8. Enquadramento jurídico do problema objeto da consulta : legitimidade da construção de armário embutido, e sua respectiva posse, em área comum de acesso exclusivo a determinado condômino
A essa altura resta saber acerca da possibilidade do condômino da propriedade horizontal poder utilizar-se com exclusividade – ter a posse, portanto – de área comum, e, em sendo isso possível, quando tal hipótese estaria legitimada.
Numa primeira análise da Lei de Condomínio em Edificações, poder-se-ia concluir, à luz de seu art. 3º (44), que seria impossível a utilização exclusiva, por determinado condômino, de área comum, uma vez que tal dispositivo é expresso no sentido ser insuscetível de uso exclusivo a área comum.
Porém, é fundamental que se harmonize o contido no indigitado art. 3º com a realidade de cada edificação condominial que alberga a superposição de unidades, uma vez que determinadas situações ocorrerão onde a "área comum" não será, pela sua disposição, necessariamente uma área de "uso comum", eis que a ela só se terá acesso por intermédio de determinada unidade autônoma pertencente a determinado condômino.
Quanto a esse aspecto, vale a irreparável lição haurida de acórdão de lavra do Des. Erbetta Filho, do Tribunal de Justiça de São Paulo (45), que ao tratar de caso com circunstâncias análogas às abordadas neste Parecer, faz referência à perfeita e racional possibilidade do condômino utilizar-se com exclusividade de área comum só atingível por intermédio de sua respectiva unidade autônoma. Vejamos o que diz o acórdão:
"Doutrina e jurisprudência vêm, de fato, consagrando o entendimento segundo o qual o condômino pode ocupar área que, não obstante seja a rigor coletiva, pelos dizeres da Convenção ou por não se inserir dentre as especificadas como uso privativo, pelo fato de somente para si ter utilidade, não se prestando a qualquer dos demais condôminos, os quais, para terem acesso a ela, teriam obrigatoriamente que passar por área de uso privativo daquele.
Pelo que deixam ver os já mencionados J. Nascimento Franco e Nisske Gondo (op. cit., p. 85-87), erigiram-se com pioneiros nessa linha de pensamento, neste Estado, julgados do Tribunal de Alçada Civil insertos nas RT 322/474 (referindo-se a ‘área-terraço’ ou ‘terraço-de-nível’ contíguo a unidade do pavimento térreo) e 325/416 (relacionado a área lateral de apartamento), este último – ao qual se deu especial destaque – relatado pelo então Juiz Sousa Lima, cujo magnífico voto calcou-se em lição de Lino Salis. Colacionam ainda os citados juristas, anterior àqueles julgados, acórdão do TJGB contido na RT 275/816, afora reportarem-se a parecer de Pontes de Miranda reproduzido na RF 144/73.
Prescindindo-se de cansativo e desnecessário apanhado de quantos arestos adotaram a mesma solução, de lá para cá, importa no entanto dizer que esta E. Corte vem dando abrigo a semelhante posição, a qual, em última análise, baseia-se numa distinção entre áreas comuns, sem designação específica de uso (suscetíveis de serem utilizadas em certas circunstâncias com exclusividade por um condômino), e áreas de efetivo uso comum, para finalidades preestabelecidas pela especificação ou convenção. Prova disso é a publicação nos JTJ 205/32 de v. acórdão recente da C. 3ª Câm. de Direito Privado (ApCiv 281.449-1, rel. Des. Toledo César, v.u., em 15.04.1997)..."
A lógica que eclode do acórdão citado é ululante.
É óbvio que determinadas localidades da edificação condominial, pela própria estrutura da construção, poderão, ainda que se trate de "área comum", não ser consideradas área de "uso comum", haja vista que seu acesso só se dá por intermédio de determinada unidade autônoma, o que redunda na total ociosidade da respectiva área que, apesar de "comum", não se presta ao "uso comum". Não há como o legislador mudar a natureza das coisas; vale dizer, o art. 3º da Lei 4.591/64 deve ser harmonizado com a realidade dos aspectos inerentes a cada construção que faz surgir a co-propriedade no condomínio em edificações.
Nas hipóteses análogas à jurisprudência externada no acórdão citado, da qual faz parte, aliás, a situação que deu origem a este Parecer, não há como se conceber outro entendimento senão aquele que leva à conclusão serena de que o art. 3º da Lei de Condomínio em Edificações apenas impede a utilização exclusiva, pelo condomínio, de "área comum" que seja, efetivamente, de "uso comum". Se porventura a área comum estiver em determinado encravamento da construção, na qual só se chega através da área contígua pertencente a determinado condômino, é lógico que a este estará franqueada a utilização exclusiva da respectiva área que, não obstante "comum", não se presta ao "uso comum".
Repito: estando a área comum ociosa ao uso comum, em virtude de ser contígua a determinada unidade autônoma, o respectivo proprietário terá total legitimidade para exercer a posse exclusiva sobre tal área. Não é outra a inteligência do acórdão acima analisado, que simplesmente julgou com inequívoca lógica-jurídica a lide que solucionou.
Portanto, se a área comum é contígua a determinada unidade autônoma, não se prestando, em razão disso, à utilização comum, não estará vedada sua livre utilização pelo respectivo proprietário, uma vez que os demais, para terem acesso a ela – área comum –, terão obrigatoriamente que passar por área de uso privativo do titular da unidade autônoma contígua.
Em sendo assim, o condômino que constrói armário embutido em "área comum" totalmente ociosa ao "uso comum", onde só se chega por intermédio da respectiva unidade autônoma – esta sim, vale dizer, de uso exclusivo do respectivo proprietário –, não estará agindo de forma ilegal, atentatória aos preceitos de ordem pública previstos na Lei de Condomínio em Edificações, em especial seu art. 3º.
A finalidade da Lei 4.591/64 é exatamente impedir que determinado condômino se utilize com exclusividade de área comum que se presta ao uso comum; do contrário, em sendo a área comum, pela sua própria disposição, totalmente ociosa ao uso comum, eis que somente atingível através da área contígua de uso privativo, seu uso exclusivo pelo proprietário da respectiva unidade autônoma não está proibido pela Lei. Ou seja, será permitida a posse exclusiva, pelo condômino, dessa área comum de uso não-comum; e se há posse, haverá todos os efeitos daí advindos, mormente no que tange aos interditos possessórios.
Nunca é demais lembrar que, na propriedade horizontal, cada unidade autônoma representa propriedade exclusiva do respectivo titular, conforme dispõe o art. 1º da Lei 4.951/64, e conforme se deflui do sistema de direito privado positivo (CC, art. 524).
Logo, se a área comum é encravada entre paredes e a área de garagem constituída como unidade autônoma, sendo somente através desta atingida, fica evidente que tal área estará inviabilizada para o uso comum, uma vez que os demais condôminos terão o inexorável dever de não-violar os limites da propriedade exclusiva composta pela respectiva unidade autônoma.
9. À guisa de conclusão : solução para o caso sob exame
Antes do oferecimento das respostas aos quesitos formulados pelo consulente, proporemos, segundo o nosso sentir, a solução para o caso examinado.
Conforme já dito no item 1 supra, o armário embutido do consulente foi construído em área comum localizada entre uma parede, as garagens de nº. 61 e 62 – ambas de sua propriedade –, um pilar e a rampa de acesso ao 1º subsolo. Portanto, o respectivo armário está localizado em área comum encravada entre concreto e as garagens do consulente. Frisa-se, uma vez mais, que à área comum que recepciona o armário não se chega senão pelas garagens de propriedade do consulente.
A utilização exclusiva da dita área comum e do respectivo armário, geram em favor do consulente direito à posse mansa e pacífica que vem exercendo, com todos os efeitos ad interdicta que socorrem o possuidor. Vale dizer: além de ser plenamente possível ao consulente utilizar com exclusividade a indigitada "área comum", eis que a mesma não se presta ao "uso comum", também lhe será facultada a utilização dos interditos possessórios caso venha a ser molestado em sua posse. Em suma, a manutenção do armário, tal como ele está, deverá ser respeitada.
Não há nenhum suporte jurídico a autorizar qualquer medida, de quem quer que seja, para obrigar o consulente a desfazer o armário que construiu. A uma: não se trata de área de uso comum, sendo que a posse do consulente não está a prejudicar os demais condôminos que jamais poderiam utilizar tal área, cujo acesso necessariamente se dá pela garagem de propriedade exclusiva do consulente; a duas: em hipótese alguma o armário põe em risco a higidez das edificações; a três: sequer há que se falar em prejuízo estético para o condomínio, uma vez que o armário é embutido na área encravada e sua pintura externa segue o padrão e o estilo da pintura existente no 2º. subsolo.
Ora, se à área comum onde está o armário embutido – encravada, como já se disse – só se chega por intermédio das garagens do consulente, pergunta-se: A) a área é de uso comum? B) seria lícito aos demais condôminos terem acesso a tal área através das garagens do consulente, onde inclusive, diariamente estão seus carros lá estacionados? A resposta para ambas as questões é uma só: NÃO; seja porque a área não é de uso comum, seja porque não podem os demais condôminos, para terem acesso a dita área, atravessar pelas garagens que constituem propriedade exclusiva do consulente.
Não sendo a área de uso comum, eis que a ela só se tem acesso através das garagens nº. 61 e 62 do 2º subsolo, sua utilização exclusiva pelo consulente é perfeitamente viável, sendo totalmente legítima a construção do armário levada a efeito, principalmente por não trazer nenhum prejuízo para o condomínio, nem de ordem estética, nem de ordem estrutural. Além do mais, essa utilização exclusiva pelo consulente não está a embaraçar o uso comum, já que a área não se presta a isso.
No mais, a conflagrada situação de posse exercida pelo consulente – eis que exerce de fato algum dos poderes inerentes à propriedade (usa e goza; CC, art. 485) – lhe garante a proteção possessória que o sistema jurídico brasileiro concede ao possuidor.
A situação do consulente é toda ela revestida de inequívoca juridicidade, não havendo nela nenhuma ilegalidade nem tampouco abuso de direito. É legítimo, pois, o uso exclusivo da dita área comum, devendo ser preservado o armário lá construído.
10. Respostas aos quesitos
1) O armário embutido construído, nas circunstâncias reais examinadas, atenta contra a sistemática da Lei de Condomínio em Edificações?
R: Não, o armário construído não atenta contra a sistemática da Lei de Condomínio em Edificações, haja vista que o local onde está o armário, muito embora seja área comum, não é área de uso comum, eis que a ela só se tem acesso pelas garagens que são de propriedade exclusiva do consulente.
2) O exercício de posse exclusiva da área comum, onde o armário foi construído, contraria a Lei de Condomínio em Edificações ou mesmo o Regimento Interno do Edifício Carolina Pellicciari?
R: Não, a posse exclusiva da área comum onde foi construído o armário não contraria a Lei 4.591/64 nem o RI do Edifício Carolina Pellicciari.
No regime jurídico da propriedade horizontal, a posse, enquanto poder de fato no exercício de algum dos poderes inerentes à propriedade (CC, art. 485), poderá ser exercida livremente em área comum que não esteja destinada, pelas suas próprias características, ao uso comum.
Dessa forma, desde que o condômino não esteja excluindo os demais co-proprietários das áreas efetivamente consideradas de uso comum, e desde que a utilização exclusiva não ponha em risco a segurança do edifício, não há nenhum óbice de que determinada área comum seja utilizada com exclusividade por determinado condômino que a ela tenha acesso privativo. Inclusive, vale ressaltar que é exatamente esse o entendimento remansoso da jurisprudência (vide, TJSP – Ap 60.171-4/3 – 1ª Câm. – j. 10.08.1999 – rel. Des. Erbetta Filho).
3) A respectiva área comum, dado seu encravamento entre parede, pilar e as garagens de nº. 61 e 62, poderia ser utilizada livremente pelos demais condôminos?
R: Não, a respectiva área comum onde o armário foi construído não poderia ser utilizada livremente pelos demais condôminos.
A partir do momento que só se tem acesso a tal área comum por intermédio das garagens de nº 61 e 62, ambas de propriedade do consulente, não poderiam os demais condôminos utilizar-se livremente da área, pelas simples razão que teriam que violar os limites da propriedade exclusiva constituída pelas unidades autônomas representadas pelas garagens. Em sendo tais garagens unidades autônomas, sua utilização exclusiva, e respectivo acesso, cabe apenas ao seu legítimo proprietário e possuidor, no caso, o consulente.
4) Haveria alguma medida judicial para salvaguardar o perfeito exercício exclusivo da posse sobre os armários construídos?
R: Sim, as ações possessórias (interditos possessórios) preordenadas à defesa da posse.
A consolidação da posse do consulente sobre a área onde o armário foi construído está perfeitamente caracterizada. Qualquer moléstia a essa posse (turbação, esbulho ou ameaça) poderá ser rechaçada com a respectiva ação possessória, cujo desfecho não será outro senão a salvaguarda do consulente enquanto possuidor que é, inclusive com a concessão de medida liminar para a proteção provisória da posse.
Reza o art. 507, parágrafo único, do Código Civil, que a posse deverá permanecer com o sujeito que tiver a melhor posse, prevendo, dentre outros motivos, que quando se tratar de posse da mesma data, prevalecerá a posse atual.
Partindo-se do pressuposto de que o consulente está exercendo posse sobre área inviável ao uso comum, e que sua posse é atual se considerada em relação aos demais comproprietários da respectiva propriedade horizontal, temos que a posse sobre os armários restará plenamente protegida através da medida judicial cabível.
É este o meu Parecer, s.m.j.
Jundiaí, 18 de janeiro de 2002.
GLAUCO GUMERATO RAMOS
oabsp nº. 159123
Professor de Direito Civil IV (Posse e Propriedade) da Faculdade de Direito de Jaú. Professor de Direito Civil I (Parte Geral) da Faculdade de Direito da UNIP, campus Jundiaí. Pós-graduado lato sensu em direito processual civil (USF). Mestrando em direito processual civil na PUC/SP.