PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO
MM. Juiz:
Cuida-se de ação anulatória aforada por X em face do Condomínio Y, quando alegam, em apertada síntese, que:
1) são moradores do Condomínio Y;
2) no dia Z, por meio de assembleia, foi deliberada a proibição do trânsito de veículos (lato sensu) pelo aludido condomínio, quando pilotados por menores;
3) é ilegal essa deliberação, posto afrontar direitos das crianças, dentre os quais o de divertir-se, nos termos do que dispõe o art. 16, inc. IV da Lei n° 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente);
4) por isso ajuízam o presente pedido, para que, uma vez anulada a decisão do condomínio, possam livremente transitar com seus mini-veículos elétricos por suas dependências.
Deferida a liminar (fls. _) e citado o suplicado (fls. _), foi apresentada contestação (fls. _), aduzindo, em suma, que:
1) a assembleia é soberana para deliberar sobre situações internas de interesse do condomínio;
2) os veículos pilotados pelos autores menores, porque motorizados, reclamam de prévia habilitação para sua condução;
3) seu tráfego pelas dependências internas do condomínio importam em risco não apenas para eles, mas também para os demais moradores que se utilizam das áreas comuns, notadamente crianças.
Em Juízo, foi produzida prova testemunhal (fls. _).
A atuação desta Curadoria deve-se à presença de dois autores incapazes no pólo ativo da relação processual, consoante se verifica das certidões copiadas a fls. _.
Esta é a síntese do necessário.
2. Tenho que o pedido é improcedente.
De se destacar, inicialmente, o caráter normativo que assume a convenção do condomínio e, por consequência, as assembléias realizadas a fim de deliberar sobre os aspectos internos que se refiram à convivência entre os condôminos.
Nesse sentido o disposto a parte final do art. 1.333 do Código Civil, ao dispor que ela é “obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção”. Do mesmo teor a Súmula 260 do Superior Tribunal de Justiça, verbis: "A convenção de condomínio aprovada, ainda que sem registro, é eficaz para regular a relação entre condôminos".
Isso não significa dizer, por óbvio, que os condôminos devam se curvar ante deliberações evidentemente ilegais e inconstitucionais, que autorizam o reconhecimento de sua nulidade perante o Poder Judiciário. Se uma lei, com efeito, pode ser declarada inconstitucional (por meio de controle difuso ou concentrado), com muito mais razão uma norma interna de um condomínio.
O cerne do debate aqui travado, a meu sentir, se limita à análise quanto a eventual abusividade da decisão tomada em assembleia interna do condomínio, realizada em 29 de julho de 2010, no sentido de impor “a proibição de menores dirigirem dentro do condomínio, seja veículos movidos a gasolina, etanol, diesel, energia, etc.”(fls. _).
Penso que não houve abusividade na deliberação.
Não de discute, evidentemente, o direito que possui a criança de brincar, que possui, inclusive, status constitucional, como se vê do art. 227 da CF, verbis:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (grifei).
Nesse sentido, ainda, a letra do art. 71 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a merecer transcrição:
“A criança e o adolescente têm direito a informação, cultura, lazer, esporte, diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”(grifei).
Cuida-se, nas de Tânia da Silva Pereira, em “instrumento importante na socialização, o “brincar” é efetivamente atividade que integra a criança na vida em comunidade e representa elemento essencial à saúde física, emocional e intelectual do ser humano em fase de desenvolvimento”. (In Direito da criança e do adolescente – uma proposta interdisciplinar, 2ª edição revista e atualizada, Rio de Janeiro, Renovar, 2008).
A ponto de L.S. Vygotsky afirmar que a “criança desenvolve-se, essencialmente, através da atividade de brinquedo” (in A formação social da mente. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes p.117).
Tal direito, porém, conquanto previsto na Constituição, não é absoluto, devendo, antes, ser harmonizado com outros direito que assegurem, de um lado, a segurança de seu titular e garantam, de outro, direitos de terceiros. Precisa nesse aspecto, aliás, a redação da parte final do art. 71 do ECA, ao prever que os direitos que elenca devem respeitar a condição peculiar de seus titulares.
Fincada tal premissa e mais atento, agora, à situação fática tratada nos autos, creio que a limitação imposta na assembleia se justifica: em um primeiro momento sob o ponto de vista subjetivo, referente à segurança dos próprios autores; e, a partir de um segundo olhar, sob o aspecto objetivo, no que concerne à segurança das demais crianças do condomínio.
Pois bem. Um dos autores (João Victor), conta quatro anos de idade (fls. _). (Há, inclusive, indício de que o veículo tenha sido adquirido posteriormente a 29 de julho de 2010, data da realização da assembleia, por ser pouco provável que tenha lhe sido presenteado quando contava dois anos e meio de idade). O veículo que utiliza, ao que tudo indica, deve ser aquele objeto das fotografias de fls. _).
O outro autor (João Pedro), segundo certidão copiada a fls. _, conta oito anos de idade e, decerto, deve pilotar o veículo retratado a fls. _.
De se indagar: é possível, com o mínimo de segurança desejável, que eles transitem pelo condomínio desacompanhados ? A resposta, desenganadamente, é negativa. É dizer: reclamam, sempre, a supervisão de uma pessoa.
Essa pessoa, segundo indicou a prova testemunhal colhida em Juízo, é a babá das crianças, Maria Aparecida, ouvida a fls. _. ela confirma que, sozinha, acompanha a ambos na área de lazer do condomínio. Ora, é claro que uma pessoa apenas é insuficiente para cuidar de duas crianças que pilotam veículos motorizados. Aliás, estivesse João Victor (que conta quatro anos de idade) sem sua motinha, apenas a perambular pela área de lazer do local, e já necessitaria de um cuidado especial. Que dizer, então, de quando se acha motorizado e na companhia de um irmão mais velho, também com seu mini fusca.
A propósito, cabe uma análise especial no que se refere a este último veículo. Nos termos da informação de fls. _, cujo teor em nenhum momento foi refutado pelos autores, trata-se de um veículo que conta com motor de 110cc, “com três marchas para frente mais neutro e ré”. Parece óbvio que possuindo João Pedro oito anos de idade (fls. _), não encontra habilitado (no sentido genérico), para conduzir esse veículo com um mínimo de segurança. Sua potência, com efeito, é quase idêntica a de uma motocicleta, a ser pilotada por adultos, e a existência de marchas é fator que, certamente, dificulta sua condução por uma criança de tão tenra idade.
Restou claro, a meu sentir, que os autores, ainda que individualmente e na presença de um acompanhante, não teriam suas integridades físicas preservadas. A situação se agrava sensivelmente quando a uma só pessoa se atribui a tarefa de cuidar de duas crianças.
Agiria - com o devido respeito – com maior responsabilidade e cuidado a mãe das crianças e primeira autora se os impedisse de transitar com tais veículos. Ou, antes e mais eficaz: se jamais tivesse adquirido essa espécie de brinquedo para os filhos.
Penso, a propósito e sem que pretenda me intrometer na criação de filhos alheios, que a noção de brinquedo nem mesmo é encontrada nessa espécie de veículo motorizado, pelo que abro um parêntese para recordar de antiga lição de Henri Wallon quando diz que a criança: “brinca servindo-se de qualquer objeto: faz de um pedaço de pau entre as pernas um cavalo e, com um chapéu de papel sobre a cabeça, brinca de soldado. Faz de conta que é locomotiva, por meio de gestos mecânicos com os braços e as pernas e de respirações sonoras e ritmadas”. (inImitação e representação. Em M. J. G.Werebe&Nadel- Brufelt (Orgs.). São Paulo: Ática, 1945, p. 93).
Se, sob o aspecto subjetivo, não se recomenda a utilização dos veículos pelos autores, em termos objetivos a situação se agrava.
É que parece induvidoso o risco que o trânsito desses veículos, guiados por duas crianças da mais tenra idade, acarreta aos demais moradores do condomínio, sobretudo de crianças que, seguramente, também se utilizam da área de lazer comum a todos.
Reforça essa impressão o depoimento, sob o crivo do contraditório, de M, professora e moradora do condomínio, a afirmar que os autores circulam pelo local, por vezes desacompanhadas de terceiros e sem a utilização de equipamento de proteção. Ressalta a testemunha que essa conduta põe em risco a segurança de outras pessoas e que diversas crianças se viram impossibilitadas de utilizarem a área de lazer dada à presença dos possantes (fls. _).
Destaque-se, ainda, o depoimento em Juízo de L (fls. _), quando esclarece que os autores transitam regularmente pelas ruas do condomínio, única forma de acessarem a área de lazer. Fazem-no em velocidade incompatível com o local e sem a utilização de equipamento de segurança. Nesse trajeto,se deparam com automóveis, assumindo risco próprio e colocando em risco a segurança de outros pedestres.
Aliás, o regulamento interno do condomínio, em sua cláusula “E”, item “2”, autoriza que crianças brinquem nas áreas comuns, “desde que não venha a por em risco os outros condôminos ou a si próprio” (fls. _) (sic).
Isso sem dizer de eventual responsabilização,sob o aspecto civil, que pode recair sobre o condomínio, na eventualidade da ocorrência de um acidente que venha a vitimar terceiro. (Não cabe, aqui, analisar a validade da cláusula exonerativa de responsabilidade ou cláusula de irresponsabilidade, previstas a fls. _, pela qual “os danos causados por acidente serão de exclusiva responsabilidade do causador do acidente, ou de seu proprietário” - cláusula “J”, item “3” (sic).
Nem se argumente, como insinuou a inicial, que essa restrição violaria o princípio constitucional da propriedade, posto que, em se tratando de condomínio, esse direito é compartilhado com os demais condôminos, quando se cuida de área comum, na dicção do art. 1.331 do Código Civil.
Esclarecedora, nesse sentido, a definição de Carlos Roberto Gonçalves, a se conferir:
"Caracteriza-se o condomínio edilício pela apresentação de uma propriedade comum ao lado de uma propriedade privativa. Cada condômino é titular, com exclusividade, da unidade autônoma (apartamento, escritório, sala, loja, sobreloja, garagem) e titular de partes ideais das áreas comuns(terreno, estrutura do prédio, telhado, rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade, calefação e refrigeração centrais, corredores de acesso às unidades autônomas e ao logradouro público"(Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. vol. V. São Paulo: 2006. p. 370) (grifei).
Em suma, penso que o direito dos dois autores (de todo discutível, posto que, sendo incapazes, reclamam a proteção estatal), se existente, não pode, jamais, atingir o direito de terceiros, violado pelo risco que carreta a condução, no interior do condomínio, de veículo automotor.
Ante o exposto, opina esta Curadoria seja julgado improcedente o pedido.
É o parecer.
Ribeirão Preto, 20 de junho de 2012.
RONALDO BATISTAPINTO
Promotor de Justiça