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A exclusão de “Deus” do tribunal do júri brasileiro.

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Agenda 12/01/2023 às 09:25

Com a laicização e a secularização, buscou-se tornar o Judiciário isento de interferências religiosas diretas.

INTRODUÇÃO

Costuma ser delicado tratar sobre a figura de Deus em alguns estudos, considerando que a fé dos indivíduos pode ser questionada por argumentos eventualmente incômodos. Antônio Manoel Hespanha (2018, p. 12) adverte que invocar certas razões pode ter consequências indesejadas e indesejáveis. No caso do presente artigo, a opção será correr tal risco.

O entrelaçamento entre direito e religião está presente ao longo da história.

Para Paolo Grossi (2007, p. 29) o Direito vai muito além do conceito de lei, sendo um fenômeno primordial e radical da sociedade repousando nos estratos profundos e duradouros da sociedade e que está presente no sangue, na fé religiosa, na profissão, na solidariedade cooperativa, na colaboração econômica.

Neste sentido destaca-se a origem do direito arcaico ou primitivo[1], o qual está intimamente ligado com rituais religiosos. Conforme Wolkmer (2006, p. 17), a sociedade pré-histórica era fundada no princípio do parentesco, razão pela qual a base geradora do jurídico encontra-se primeiramente, nos laços de consangüinidade, nas práticas de convívio familiar de um mesmo grupo social, unido por crenças e tradições.

Fustel de Coulanges (1961, p. 31) aponta que a religião foi a base formadora da família, e foi ela, por consequência, que estabeleceu as primeiras regras:

 O que une os membros da família antiga é algo mais poderoso que o nascimento, que o sentimento, que a força física: é a religião do fogo sagrado e dos antepassados. Essa religião faz com que a família forme um só corpo nesta e na outra vida. A família antiga é mais uma associação religiosa que uma associação natural.

 Era o receio da vingança divina que fazia os indivíduos respeitarem o direito e as normas, normalmente estabelecidas por sacerdotes, os quais eram considerados os primeiros legisladores, uma vez que existia a crença que os mesmos recebiam as leis diretamente dos deuses (WOLKMER, 2006).

Antônio Manoel Hespanha (2012, p. 32) destaca a estreita relação que existia entre a ordem jurídica e as outras ordens normativas:

 O primeiro destes sistemas normativos quase jurídicos era a religião. O direito divino (ius divinum) que decorria diretamente da Revelação estava tão intimamente embebido no direito secular (ius civile) que o último não podia contrariar no essencial os comandos do primeiro.

 Ao analisar o encontro entre direito e religião, Caetano Dias Correa e Arno Dal Ri Junior (2021, p. 46) contribuem:

Justamente para conter dissensões, segurar movimentos de ruptura e garantir a coesão tanto doutrinária quanto social da crença, exsurge do discurso, da organização, da instituição religiosa, uma evocação eminentemente jurídica, a partir da qual se lançam bases normativas, com a prescrição e a proscrição de condutas, na necessidade de manutenção da ordem religiosa e, por conseguinte, da sociedade criada a partir de tal religião.

O cristianismo foi a religião emergente no mundo antigo, impactando no Império romano, e exercendo grande influência no mundo do direito e das instituições, uma vez que a nova fé apresentou seu próprio conjunto de regras (descritas no antigo e novo testamento)[2]. Tal regramento seria de natureza eminentemente religiosa, mas determinavam consequências sobre as relações humanas, as relações entre os indivíduos e as instituições, servindo de base para o surgimento do primeiro direito canônico, que permitiu o entrelaçamento com o direito romano (SCHIOPPA, 2014).

No início do Século IV ocorreu a ligação entre Igreja e Estado, pelos imperadores Constantino, Justiniano e Teodósio, este último, declarando a religião católica como a única reconhecida e admitida no Império Romano. Tal união influenciou na administração da justiça, apontando a possibilidade de julgamento por autoridades eclesiásticas, inclusive atribuindo plena soberania à sentença episcopal. Após o ano 390 d..C, foi iniciado um processo para traçar limites entre Igreja e Estado, quando o bispo de Roma, Gelásio I, no período entre 492 e 496 d.C, argumentou que o reino e o sacerdócio constituíam dignidades distintas, sem subordinação ou ingerências recíprocas, destinadas por Deus, uma para dirigir as coisas deste mundo, a outra para guiar por meio da Igreja, a comunidade dos fiéis (SCHIOPPA, 2014, p. 24).

Sobre a relação entre Igreja e Estado, Antônio Padoa Schioppa (2014, p. 24-25) acrescenta:

 Ao longo de todo o período da história subsequente das relações entre Estado e Igreja, durante toda a Idade Média até a Idade Moderna e Contemporânea, houve sempre um contínuo questionamento quanto às fronteiras entre as duas esferas, que a evolução das ideologias e das instituições civis e eclesiásticas foi, pouco a pouco, repropondo em novos termos, com referência a questões e a matérias sempre diferentes, até nossos dias: do matrimônio às espécies de infração, da jurisdição à fiscalidade, do estatuto do clero às instituições políticas.

 Retornando ao tema proposto, imperioso abordar as versões de origem do Tribunal do Júri indicadas por historiadores e doutrinadores contemporâneos.

Não há pretensão neste artigo de revelar com minúcias a origem do Tribunal do Júri na história da humanidade. O objetivo é tentar apresentar ao leitor, dentro do recorte específico proposto no título, a análise de textos e documentos que permitam fornecer uma representação o mais crível possível de uma realidade já dissolvida (COSTA, 2020).

A hipótese mais aceita da origem da corte popular é que o mesmo teria surgido como um modelo específico e se difundido pelo mundo a partir da Magna Carta Inglesa, por meio do Concílio de Latrão, ocorrido em 1215 (STRECK, 2001).

Na Inglaterra, o sistema de jurados inicialmente não tratava de causas criminais. Era um sistema voltado a dirimir conflitos sobre direitos de posse e propriedade de terras. O rei Henrique II permitia, ao invés do duelo judiciário, a convocação do testemunho jurado de doze vizinhos, as chamadas Grandes Assembleias, os quais decidiam sobre a causa (SCHIOPPA, 2014, p. 152).

Apesar de aparente consenso, Pinto da Rocha (1919, p. 324) defende a origem mosaica do instituto. Baseado no Pentateuco, aponta que o Júri teria surgido entre o povo hebreu, no Egito, sob as leis de Moisés:

As leis de Moisés, ainda que subordinando o magistrado ao sacerdote, foram, na antigüidade oriental, as primeiras que interessaram os cidadãos nos julgamentos dos tribunais. Na velha legislação hebraica encontramos nós o fundamento e a origem da instituição do Júri, o seu princípio básico. Na tradição oral, como nas leis escritas do povo hebreu, se encontram o princípio fundamental da instituição, os seus característicos e a sua processualística.

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Além da origem mosaica, relatos existentes apontam que na Palestina, havia o Tribunal dos Vinte e Três, realizado nas vilas onde a população fosse superior a 120 famílias. Referidas cortes populares tinham atribuição para conhecer e julgar processos criminais relativos a delitos puníveis com a pena de morte. Havia a necessidade de padres e levitas, além dos principais chefes de famílias de Israel (NUCCI, 2015).

Marcos Cláudio Acquaviva (2006) anota a feição mística do Tribunal do Júri inglês ao afirmar que o Júri surgiu em um momento em que se aboliam as ordálias, os chamados julgamentos divinos, bem como as torturas decorrentes de tais rituais. Entretanto, mesmo afastando as ordálias, os Tribunais do Júri da Inglaterra ainda se baseavam em misticismo e religião, invocando Deus e fazendo correlação dos doze jurados com os doze apóstolos de Cristo, onde, banhados pelo Espírito Santo, teriam a revelação da verdade.

O professor de Teoria e História do Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, Diego Nunes, aponta que as metáforas dos tribunais se baseiam em algumas metáforas religiosas existentes nas artes sacras, e o tribunal do júri seria uma simulação do Juízo Final[3], o que é compartilhado por Antonio Manoel Espanha[4].


 O JÚRI NO BRASIL

Em se tratando do Júri no Brasil, durante o Império Português, D. João VI promoveu a abertura da liberdade de imprensa por meio do Decreto de 02 de março de 1821 e para coibir eventuais abusos à liberdade conferida, as Cortes de Lisboa, por intermédio do decreto promulgado em 12 de julho de 1821, regularam um sistema para julgamento dos delitos de imprensa. O artigo 22 do referido Decreto atribuía a competência para conhecimento de tais crimes a um Conselho de Juizes de Facto, eleitos entre os homens dotados de conhecida probidade, intelligencia, e boa fama (BRASIL, 1821). Referido decreto possuía aplicação em todo o Reino Unido de Portugal, Brazil e Algarves.

Em Portugal, o catolicismo era a religião oficial. O Brasil, na condição de Colônia Portuguesa, adotava também o catolicismo. Por força disso, algumas práticas contra a Igreja ou à fé religiosa eram consideradas abusivas à liberdade de imprensa, sendo as infrações submetidas ao julgamento do Júri:

Art. 10. Abusa-se da liberdade da imprensa contra a religião:

1º quando se nega a verdade de todos, ou de algum dos dogmas definidos pela Igreja;

2°, quando se estabelecem, ou defendem dogmas falsos ;

3°, quando se blasfema, ou zomba de Deos, dos seus Santos, ou do culto religioso approvado pela Igreja.

Art. 11. Quem abusar da liberdade da imprensa contra a religião Catholica Romana em primeiro gráo, será condemnado em um anno de prisão e 50$000 em dinheiro; no segundo em oito mezes de prisão e 50$000; no terceiro em quatro mezes de prisão e 50$000; e no quarto em 50$000 sómente. (BRASIL, 1821)

 Neste decreto foi introduzido o juramento perante os Santos Evangelhos, que deveria ser firmado antes do julgamento popular:

 Art. 35. Reunido o Conselho, o Juiz de Direito, á porta aberta, deferira a cada um dos Vogaes o juramento aos Santos Evangelhos para que bem e fielmente desempenhe os deveres do seu cargo: e entregando depois no Vogal primeiro na ordem da eleição o exemplar do impresso denunciado, e mais documentos, que instruirem o processo, lhes fará uma explicação exacta, e clara de tudo, e exporá a questão, que tem a examinar, e decidir, e que deve estar escripta nos autos do processo na fórma seguinte: « Este escripto contém motivo para se formar processo por tal abuso da liberdade da imprensa. (BRASIL, 1821)

 O Decreto de 18 de junho de 1822 introduziu os Juizes de Facto para julgamento dos crimes de abusos de liberdade de imprensa (BRASIL, 1822), e é considerado pela maioria dos doutrinadores como o marco introdutório do Júri no Brasil.

Após a independência, ocorrida em 07 de setembro de 1822, a Primeira Constituição do Brasil Império surgiu em 1824. O Imperador, em nome da Santíssima Trindade, manteve a Religião Católica como a Religião oficial, restringindo as demais práticas religiosas a cultos domésticos. Ou seja, havia liberdade de crença, mas não havia liberdade de culto:

 Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo. (BRASIL, 1824)

 O Júri foi previsto no artigo 152 da Constituição de 1824, e obteve regulamentação em 20 de setembro de 1830, com a nova Lei de Imprensa, que reorganizou o procedimento.

Em relação à figura divina, no artigo 2º foram mantidas punições por desrespeito a Deus e à Religião do Império. Interessante destacar a previsão de punição a ofensas relacionadas a outros cultos religiosos recepcionados em solo nacional, não somente à religião católica:

 4º Doutrinas dirigidas a destruir as verdades fundamentaes da existencia de Deus, e da immortalidade da Alma, e a espalhar blasphemias contra Deus. Os responsaveis incorrem nas mesmas penas do paragrapho antecedente.

5º Calumnias, injurias, e zombarias contras Religião do Imperio, assim pelo que pertence nos seus Dogmas como ao seu culto. Evidente offensa da Moral Publica. Os responsaveis incorrem, pelo que pertence aos Dogmas, nas mesmas penas do § 3º e pelo que pertence ao Culto, e á Moral, na pena de prisão de seis mezes a um anno, e na pecuniaria de cincoenta a cento e cincoenta mil réis.

6º Calumnias, injurias, e zombarias aos differentes cultos estrangeiros, estabelecidos no paiz, com permissão e garantia da Constituição. Os responsaveis incorrem na pena de prisão de tres a nove mezes, e na pecuniaria de trinta a noventa mil réis. (BRASIL, 1830)

 Acerca do juramento, uma nova fórmula foi introduzida, para recepcionar diretamente a figura de Deus:

 FORMULA DO JURAMENTO

Juro pronunciar bem, e sinceramente nesta causa, haver-me com franqueza e verdade, só tendo diante de meus olhos Deus, e a Lei, e proferir o meu voto segundo a minha consciência. (BRASIL, 1830)

 Sobre o significado do juramento no Júri, Pimenta Bueno (1849, p. 128) discorre:

 o juramento é um acto substancial exigido por todas as legislações que adoptão o jury. DelIe é que os juizes de facto derivão o nome de jurados; antes delle não tem o caracter nem a autoridade de juizes. Por outro lado, é elle o vinculo que os prende perante Deos e os homens, e pelo qual se obrigão a nao trahir sua consciencia e honra, seus altos deveres, tanto mais sagrados quão grande é a confiança depositada sobre sua moralidade; confiança illimitada por virtude da qual a lei não lhes traça regras sobre as provas por onde devão decidir. se, e só sim invoca a sinceridade de suas convicções, a santidade do juramento, e a responsabilidade em que incorrem perante a justiça de Deos e a opinião dos homens.

 Em 29 de novembro de 1832, entrou em vigor o Código de Processo Criminal brasileiro, o qual veio consolidar o projeto codificador para a seara penal, que já havia resolvido a questão do direito material com o código Criminal de 1830 (NUNES, 2019, p. 143).

Em relação ao juramento, a fórmula prevista na Lei de imprensa de 1830 foi mantida integralmente em seu artigo 253. Referido Código foi alterado pela Lei número 261, de 03 de dezembro de 1841, e novamente, em 20 de setembro de 1871, por meio da Lei nº 2.033. Tais alterações introduziram profundas alterações no procedimento do Júri, no entanto, a fórmula do juramento de 1832 não foi alterada, consagrando a permanência de Deus na legislação processual.


 O JÚRI NA REPÚBLICA BRASILEIRA: DO JURAMENTO AO COMPROMISSO

 Para Wolkmer (2003, p. 88), a questão abolicionista, a crise militar, o estremecimento da relação entre a Igreja e o Estado foram fatores importantes para o enfraquecimento da monarquia, contudo, teria sido a crise econômica uma das razões principais para o desmantelamento do Império e o surgimento do Estado Liberal Republicano em 1889.

Por meio do Decreto nº 1, em 15 de novembro de 1889, foi proclamada a República, declarando a soberania dos Estados, implantando-se uma República Federativa (FAORO, 2001).

No início da República, ocorreu a desvinculação da Igreja e do Estado, operando-se a laicização do Brasil, por meio do Decreto nº 119-A, de 07 de janeiro de 1890, cuja autoria foi atribuída a Rui Barbosa:

 Art. 1º E' prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.

Art. 2º a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem o exercicio deste decreto. (BRASIL, 1890)

 O processo de laicização do Brasil iniciou ainda no Império, com a introdução dos ideais positivistas de Augusto Comte em 1844, ideais estes que tratavam da valorização da ciência para permitir o progresso humano. Introduziu-se uma religião civil, tratada como uma religião científica e racional da Humanidade (ALPHONSE, 2021). Conforme Hespanha (2012, p. 422), o positivismo propunha a substituição das ideias teológicas e metafísicas pelas ideias positivas e procurava substituir as formas estabelecidas de organização social e política por outras de natureza científica.

O positivismo, aliado ao liberalismo, foi fundamental na transição do Império para a República. Importantes nomes que militaram pela transição Império-República eram adeptos à teoria comtiana, como por exemplo, Benjamin Constant, considerado o positivista que mais contribuiu para a causa republicana e laicização do Brasil (ALPHONSE, 2021). Benjamin Constant fez parte inclusive, da elaboração do Decreto nº 119-A, que desvinculou o Estado da Igreja.

No tocante ao Júri, este foi mencionado no artigo 72, § 31 da Constituição de 1891, sendo elevado ao status de direito fundamental.

O mérito de manutenção do Júri na República atribui-se em grande parte aos esforços de Rui Barbosa, o qual argumentava que os que se irritam com certos males da grande instituição liberal, não cogitam nas conseqüências, muito mais graves, da extinção dela, deixando claro que quando a opressão vem do Poder Executivo o valor tutelar do júri excede então incomparavelmente o da magistratura (1976, p. 171).

Não houve, no início da República, alteração no Código de Processo Criminal do Império. Ocorreu na verdade uma descentralização das normas de natureza processual. Significa dizer que cada Estado, como ente da Federação, poderia organizar o poder judiciário local, bem como legislar sobre matéria processual, incluindo, regramento acerca do Tribunal do Júri.

Tal transição iniciou com o Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, que organizou a Justiça Federal, e transferiu para os Estados a competência para organização judiciária, bem como para a legislação de natureza processual. O Decreto nº 914-A, de 23 de Outubro de 1890 foi a segunda Constituição Provisória do Brasil, e em seu artigo 33, modificou o §  24, adotando um sistema de jurisdição única que conferiu competência judiciária aos Estados em toda a matéria que não estava expressamente reservada à União (CUNHA, 2020, p. 123).

A Constituição de 1891 sacramentou a competência dos Estados para promover a organização judiciária, bem como para legislar em matéria processual, conforme a redação final do art. 34, em seu nº 23, a qual coloca que competirá ao Congresso Nacional Legislar sobre o direito civil, comercial e criminal da República e o processual da Justiça Federal (BRASIL, 1891).

Uma vez atribuído aos Estados o poder de legislar em matéria processual, o primeiro Código de Processo Criminal republicano foi o Código do Império, de 1832, com as alterações promovidas em 1841 e 1871[5].

Os Estados, por sua vez, passaram a promover a organização judiciária e apresentar seus próprios códigos processuais criminais, para suplantar o código processual imperial.

No tocante às fórmulas, Santa Catarina foi um dos primeiros estados a afastar Deus do juramento no Júri.

A Assembleia Legislativa Catarinense travou importante debate sobre o tema, em 15 de agosto de 1892, quando o deputado Luiz Nunes Pires, positivista comtiano reconhecido, apresentou projeto que pretendia a supressão dos termos jurada e juramento no compromisso dos jurados na corte popular, por entender que são termos que remetem à religião, o que não se admite pelo fato do Estado ser laico. Sugeriu que o compromisso fosse firmado pela honra[6].

Durante as discussões, Virgílio Várzea foi contrário a tais argumentos, criticando a religião da Humanidade pregada pelo positivismo comtiano. Argumentou ainda que o positivismo seria inaceitável e foi levado à ruína em toda a parte onde havia uma cabeça pensante orientada e forte, chegando a afirmar que Augusto Comte padecia de insanidade[7].

O resultado de tais debates pode ser observado na Lei nº 59 de 15 de setembro de 1892, a qual substituiu a fórmula do Código Processual de 1832 em Santa Catarina:

 Art. 85. O juramento exigido para os membros do conselho de sentença de que trata o art. 278 do Código de Processo Criminal fica substituído pela seguinte promessa: Por minha honra prometo, em nome do direito da justiça, cumprir com sinceridade os deveres de juiz de facto nesta causa, inspirando-me somente nos dictames de minha consciência e na lei.

 Conforme se percebe, Deus cedeu lugar à honra, e o juramento tornou-se promessa.

Aristides Milton (1898, p. 152), tece importantes considerações sobre compromisso e juramento, ao comentar o artigo 21 da Constituição de 1891:

 "Entre os povos, que ainda não conseguiram, ou mesmo não quizeram, realizar a separação da Egreja e do Estado, a promessa é garantida pelo juramento. E este é, como se sabe, a affirmação que alguem faz invocando o testemunho de Deus de bem desempenhar as obrigações que sobre si toma. De sorte que é, verdadeiramente, um acto religioso, cujo valor depende das crenças de quem o pratica; um assumpto ligado à consciencia de cada qual; e, por conseguinte, alheio ás cogitações da lei."

 Referido artigo não trata do Júri, mas sim do compromisso exigido dos deputados e senadores da República. O autor comenta que a Constituição discorre sobre a liberdade religiosa, e por esta razão não poderia impor o juramento aos seus congressistas, limitando-se a exigir delles o compromisso, endossado pela probidade e pelo patriotismo de cada um, por considerar a todos homens de bem (MILTON, 1898, p. 153). A partir de tal raciocínio, um jurado que não fosse adepto a nenhuma religião, não possuindo crença em deuses, não poderia ser compelido a jurar perante Deus antes de julgar um semelhante. Se a liberdade religiosa existia, inclusive a liberdade de não possuir religião alguma, a imposição de um juramento ao Deus judaico-cristão poderia ferir frontalmente tal direito.

Além de Santa Catarina, outros Estados Brasileiros adotaram formas diferentes de colher o compromisso dos jurados.

No Rio de Janeiro, adotou-se: Prometto pronunciar bem e sinceramente nesta causa, haver-me com franqueza e verdade, tendo diante dos olhos a lei e proferir o meu voto, segundo a minha consciência[8].

O Pará seguiu com compromisso semelhante: Prometto prununciar-me sinceramente nesta causa, haver-me com franqueza e verdade e proferir o meu voto segundo minha consciência[9].

Minas Gerais adotou uma fórmula mais flexível, permitindo o exercício de eventual liberdade religiosa, ou manifestação da fé dos jurados: Prometto (ou juro), pronunciar-me com franqueza e verdade, só tendo diante dos olhos a lei (Deos e a lei) e proferir o meu voto segundo a minha consciência[10].

Com a Constituição de 1934 restituiu-se a competência privativa para legislar sobre direito processual à União Federal, o que foi reafirmado na Constituição de 1937.

Após a outorga da Constituição de 1937, veio à Lume o Decreto-Lei nº 167 de 1938, que passou a regular o tribunal do júri em todo o território brasileiro.

Referido Decreto baniu de forma definitiva o juramento, eliminando Deus da fórmula, conforme se depreende pelo artigo 58:

 "Em nome da lei, concito-vos a examinar a acusação que pesa sôbre o réo, sem ódios ou simpatias, mas com a retidão e a imparcialidade necessárias para que o vosso julgamento traduza a vossa coragem pela verdade e zêlo pela Justiça, tal como a sociedade espera de vós."

Os jurados, nominalmente chamados pelo juiz, responderão, erguendo a mão direita:

"Assim o prometo." (BRASIL, 1938)

 O Código de Processo Penal de 1941, na redação original, previa o compromisso no artigo 464, e após a reforma introduzida pela Lei nº 11.689 de 2008, o compromisso foi previsto no artigo 472, em ambos os casos, com a mesma fórmula de compromisso:

 "Em nome da lei, concito-vos a examinar com imparcialidade esta causa e a proferir a vossa decisão, de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça". Os jurados, nominalmente chamados pelo juiz, responderão: - "Assim o prometo".

Sobre o autor
Pablo Buogo

Mestrando em Teoria e História do Direito, na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Graduado em Direito pela Universidade do Planalto Catarinense - UNIPLAC. Especialista em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Catarinense – ESMESC. Especialista em Investigação Forense e Perícia Criminal pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci. Especialista em Direito Penal pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci. Especialista em Direito Civil pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci. Professor de Direito Penal e Direito Processual em cursos preparatórios para concursos públicos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUOGO, Pablo. A exclusão de “Deus” do tribunal do júri brasileiro.: Do juramento ao compromisso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7134, 12 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98928. Acesso em: 28 nov. 2024.

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