Resumo: O presente trabalho tem como objetivo o estudo dos argumentos jurídicos a respeito da possibilidade da aquisição da propriedade de imóvel proveniente de parcelamento irregular, ou não, sob o enfoque da jurisprudência dos tribunais.
Palavras-chave: Usucapião - Parcelamento Irregular Jurisprudência.
1 INTRODUÇÃO
Em jurisprudência passada os tribunais entendiam pela impossibilidade da aquisição da propriedade de imóvel proveniente de parcelamento irregular, uma vez, que à usucapião não é o meio apropriado para regularização de loteamento clandestino e sim modo de aquisição de propriedade pela posse, dizia ainda, que pela falta de matrícula, não é seria possível o registro de sentença no registro de Cartório de Imóveis.
Contudo, tal entendimento não mais prevalece, haja vista, que à usucapião é modo originário de aquisição da propriedade, o fato de o parcelamento do solo ser irregular não impede seu reconhecimento, acontecendo uma virada jurisprudencial.
2 ARGUMENTOS CONTRÁRIOS
Os argumentos que defendem a impossibilidade da aquisição da propriedade de imóvel proveniente de parcelamento irregular, decorre dos seguintes argumentos.
De início, vale citar a Lei de Parcelamento do Solo (Lei nº 6.766/79), que visa o desenvolvimento ordenado do urbanismo, atentando-se, à função social da propriedade. Não por outro motivo, inúmeras são as exigências contidas neste diploma legal para a regular implementação de um loteamento ou de um desmembramento do solo urbano.
Desatendidas tais exigências, exsurge o caos urbano, trazendo visíveis e incontornáveis prejuízos ao meio ambiente, à circulação de pessoas e veículos, à habitação, ao saneamento público, enfim, à qualidade de vida.
Assim sendo, qualquer medida (judicial ou extrajudicial) tendente à manutenção e, portanto, à sedimentação das condições irregulares de parcelamento do solo, acaba, na verdade, por se traduzir em um desserviço à comunidade, muito embora possa atender aos interesses patrimoniais dos adquirentes dos lotes (de forma individual).
Em outras palavras, a possibilidade da aquisição da propriedade de imóvel proveniente de parcelamento irregular vem de encontro aos dispositivos da referida lei e, principalmente, de encontro aos princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e da função social da propriedade (eleitos, por Regina Helena Costa, como os norteadores do Direito Urbanístico.[1]
Destarte, mercê da antinomia existente entre as normas de direito de propriedade, de um lado, e as normas previstas no Direito Urbanístico (mormente as existentes na Lei nº 6.766/79), de outro, e da necessidade de prevalência destas sobre aquelas. Nesse sentido:
USUCAPIÃO - Urbano - Área pertencente a um loteamento irregular - Inadmissibilidade - Instituto jurídico não apto a transpor tal ilegalidade - Lapso temporal de 20 anos, ademais, não comprovado - Processo extinto sem julgamento do mérito - Recurso não provido. (Relator: Benini Cabral - Apelação Cível n.o 206.679-1 - Quatá - 25.05.94).
USUCAPIÃO O usucapião não é o meio apropriado para regularização de loteamento clandestino e sim modo de aquisição de propriedade pela posse animus domini Recurso provido para julgar improcedente a ação. (Apelação Cível n.o 84.792-4 - Cotia - 3a Câmara de Direito Privado - Relator: Ênio Zuliani - 27.07.99 - V.U.)
USUCAPIÃO ESPECIAL - Imóvel urbano - O apelante pretende usucapir lote de terreno em loteamento clandestino - Lote situado em área que não foi objeto de regular parcelamento de solo - O lote tem 112,97 m2, área inferior ao do módulo urbano - O art. 183 da Constituição Federal, prevê o usucapião especial urbano de imóvel urbano com área de até 250 m2, àquele que o possuir de maneira ininterrupta e sem oposição, por cinco anos, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural - O art. 182 da Lei Maior estatui que o parcelamento do solo urbano deve atender as exigências do plano diretor, tendo em vista a ordenação da cidade, como política de desenvolvimento e de expansão urbana - O art. 4º da Lei 6.766/79 impõe requisitos mínimos para o parcelamento do solo urbano, entre os quais área mínima de 125 m2 Interpretação sistemática - Não pode ser admitido usucapião especial urbano de modo contrário ao regramento do parcelamento do solo, previsto na própria Constituição, na lei federal que regula o tema e na lei municipal que estabelece o módulo urbano - O usucapião não é via adequada à regularização de loteamento clandestino À falta de matrícula, não é possível o registro de sentença que concedesse o usucapião - Configurada a inutilidade do provimento jurisdicional pleiteado - Sentença mantida Recurso improvido. - TJSP APELAÇÃO CÍVEL no 0011168- 60.2010.8.26.0224 ou 990.10.378810-9 - Guarulhos j. 01/02/2011 Rel. Paulo Eduardo Razuk).
3 ARGUMENTOS FAVORÁVEIS
Os referidos argumentos não merecem prosperar, haja vista, que se baseiam na antiga jurisprudência.
O fato que o imóvel objeto de parcelamento ilegal, por si só, não consubstancia objeção à admissibilidade da usucapião em qualquer de suas modalidades, mesmo porque se os ajustes não se ressentissem de vícios, bastaria aos possuidores empregá-los como suporte jurídico bastante transmissão da propriedade, esvaziandose a necessidade de reconhecimento da aquisição originária do domínio.
Por se tratar de modo originário de aquisição da propriedade, o reconhecimento da usucapião não deve se pautar pelos limites estabelecidos na legislação municipal, estadual ou mesmo na Lei de Parcelamento do Solo.
À usucapião especial urbana, a conclusão a que chegou o Pretório Excelso deve aqui ser aplicada, na medida em que não pode o regramento urbano sobrepor-se ao direito constitucional à propriedade (artigo 5º, inciso XII, da CF), ainda que sob o argumento da garantia de sua função social (artigo 5º, inciso XIII, da CF).
Tal vício decorreria da existência de um parcelamento ilegal (irregular ou clandestino), mas nem por isso, torna derrotada o instituto, respeitado judicioso entendimento em sentido contrário.
Espécies do gênero parcelamento ilegal a doutrina distingue parcelamento clandestino (aquele implantado de fato sem aprovação urbanística) do parcelamento irregular (acometido de outros vícios como execução do ato sem aprovação, ou em contraste com o projeto ou a legislação que o aprovou)
Segundo o Dr. JOSÉ CARLOS DE FREITAS
Nesses loteamentos, as glebas são retalhadas em quadras, lotes e ruas sem qualquer planejamento prévio ou preocupação com o meio físico urbano lindeiro. Executam-se movimentos de terra, cortes e aterros sem o compromisso com as comezinhas normas e técnicas de engenharia. Remove-se a cobertura vegetal prejudicando a estabilidade do solo, favorecendo sua erosão e o assoreamento de cursos d ́água que, em regra, alimentam os mananciais da cidade. (Manual Prático da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, Centro de Apoio Operacional, São Paulo, 2005, Imprensa Oficial, p. 174).
Passíveis de serem regularizados encontram normatização na Lei no 6.766/79 (arts. 38 e segts) e no Provimento CG no 58/89 (Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo) Cap. XX, itens 168 a 171 e itens 176 a 197.
Nesse passo, como bem ressaltou, em julgado do Tribunal Bandeirante, o Eminente Desembargador Silvério Da Silva:
Tornou-se costume no Estado a utilização deste expediente, ou seja, à venda de partes ideais de imóveis para futura entrega de lotes ou chácaras, recebendo-se de imediato os valores, ainda que inexistente aprovação dos loteamentos ou regularização junto ao registro público e municipalidade do desmembramento das glebas.
São manobras que permitem que as loteadoras possam vender e receber o preço das áreas, tidas como quotas da empresa, antes da aprovação de loteamento ou desmembramento, evidentemente, ao arrepio de lei, seja do Estatuto da Terra, que não permite a propriedade rural de com módulos inferiores ao estabelecido para cada uma das regiões, ou da Lei do Parcelamento do Solo, que no artigo 37 (Lei 6.766/79) impede vender ou prometer vender parcela de loteamento antes de efetivado o registro do loteamento.
Mas de qualquer modo os autores estão no exercício da posse da área devidamente descrita no memorial descritivo com pleno exercício dos poderes inerentes ao domínio e com condição de buscar o reconhecimento da propriedade. (...) a ausência de regularização do loteamento não pode ser móvel para impedir o direito daquele que exerceu a posse pelo tempo necessário (prescrição aquisitiva) e preencheu todos os requisitos legais para o reconhecimento da usucapião. Não se pode imputar aos autores a responsabilidade pela regularização do loteamento ou que tomasse providências para o desmembramento da área antes da alienação. 8º C. Dir. Privado - Embargos Infringentes no 0001320-58.2011.8.26.0048, 10.06.2015.
Trago, ainda, a lição de Benedito Silvério Ribeiro:
Parece despontar contradição entre o registro e a aquisição por meio de usucapião. Mas inexiste incompatibilidade, de vez que a exigência legal de menção do número de registro anterior se relaciona com atos ou documentos por lei enumerados, estando excluída a usucapião. Aqui, não se trata de aquisição derivada, como ocorre nos casos relacionados. Partindo da ideia de que nem todos os imóveis objetos de usucapião sejam registrados, podendo constituir-se de coisas de ninguém ou abandonadas, sem qualquer título dominial, emerge evidente dispensa de anterior registro. Ainda, há ressaltar que a Lei registraria determina seja feito, além da matrícula, o registro das sentenças declaratórias de usucapião (arts. 167, I e 28). Tratado de Usucapião, Ed. Saraiva 6a. Edição, p. 207.
A usucapião é forma de aquisição originária da propriedade, isenta de vícios anteriores.
Da mesma forma, a boa-fé, durante todo o período do exercício de posse, decorre dos atos praticados e da ausência de oposição de terceiros, lembrando que a boa-fé costuma ser atrelada ao justo título, (...) que é o ato exterior que justifica a posse e motiva a boa-fé. Esta é a integração ética do justo título e reside na convicção de que o fenômeno jurídico gerou a transferência da propriedade. (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2010).
3 CONCLUSÃO
Portanto, sendo a usucapião modo originário de aquisição da propriedade, o fato de o parcelamento do solo ser irregular não impede seu reconhecimento.
Isto porque, tratando-se a usucapião é forma originária de aquisição da propriedade imobiliária, exige-se para o seu reconhecimento tão somente a existência: bem usucapível (móvel ou imóvel), posse mansa, pacífica e ininterrupta, animus domini e decurso do tempo (requisitos genéricos). Assim, à usucapião, como forma originária de aquisição da posse e, pouco importa se o mesmo se situada em área regular ou irregular.
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in Reflexões sobre os Princípios de Direito Urbanístico na Constituição de 1988, artigo publicado na Revista Temas de Direito Urbanístico, CAOHURB da Procuradoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, vol. 1, págs. 11/19).