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O “se juntar” e a linha tênue entre união estável e namoro qualificado

Agenda 02/06/2022 às 14:00

Os elementos caracterizadores da união estável são cláusulas gerais e abertas, que demandam análise do caso concreto. Não seria diferente com o objetivo de constituir família.

Todos conhecemos alguém que se juntou com a pessoa amada para dividir a vida, ou como diziam os antigos: "juntou os trapos".

De modo descontraído, aqueles se referem ao outro, muitas vezes, como namorido, porque nem eles mesmo sabem o que são; e, na verdade, nem precisam. Ocorre que conforme Legião Urbana, em sua eterna música Por Enquanto, pode acontecer de o para sempre acabar. Neste caso, surge a necessidade jurídica de qualificar o relacionamento em união estável ou namoro qualificado.

O artigo 1.723, do Código Civil (BRASIL, 2002), prevê ser reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família[1].

Sobre o conceito legal de união estável, desde já é necessário se fazer uma ressalva. O dispositivo acima, em sua redação, prevê que união estável é aquela entre homem e mulher. Todavia, no julgamento da ADPF n. 132 e da ADIN n. 4.277, o STF (2011) reconheceu como inconstitucional essa disposição, decidindo que a união homoafetiva também é apta a constituir família.

O instituto da união estável é de tamanha relevância que possui especial proteção no art. 226, §3º, da CF (BRASIL, 1988). Cuida-se de notável previsão da Carta Mãe, pois anteriormente eram tidas como legítimas apenas as uniões oriundas do matrimonio (WALD[2], 2000). A despeito disso, vislumbra-se que se concedeu à união estável o mesmo status e proteção das famílias fruto do casamento.

Lendo atenciosamente o art. 1.723, do CC, depreende-se que para se constituir união estável é necessário a presença de alguns requisitos: publicidade, continuidade, durabilidade e objetivo de constituir família. Segundo Gagliano e Pamplona filho (2011), estes são os elementos[3] essenciais caracterizadores da união estável, ou seja, sem os quais ela inexiste.

É certo que a lei traz os elementos formadores da união estável. Todavia, é omissa conceituá-los e explicá-los. À primeira vista, pode parecer que se trata de um problema, mas a verdade é que a adoção de cláusula aberta e geral no conceito de união estável tem por fim dar ao operador do direito maior margem de interpretação, levando-se em conta o caso concreto, para que se amplie e se adeque o conceito legal referido às diversas realidades sociais (TARTUCE, 2019).

Em suma, atribui-se à doutrina e a jurisprudência o papel de construírem o conceito acerca do que vem ser publicidade, continuidade, durabilidade e objetivo de constituir família. A seguir, será exposto alguns entendimentos e posicionamentos acerca do tema.

O TJSP (2009), no julgamento da apelação n. 570.520.5/4 decidiu que não exige prazo mínimo de convivência para constituição de união estável, devendo ser analisadas as circunstâncias conforme o caso concreto. Aqui é reforçado o posicionamento acima exposto, no sentido de que a conceituação legal de união estável, por meio de cláusulas abertas e gerais é proposital, para ampliar as hipóteses de incidência da norma.

O Tribunal de Justiça mineiro (TJMG, 2005) decidiu que não há exigência de prole comum. É de se notar que este entendimento está no mesmo sentido do que defende Gagliano e Pamplona filho (2011), acerca de ser a prole elemento configurador da união estável, porém acidental e não essencial, ou seja, a constituição de família convivencial não está condicionada à existência de prole.

O STJ (2008) tem jurisprudência sólida no sentido de que a coabitação é elemento dispensável à constituição da união estável. Conforme dito, a construção conceitual dos elementos da união estável cabe aos intérpretes do art. 1.723, do CC (BRASIL, 2002), por meio de construções doutrinárias e jurisprudenciais. No entanto, nada impede que se faça interpretação sistemática[4] (NUNES, 2011) dele, ou seja, lendo-o a partir de outras normas parte do mesmo Ordenamento Jurídico.

Esta constatação se faz necessária porque posteriormente ao Código Civil de 2002 surgiu a Lei Maria da Penha, que traz algumas importantes conceituações sobre as relações familiares. Segundo o art. 5º, inciso III, do referido diploma, considera-se relação íntima de afeto, que ocorre nas relações domésticas e familiares, aquelas nas quais o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (BRASIL, 2006). Nota-se que esta disposição legal, que é no mesmo sentido da jurisprudência do STJ, serve como norte hermenêutico para a identificação da presença dos elementos caracterizadores da união estável.

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Decidiu o STF, no julgamento do mandado de segurança n. 330.008 que não há requisito formal obrigatório para que a união estável seja configurada e reconhecida:

Não constitui requisito legal para concessão de pensão por morte à companheira que a união estável seja declarada judicialmente, mesmo que vigente formalmente o casamento, de modo que não é dado à administração pública negar o benefício com base neste fundamento. (...) Embora uma decisão judicial pudesse conferir maior segurança jurídica, não se deve obrigar alguém a ir ao Judiciário, desnecessariamente, por mera conveniência administrativa. O companheiro já enfrenta uma série de obstáculos decorrentes da informalidade de sua situação. Se ao final a prova produzida é idônea, não há como deixar de reconhecer a união estável e os direitos daí decorrentes (STJ, 2016).

O art. 1.723, §1º, do Código Civil, estabelece que a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521 (BRASIL, 2002). Logo, não pode constituir união estável aquele que já é casado. Trata-se de disposição que prestigia o princípio da monogamia e da exigência de fidelidade, presentes em nosso ordenamento jurídico (STF, 2020). Todavia, o STJ (2021) tem jurisprudência sólida no sentido de que a existência de casamento válido não obsta o reconhecimento da união estável, desde que haja separação de fato ou judicial entre os casados.

É certo que por expressa previsão legal não se pode constituir união estável enquanto se está casado[5]. Porém, é possível o reconhecimento de duas uniões estáveis, simultaneamente? O STF, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 1.045.273/SE, de relatoria do Min. Alexandre de Moraes decidiu que não:

É vedado o reconhecimento de uma segunda união estável, independentemente de ser hétero ou homoafetiva, quando demonstrada a existência de uma primeira união estável, juridicamente reconhecida. Em que pesem os avanços na dinâmica e na forma do tratamento dispensado aos mais matizados núcleos familiares, movidos pelo afeto, pela compreensão das diferenças, respeito mútuo, busca da felicidade e liberdade individual de cada qual dos membros, entre outros predicados, que regem inclusive os que vivem sob a égide do casamento e da união estável, subsistem em nosso ordenamento jurídico constitucional os ideais monogâmicos, para o reconhecimento do casamento e da união estável, sendo, inclusive, previsto como deveres aos cônjuges, com substrato no regime monogâmico, a exigência de fidelidade recíproca durante o pacto nupcial (art. 1.566, I, do Código Civil) (STF, 2020).

Do exposto até aqui verificamos que a doutrina e a jurisprudência são didáticas em conceituar e explicar o que caracteriza união estável. Entretanto, a nosso ver, um de seus elementos merece maior atenção, dada sua grande subjetividade conceitual, bem como o fato de que ele constitui uma linha tênue entre união estável e namoro qualificado: o objetivo de constituir família.

Segundo Tartuce (p. 1.193, 2019), não se pode confundir a união estável com um namoro longo, tido como um namoro qualificado. No último caso há um objetivo de família futura, enquanto na união estável a família já existe (animus familae). Em outras palavras, o objetivo de constituir família é o elemento subjetivo, o animus (vontade) de constituir família. Se este elemento estiver presente é união estável, entidade familiar reconhecida e protegida pela Constituição; se, por outro lado, não estiver, é mero namoro qualificado.

Como dito anteriormente, os elementos caracterizadores da união estável, do art. 1.723, do Código Civil, são cláusulas gerais e abertas, que demandam análise do caso concreto, e, não seria diferente com o objetivo de constituir família. A jurisprudência traz balizas hermenêuticas sobre o que vem a ser esse animus familiae, destacando-se o precedente do STJ, formado no julgamento do Recurso Especial n. 1.454.643/RJ:

O propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável a distinguir, inclusive, esta entidade familiar denominado namoro qualificado, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída. Tampouco a coabitação, por si, evidencia a constituição de uma união estável (ainda que possa vir a constituir, no mais das vezes, um relevante indício), especialmente se considerada a particularidade dos autos, em que as partes, por contingências e interesses particulares (ele, a trabalho; ela, pelo estudo) foram, em momentos distintos, para o exterior, e, como namorados que eram, não hesitaram em residir conjuntamente. Este comportamento, é certo, revela-se absolutamente usual nos tempos atuais, impondo-se ao Direito, longe das críticas e dos estigmas, adequar-se à realidade social (STJ, 2015),

Concluindo, aqueles que se juntaram para viver, ou, como dizem os antigos: juntaram os trapos, devem tomar cautela ao chamar o amado de namorido, pois pode ocorrer de aquele que se considera companheiro ser apenas um namorado.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

_____. Código Civil (2002). 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

_____. Lei Maria da Penha (2006). 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2011.

NUNES, Rizzatto. Manual de introdução ao estudo do Direito. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

STF. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL : ADPF n. 132; AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE : ADIN n. 4277. Relator: Ministro Ayres Britto. Dj: 14/10/2011. STF, 2011. Disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2598238. Acesso em 23 mai. 2022.

STF. MANDADO DE SEGURANÇA: n. 330.008. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Dj: 03/05/2016. STF, 2016. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=11650872. Acesso em 30. mai. 2022.

STF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO : RE n. 1.045.273/SE. Relator: Min. Alexandre de Moraes. 21/12/2020. STF, 2020. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755543251. Acesso em: 23 mai. 2022.

STJ. RECURSO ESPECIAL : 275.839/SP, 3.ª Turma. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. DJe: 23/10/2008. STJ. Disponível em https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/941541/recurso-especial-resp-275839-sp-2000-0089476-1/inteiro-teor-12764938. Acesso em 30 mai. 2022.

STJ. Jurisprudência em teses. 2022. Disponível em https://processo.stj.jus.br/SCON/jt/toc.jsp?edicao=EDI%C7%C3O%20N.%2050:%20UNI%C3O%20EST%C1VEL. Acesso em 1. jun. 2022.

STJ, REsp 1.454.643 3.ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellize, j. 03.03.15, DJe 10.3.2015.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil volume único. 9. ed. São Paulo: Método, 2019.

TJSP. APELAÇÃO COM REVISÃO n. 570.520.5/4, Acórdão n. 3543935, São Paulo, 9.ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Rebouças de Carvalho, j. 04.03.2009, DJESP 30.04.2009.

TJMG. ACÓRDÃO n. 1.0024.02.652700-1/001, Belo Horizonte, 1.ª Câmara Cível, Rel. Des. Eduardo Guimarães Andrade, j. 16.08.2005, DJSP 26.08.2005.

TJRS, Acórdão 70024804015, Guaíba, 8.ª Câmara Cível, Rel. Des. Rui Portanova, j. 13.08.2009, DJERS 04.09.2009, p. 49.

WALD, Arnoldo. O novo Direito de Família. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.


  1. Tartuce (2019) lembra que este conceito de união estável é fruto da produção doutrinária de Álvaro Villaça Azevedo, um dos mentores intelectuais do Código Civil de 2002.
  2. Ora, se a união estável é entidade familiar, como determinado pela Constituição, não se pode mais tratar a união entre o homem e a mulher, sem o ato civil do casamento, como sociedade de fato, ou concubinato, eis que não se trata mais de mancebia, amasiamento, mas entidade familiar (WALD, 2000, p. 227).
  3. Acrescenta-se que para Gagliano e Pamplona Filho (2011), além dos elementos essenciais da união estável, cuja presença condiciona sua existência, há também os chamados elementos acidentais, que seriam, por exemplo, prole, tempo, dentre outros.
  4. Por essa regra cabe ao intérprete levar em conta a norma jurídica inserida no contexto maior do ordenamento ou sistema jurídico. Avaliando a norma dentro do sistema, o intérprete observa todas as concatenações que ela estabelece com as demais normas inseridas no mesmo sistema (NUNES, p. 312, 2011).
  5. Merece destaque que embora haja expressa vedação legal à constituição de união estável simultânea ao casamento, há alguns doutrinadores (DIAS, p. 163, 2009) e precedentes jurisprudências que entendem em sentido diverso: Apelação. União estável concomitante ao casamento. Possibilidade. Divisão de bem. Triação. Viável o reconhecimento da união estável paralela ao casamento. Precedentes jurisprudenciais. Caso em que a prova dos autos é robusta em demonstrar que a apelante manteve união estável com o falecido, mesmo antes dele se separar de fato da esposa. Necessidade de dividir o único bem adquirido no período em que o casamento foi concomitante à união estável em três partes. Triação. Precedentes jurisprudenciais. Deram provimento, por maioria (TJRS, p. 149, 2009).
Sobre o autor
João Gabriel Fraga de Oliveira Faria

Advogado (OAB/SP n. 394.378). Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Constitucional Aplicado. Cursou especialização em Direito Público. É especialista em Direito Empresarial. Fez especialização em Direito e Processo Civil. É presidente da comissão de Direito de Família da 52º Subseção da OABSP. Foi membro da diretoria do núcleo regional (Lorena/SP) do IBDFAM. E-mail para contato: joaogabrielfariaadvogado@gmail.com.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIA, João Gabriel Fraga Oliveira. O “se juntar” e a linha tênue entre união estável e namoro qualificado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6910, 2 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98309. Acesso em: 17 nov. 2024.

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