrumento adequado para esta função em nome do princípio democrático, da legitimidade democrática do legislador pelo voto popular e da separação dos poderes. (ZOLLINGER, 2006, p. 179).

Entretanto, não se deve confundir a atitude ponderada com a inação. Foi discutido no tópico sobre omissões inconstitucionais, que o Supremo Tribunal Federal considerou que a decisão injuncional não importa na fixação da norma regulamentadora necessária à viabilização do direito de greve. Foi alegado o princípio da "separação dos poderes".

O fato de a atuação judicial subsidiária provocar reflexão sobre este princípio não tem o condão de fazer recuar a proteção ao direito desamparado. Ao fazer isso, desconsidera-se, também, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (Art. 5º, XXXV, da CRFB/88) [27].

A evolução histórica não permite mais que se interprete o dogma da "separação dos poderes" de forma rígida. A constituição elegeu o Poder Judiciário guardião de sua autoridade. Assim, a jurisdição constitucional autoriza que o magistrado decida mesmo ante a ausência de lei expressa sobre a questão.

Os mecanismos à disposição do magistrado são variados. Há o princípio da força normativa da constituição, em que se autoriza a aplicação direta de seus princípios e regras ao caso concreto. No plano infraconstitucional, podem ser citados os seguintes dispositivos do Código de Processo Civil:

Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito.

[...]

Art. 335. Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial.

No mesmo sentido, a Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942), em seu art. 4º, dispõe que, "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito".

Portanto há mecanismos à disposição do magistrado para o suprimento de omissões legislativas, sem que isso ofenda a "separação dos poderes". Basta, contudo, que se adote uma postura responsável e não "quixotesca".

Neste contexto, sob pena de se incorrer em generalização inconseqüente, o aplicador do Direito, antes de negar sua atuação positiva, deverá refletir sobre os vários mecanismos e técnicas hermenêuticas aplicáveis às ações constitucionais, sobretudo ao mandado de injunção.

Não há espaço para cautela desmedida, pois, se a constituição criou instrumentos de concretização judicial das normas constitucionais, é porque a mesma não adotou o dogma da rígida "separação dos poderes", senão a flexibilização, valorizando a efetividade dos direitos fundamentais. Este dogma não é o único digno de respeito no ordenamento jurídico.

7.2.A LEGITIMAÇÃO DEMOCRÁTICA DA ATUAÇÃO JUDICIAL

A doutrina tradicional costuma ver com moderação o controle judicial das omissões funcionais dos Poderes Públicos. Costuma-se dizer que, como o Brasil adotou o regime representativo de governo, não haveria espaço para que o Judiciário controlasse os demais Poderes, sem que isso atentasse contra a democracia.

Nesta linha, agentes estatais não eleitos (magistrados), ao substituírem a vontade daqueles eleitos, deixariam de oferecer oportunidade de participação popular na formação do provimento jurisdicional.

O sistema representativo se assenta na necessidade de obtenção de um consenso mínimo em torno da legitimidade dos atos políticos praticados, ou seja, através do direito de sufrágio o cidadão legitima decisões que serão adotadas pelos governantes. A escolha de um programa de governo depende, por óbvio, de um amplo debate eleitoral, bem como, nas garantias de que o pleito desenvolve de maneira a assegurar a paridade de armas entre os contendores. (APPIO, 2006, p. 140).

Entretanto a jurisdição constitucional não se funda no princípio democrático e nem este é o único princípio a garantir a existência do Estado. Argumenta-se que ao Judiciário foi deferida a atribuição de proteger os direitos contra eventuais investidas da maioria política. E neste aspecto, não cabe a objeção democrática, pois sendo os direitos constitucionais frutos de amplo debate político, em última análise, a atuação judicial acaba por garantir essa própria democracia que se quer entender como obstáculo.

Por outro lado, o ativismo judicial deve vir fundado em convincente argumentação jurídica, por não se submeter, prévia e posteriormente, ao controle de participação popular. Quanto à insubmissão ao controle posterior, aponta-se o instituto da coisa julgada material como maior obstáculo. O provimento judicial é definitivo, e impede disposições desfavoráveis em contrário.

Portanto, o Judiciário, no controle das omissões dos outros Poderes, deve estar consciente de que as expectativas políticas, antes estranhas, serão levadas a juízo. Sobreleva-se, com isso, a possibilidade de frustração popular, considerando que não se afigura possível ao judiciário erradicar graves problemas, normalmente associados com a lesão a direitos sociais.

Ressalte-se, todavia, que esse temor de frustração não exime o judiciário de seu dever de decidir. A jurisdição constitucional é tanto necessária quanto obrigatória, pois a efetivação dos direitos tem razões de ser, e a própria escolha do Poder Constituinte já é uma mais que suficiente. A Constituição é suprema.

A democracia, como poder da maioria, não é absoluta, sendo-lhe defeso sufocar indiscriminadamente os anseios da minoria, negando o gozo de direitos fundamentais expressamente outorgados pela constituição [28]. Cabe, portanto, ao Judiciário controlar este arbítrio.

Assim, o juiz é legitimado a participar do processo de produção normativa, sendo uma teratologia jurídica imaginar que apenas o legislador está autorizado a completar a norma constitucional, ignorando o poder interpretativo e integrativo da jurisdição, o que também pode ser considerado como ofensa ao princípio da "separação de poderes". Eventual compatibilidade da jurisdição constitucional com o princípio democrático é deveras útil, mas não necessária.

7.3. CRITÉRIOS ALTERNATIVOS DE INTERVENÇÃO JUDICIAL

Questão da maior relevância é a análise do (des)aparelhamento do Poder Judiciário. Cada vez há um crescimento das demandas sociais, e os poderes públicos não estão sendo capazes de oferecer as respostas esperadas. Por mais que se queira uma participação mais acentuada dos julgadores na condução política da sociedade, há variados óbices de fundo operacional.

Com efeito, Valeschka e Silva Braga defende que, observadas certas cautelas, o Poder Judiciário deve substituir o legislador, para que a vontade deste não prevaleça sobre a vontade do poder constituinte. Para tanto, de forma exemplificativa, adota os seguintes critérios:

1. Se a lei não pode atentar contra a coisa julgada, nos termos do art. 5°, XXXVI, da Constituição Federal, isso quer dizer que a sentença normativa emanada do Poder Judiciário não poderia ser revestida desta característica, pois seria suscetível de ser alterada por legislação superveniente. Na verdade, o Supremo estaria praticando muito mais um ato político que judicial, tanto quanto o faz, nas ações diretas de inconstitucionalidade, no usufruto de suas funções de legislador negativo.

Por outro lado, a decisão no controle de constitucionalidade por omissão produziria efeitos como se lei fosse e, em face do princípio da irretroatividade das leis, não poderia a legislação posterior, mesmo emanada do Poder Legislativo, retroagir para prejudicar também as situações já consolidadas, tais como ato jurídico perfeito e sentenças revestidas de coisa julgada.

2. A decisão não poderia onerar direta ou indiretamente o orçamento público.

De fato, se na hipótese, o Poder Judiciário atua como substituto emergencial do Legislativo, aquele não pode fazer mais do que este, onerando o orçamento público quando o projeto for de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo, nos termos do art. 63, I, CF/88 (que ressalva, no entanto, o disposto no art. 166, § 3º e § 4º do texto constitucional [29]) e nos "projetos sobre organização dos serviços administrativos da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, dos Tribunais Federais e do Ministério Público" (art. 63, II, CF/88).

A situação, obviamente, difere se o julgador se encontrar diante de mandado de injunção, tendo em vista que, não tendo este writ efeitos genéricos, a decisão pode ensejar, inclusive, efeitos pecuniários, conforme já decidiu recentemente o Supremo Tribunal Federal (cf. item acerca anterior acerca do referido mandado).

3. Também não poderia a decisão normativa, por força da preservação do princípio da legalidade estrita em matéria penal, prever crimes ou cominar penas. No que diz respeito ao âmbito tributário, haveria impedimento de criação ou majoração de impostos.

4. Outros limites e cautelas precisariam, ainda, ser levantados mas, por hora, convém passar adiante em outros aspectos, se não esta modesta contribuição jamais chegará ao fim. (BRAGA, 2007, p. 11).

Cada Poder atua na conformidade das suas funções institucionais. Na medida em que o Legislativo passou a implementar políticas públicas com edições de leis, ficou autorizado ao Judiciário contribuir, segundo seus princípios institucionais, nesta fundamental tarefa. A atuação negativa ou mesmo positiva do Judiciário, se justifica pelo princípio de que o ordenamento jurídico deve ser cumprido, de maneira que não seria lícito que ficasse inerte frente às ações ou omissões inconstitucionais. A efetivação dos direitos fundamentais é ao mesmo tempo limite e justificativa à relativização adequada do princípio da "separação dos poderes".

Poder-se-ia objetar que a superação dos efeitos de uma norma de eficácia limitada estaria fundamentada, apenas, em dados empíricos, gerando uma potencial ofensa à segurança jurídica. Os critérios semânticos extraídos do texto constitucional seriam mais certos e definidos.

Por outro lado, deixar de viabilizar um direito que, diante dos fatos, mostra-se perfeitamente concretizável, é atentar contra a vontade da constituição e frustrar as expectativas da sociedade. A constituição não traz promessas que não deseje o cumprimento.

Assim, não se pode conceber que critérios meramente semânticos – teorias da aplicabilidade das normas constitucionais – sejam os únicos aptos a preservar os valores constitucionalmente estabelecidos. Há, além desses, outros mecanismos de auto-restrição do arbítrio judicial.

Nesta tarefa, exemplificativamente, pode-se indicar a teoria da "reserva do possível" como uma alternativa de auto-restrição judicial, pois:

a omissão do Estado no atendimento de determinadas injunções previstas na Constituição em áreas sociais como saúde, moradia, cultura e educação, pode corresponder à absoluta escassez de recursos materiais, contra a qual qualquer decisão judicial se mostra insuficiente, pois o juiz opera no campo normativo. Não se pode obrigar o Executivo a implementar determinada política social sem que se preveja a correspondente fonte de onde sairão estes recursos. A opção judicial pode-se revelar desastrosa, quando se considera que qualquer alteração orçamentária, além de ferir importantes prerrogativas constitucionais afetas ao Poder Legislativo, implica retirada de fonte de financiamento de outros programas que o governante julga prioritários, de molde que a intervenção judicial é de caráter excepcional. (grifos nossos) (APPIO, 2006, p. 132).

É que em certos casos, devido a limitações materiais, o Judiciário não pode satisfazer a todos os direitos que sejam reclamados. Durante um processo de efetivação, a complexidade exigida para a proteção do direito pode ser tal, que na prática, o juiz não possa chegar a um resultado eficaz e em tempo razoável. (BARBI apud OLIVEIRA, 2004, p. 104).

Enfim, reforçando as premissas mencionadas, verifica-se que a decisão judicial que aborda um direito fundamental não poderá deixar de considerar os méritos da argumentação jurídica e da teoria dos princípios [30] como critérios alternativos de auto-contenção do arbítrio judicial.

Sobre o autor
Wesley Adileu Gomes e Silva

Procurador Federal junto ao INSS, pós-graduando em Direito Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Wesley Adileu Gomes. Concretização judicial do direito de greve dos servidores públicos civis na Constituição da República Federativa do Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1394, 26 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9812. Acesso em: 21 mai. 2024.

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